I Concurso Literário Benfazeja

A pós-modernidade e o caos de fragmentos

'A pós-modernidade e o caos de fragmentos', por Ronaldo Lima Lins
in ALCEU - v.2 - n.3 - p. 78 a 91 - jul./dez. 2001

Si je prenais tes bras
Et les coupais em quatre
Tu aurais autant de bras
Que si tu étais quatre.

Edmond Jabès.(i)


O que significa para os nossos tempos um “caos de fragmentos”? Que, na pós-modernidade, vivemos em pedaços? Que nos manifestamos pela parte, e não pelo todo?

É um valor positivo, um modo de dizer não à totalidade? Ou uma réplica, uma outra forma de totalidade agora construída, não mais contra, como antes se passou, à época das revoluções ou do mundo bi-polarizado, mas a favor do sistema hegemônico?

É interessante observar como substituímos, aos poucos, um sonho de encontrar elos de união, sintomas de coerência, por uma nova visão segundo a qual, dividir e subdividir, contém ingredientes positivos de liberdade. Note-se que o esforço da filosofia havia sido justo o de encontrar os pontos de contato, cada pensador dando a sua contribuição com as suas teses. Este ponto fora Deus, concepção que começa a fraquejar no século XVII, sem imediata consciência disso. Rousseau imaginou que seria a natureza; Kant projetou-o no sentimento do belo; Hegel no espírito absoluto; Marx no proletariado, etc. Sabia-se o que separava os homens: a luta pela vida e pela sobrevivência, o prestígio, o poder, o princípio da dominação, a vaidade, o orgulho e assim por diante. A lógica dos contrários, o exercício da dialética, sugeriam possibilidades de trabalhar com o oposto, descobrindo-se o que, enfim, segurava, que acerto permitira um acordo e preservava a sociedade. Numa projeção, a mesma lógica criava o espectro da liberdade, da igualdade, da fraternidade. Sem ela, não teria havido a Revolução francesa.

Na história que se arma por trás de semelhante processo e nos atinge agora, o novo, dando a impressão de inaugurar, obedece a uma convulsão lenta, sempre imperativa e crescente nas suas crises, e cada vez mais dissolvida num presente onde tudo, no movimento das conquistas da tecnologia, soa como opção única – e melhor, na sua multiplicidade. Sob a superfície da aparente unidade, no entanto, fica-nos a sensação de que existem duas estruturas, dois territórios, dois universos onde nos movimentamos. Um dizendo sim à multiplicidade e a saudando como novidade. E o segundo, deslocando-se, com vôo próprio, e se emancipando até a completa superioridade, dando adeus e contestando implicitamente a primeira, para dizer que não, que, em vez de muitas explicações, prosseguimos com uma; em vez de verdades no plural, manteríamos, ao preço do permanente engano, uma única, singular, pairando acima das demais na hierarquia das verdades.

É assim que termos como ambigüidade, hibridismo, o meio ou o entre-lugar ganham força num aparente estado de avanço, quando, na superestrutura, um deus (em minúscula, apesar de seu gigantismo) ainda reina. Homi Bhabha prende-se a tais conceitos para trabalhar com a atualidade de um momento que, segundo ele, “traduz uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do ‘presente’”.(ii) Com uma penada, torna caducas antigas formas de interpretação. Inaugura um sistema de crítica que se supõe amplo, menos sujeito às limitações do maniqueísmo e capaz (é o patamar de onde parte) de traduzir as filigranas da complexidade do comportamento e da condição social. Melhor citá-lo:

Em que formas híbridas, portanto, poderá emergir uma política afirmativa teórica? Que tensões e ambivalências marcam esse lugar enigmático de onde fala a teoria? Falando em nome de alguma contra-autoridade ou do horizonte “verdadeiro” (...) o empreendimento teórico tem de representar a autoridade antagônica (do poder e/ou do conhecimento) que, em um gesto duplamente inscrito, tenta simultaneamente subverter e substituir.(iii)

A noção de ambigüidade pousa suavemente, como parece ser o seu propósito (diante de uma humanidade perplexa e cansada de violência), sobre a superfície da história ou da sociedade. Não provoca dores ou aversões. Mas ao fazê-lo, inviabiliza a precisão, se não a eficácia, de certos conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade. Se uma coisa ou alguém é algo e outra coisa ou outro alguém, o que, afinal, então será? Como detectar o conteúdo exato das questões num mundo eternamente fluido e em trânsito de mutações, num mundo onde ninguém ou nada se define porque permanece, pela sua condição, avesso a definições?

Hibridismo, segundo os dicionários, é o “processo pelo qual se produz um híbrido com o cruzamento de duas espécies diferentes”. E o dicionário acrescenta: “O produto híbrido, entretanto, quer seja animal ou vegetal, é estéril”.

Por isso, pela falta de fertilidade, pela incapacidade física de reproduzir, o designativo possui conotações de monstruosidade, apesar das qualidades que, muitas vezes, o produto híbrido apresenta, como a mula, cruzamento do cavalo com o jumento, herdando o bom de cada um dos que a geraram.

Diz o Aurélio: Híbrido. Que se afasta das leis naturais; hibridez. Anomalia, irregularidade.

É certo que os termos implicavam a idéia de mistura, algo que, num sistema planetário sob a hegemonia da Europa, tinha de guardar uma conotação pejorativa, de malefício, de impropriedade. Criado para separar e segregar, a marca do domínio não se manifesta somente no visível. Manifesta-se na esfera do invisível, dá sentido e explicação ao misterioso e ao inexplicável. Também é certo que a uniformidade, imposta pelo regime das monarquias absolutas, servia para disfarçar o modelo de desigualdade gritante entre os seres e sobretudo entre os povos.

Estamos, por conseguinte, falando em “caos de fragmentos” ou “engano do olhar” ou novas formas de encarar o mundo, no âmbito das discussões sobre a verdade. E a verdade, como há quem goste de entender, possui princípio, meio e fim. Nasce de alguma coisa e segue para algum lugar. Este lugar (da verdade como a destacamos), se totalidade, se multiplicidade, data do século XVII, base do surgimento da filosofia moderna, quando uma reviravolta se verificou nas antigas versões sobre a vida e sobre o homem. Estamos, no caso, depreende-se, no âmbito das idéias.

Onde são geradas? Que solidez apresentam para que acreditemos nelas? Existem dentro de nós, como um legado ou um esquecimento, para que as recuperemos? Ou, pelo contrário, mantêm-se do lado de fora, naquilo que chamamos de mundo ou de grupo, dali convergindo para a nossa mente e as nossas conclusões?

Ao estudar as origens do conhecimento, John Locke contestou as teorias tradicionais fundadas na escolástica e “provou”, ou imaginou que o fazia contundentemente, uma tese alternativa, diversa daquela, proveniente, em seu conjunto, da exterioridade e não da interioridade dos homens. Para os escolásticos, o ser e a idéia se confundiam. Satanás se apossava de alguém por essa via, por ser a representação do mal, o mesmo acontecendo com Deus. Mais de uma vez as pessoas estarrecidas assistiram a modificação de um temperamento, de uma personalidade, apenas porque uma idéia incômoda, irreverente, estapafúrdia e inesperada, como se tomasse conta do indivíduo, alterara de modo substancial o seu comportamento. Às vezes surgindo do nada, fenômenos deste tipo convulsionavam, além dos limites do pessoal, uma comunidade
inteira, quando não um povo ou uma nação. De onde viriam? A que entidade pertenciam? De que planeta, de que atmosfera, desceriam para causar tal impacto? Note-se que vinham às vezes disfarçadas, trazendo um malefício atrás do bem ou do cristianismo. As revoltas camponesas lideradas por Thomas Münzer, embora com elas já estejamos no renascimento, seriam um exemplo, para só citar um entre os inúmeros ao alcance da mão, de um lobo em pele de cordeiro e seus estragos, o fascínio que geraram e a força que tiveram para atrair seguidores.

Locke, discordando dos escolásticos, afirma que, quando nascemos, na maravilha em que nos constituímos por decisão divina, trazemos a inteligência. As idéias, as recolhemos da experiência e das dimensões do sensível. Não haveria, assim, idéias inatas. Todas seriam adquiridas, num procedimento que legitima e solidifica as capacidades dos sentidos de que nos valemos para recebê-las, antes de trabalhar com elas. Trata-se de uma descoberta que giraria em 360 graus o compasso do conhecimento. Graças a ela, a humanidade e a ciência começariam a caminhar com os próprios pés, libertas, em grande parte, da
teologia.

A partir do pensador inglês, duas correntes se separaram com relação a semelhante tópico, uma que pressupõe as idéias colhidas de fora para dentro, cabendo-nos auscultá-las e nos definir sobre elas; e outra que, ao contrário, defendia ainda algo como uma contribuição que trouxéssemos ao mundo. Desses dilemas vive a filosofia, divididos os dilemas entre aqueles que se imaginam dotados de algum tipo de verdade a priori no absoluto da sua dinâmica e os que, opondo-se a tal postura, crêem na conveniência de uma busca, de uma verificação, para somente aí, destacando o que é do que não é, humildemente avançar teorias.

É uma opinião estabelecida entre alguns homens que existem no entendimento certos princípios inatos, algumas noções primárias, características, por assim dizer, gravadas na mente do homem, que a alma recebe no seu início primeiro e traz para o mundo consigo. Seria suficiente para convencer leitores desprovidos de preconceito da falsidade desta suposição, se eu mostrasse (como espero fazê-lo nas partes seguintes deste discurso) como os homens, apenas pelo uso de suas faculdades naturais, podem atingir todo o  conhecimento que têm, sem a ajuda de quaisquer impressões inatas, e podem chegar à certeza sem quaisquer destas noções ou princípios originais.(iv)

Tínhamos aí, como se vê, uma convicção.

Locke não ficou sozinho. Causou impacto. Suas reflexões serviram para fornecer instrumentos de progresso na visão do homem sobre si mesmo e suas perspectivas de interferir na sociedade. Muitos saudaram a perspectiva do seu trabalho. Voltaire e Diderot aceitam-lhe as premissas. Já Leibniz, reconhecendo não obstante a importância de seu livro, não o defende na sua integralidade. Discorda em parte no capítulo das idéias inatas. Para verificar como argumenta, temos de recorrer a uma citação mais longa:

Nossas diferenças são sobre temas de alguma importância. Trata-se de saber se a própria alma mostra-se inteiramente vazia, como uma tábua na qual nada ainda se escreveu (tabula rasa), como é o ponto de vista de Aristóteles e do autor do Ensaio, e se tudo nela traçado provém somente dos sentidos e da experiência, ou se a alma contém originariamente os princípios de várias noções e doutrinas que os objetos exteriores apenas despertam nas ocasiões, como é a minha opinião e a de Platão, e mesmo da Escola, e de todos os que atribuem este significado à passagem de São Paulo (Rom. 2,15), onde ele diz que a lei de Deus permanece escrita no coração dos homens.
E prossegue:

Os Estóicos chamam estes princípios prolepses, o que quer dizer assunções que são fundamentais ou tidas como acertadas por antecipação.
Mais adiante, esclarece:

Filósofos modernos dão-lhes outros belos nomes, e Julius Scaliger em particular denomina-os semina aeternitatis e ainda zopyra, querendo dizer fogos vivos, fachos de luz, escondidos dentro de nós, mas levados a aparecer pelo contato dos sentidos, como a fagulha que o choque faz sair do fuzil. E não é sem razão que estes clarões constituem sinais de algo divino e eterno, que aparecem sobretudo nas verdades necessárias. Donde nasce uma outra questão, se todas as verdades dependem da experiência, isto é, da indução e dos exemplos, ou se existem algumas que também têm um outro fundamento. (...) Os sentidos, não obstante necessários para todos os nossos conhecimentos atuais, não são suficientes para nos dar dos mesmos a sua integralidade, uma vez que os sentidos nunca fornecem a não ser exemplos, casos, em suma, verdades particulares ou individuais.(v)
A hipótese da existência de idéias inatas, pode-se supor, enrijecia as doutrinas sobre o comportamento da inteligência, da vida social e dos destinos da humanidade. Tal enrijecimento notava-se em todos os meandros do universo concreto, mas em especial no terreno do pensamento, aparentemente parado e desprovido de dinâmica para poder avançar e mudar. A herança divina do monarca ou a santidade do Papa, para só citar dois casos, sustentavam-se num ambiente no qual os homens, inferiores a Deus, dele recebiam inclusive as
mensagens sobre os modos de governar-se.

Examinando-se o tema a posteriori, fica-se com a impressão de que a época, necessitando de uma revisão, procurava meios de efetuá-la ou então que, por via dos sentidos, tantas e tão flagrantes se revelavam certas verdades que já se fazia difícil reprimi-las. Ignorá-las implicava uma aventura em tudo e por tudo coligada aos exercícios da fantasia. Opor-se a eles se configurava como uma postura contra a realidade. Eis por que Locke, preparando um terreno no qual pôr os pés, palmilhou caminhos que não dependessem apenas da imaginação. O comportamento que adota não difere, nesse particular, da posição de Descartes quando escreveu o Discurso. Ele também estava consciente de que o conhecimento, como o entendia, devia desprender-se das superstições, dos chavões, das heranças e das crendices. Para abrir-se à confiabilidade, tinha de se basear na evidência – e a evidência mergulhava de cabeça no universo do sensível. Descartes, entretanto, não amparou a integralidade do conhecimento no mundo sensível, como objeta Leibniz. Até para o seu uso, seja porque nunca se desprendeu de todo da tradição, seja porque não confiava somente no encaminhamento lógico do pensamento, aceitava a intuição que o invadia em instantes excepcionais. Basta lhe examinar a biografia. Saberemos como, numa noite de visões, encontrou a chave para desenvolver os seus raciocínios.(vi)

Dando a impressão de uma divergência ultrapassada, inscrita no século XVII e posteriormente posta de lado, o conteúdo da discussão permaneceu na filosofia, separando e designando posturas. Numa polêmica com Popper, Adorno defendeu, na atitude do pensador diante do mundo, a verdade a priori. Argumentava que a sociedade, auscultada, por melhores que se mostrem os mecanismos de aferição, não adianta uma posição autêntica a respeito de seus interesses ou vontades. Nas sondagens de opinião, a pergunta prepara e induz, de modo que, surpreendido, o indivíduo, ou porque não amadureceu o pensamento ou porque se inclina à resposta pela natureza da pergunta, esconde, tergiversa, não expressa o que lhe vai no interior. Adorno privilegia uma contribuição da inteligência, algo que, emergindo da reflexão, manifeste com extrema dose de veracidade o que convém e o que não convém no capítulo da existência. Grandes filósofos, como grandes homens, estariam dotados de tais capacidades. Furtar-se a elas seria o mesmo que assumir-se surdo às vozes da verdade e sonegar-se às contribuições que conduz. O que traz dentro de si pode ultrapassar, em certas circunstâncias, a unanimidade da visão geral. 

Dirão que, como boa parte de seus contemporâneos, em relação ao nosso tempo, Adorno viveu em outra época e estaria ultrapassado, sendo hoje bem mais complexas, mais democráticas, do ponto de vista de uma interpretação, as características da atmosfera social, e portanto do uso da razão, no plano de suas definições ou ausência de definições. Além disso, grandes homens, enquanto categoria, fascinam menos do que outrora, na massa assinalada por uma população de milhões e elevada à condição de sujeito determinante, de certa maneira, na lei do lucro, da produção de comodities e de conceitos. Dos mais simples aos mais sofisticados tecidos do pensamento, não há porque privilegiar tratamentos: tudo deve submeter-se ao crivo do mercado como qualquer sapato ou eletrodoméstico. O contexto teria mudado, os postulados também. 

Até que ponto, contudo, as idéias se deixam superar?

Se as vinculássemos a um anel temporal (e algumas vêm de Platão e Aristóteles), prendendo-as ali para só retirá-las por curiosidade arqueológica, o conjunto do que se produziu numa época não nos interessaria. Como resultado, correríamos um enorme risco e perderíamos uma porção ponderável de uma herança rica e fértil. Além de nada assegurar, é claro, a justiça das posições daqueles que se lhe opõem ou negam utilidade prática. Para que lado se inclinaria a razão, Locke ou Leibniz, Popper ou Adorno?

Ainda hoje parece difícil saber.

Sartre fundamentou igualmente a base de seu posicionamento intelectual em idéias provenientes de seu exercício pessoal e sua situação no mundo. É daí que retira a substância de suas concepções e a originalidade do seu existencialismo e do seu marxismo. Quando começa a construir uma arquitetura filosófica, o choque de um pequeno trauma de rua, como acontece com Roquentin, em A náusea (obra de juventude, não menos definidora por causa disso), um papel que se pega ou não se pega no meio de um passeio, desencadeia uma elaboração em torno da liberdade que transcende as fronteiras do indivíduo, embora comece nele. Admitindo a veemência do que as coisas, incluindo os objetos, uma árvore, por exemplo, têm para transmitir, desde que paremos para observá-las, a seu ver a peça chave do que impulsiona nosso processo de compreensão, sua alavanca, e, na mesma, o exercício da vontade, é o futuro. Diz ele:

Voltemos à vontade. Eu constato que sua estrutura essencial é a transcendência, porque ela visa um além que só pode estar no futuro. Mas esta transcendência supõe um dado a transcender. A vontade tem necessidade do mundo e da resistência das coisas. Ela tem necessidade disso não apenas como um ponto de apoio para atingir seu objetivo, mas essencialmente em si mesma, para ser vontade. Somente com efeito a resistência de um real permite distinguir o que é possível do que é, e de projetar para além do que é o possível.(vii)
Em outros termos: nada do que esteja apenas no presente nos satisfaz ou explica. Ao contrário. O futuro pode justificar um estado de coisas; o presente, não. O horizonte de possibilidades, a redenção posta no amanhã sustentou, com efeito, condições de vida terríveis. Os mesmos indivíduos que a suportaram não o fariam movidos por um estado de estagnação e ausência de perspectivas, por mais que, numa retórica dominante, repetissem ser o mesmo o melhor e o bom ou o único possível. O sonho das revoluções, instalando-se, como se instalou, em nações pobres e precárias, prometia a aurora de um novo dia e falou sempre em sacrifícios como o preço a pagar pela certeza da vitória ou da construção do socialismo. O capitalismo valeu-se de ideologias semelhantes. Insinuava-se e se insinua como um degrau, graças à linha naturalmente evolutiva do avanço tecnológico, na escala do progresso. Embora desempregasse (e desempregue) e conduzisse a exploração a limites do intolerável, como se verifica através dos largos bolsões de miséria, ontem como hoje, em tensa convivência com a riqueza e suas exibições, a redenção que prometia se situava e se situa no amanhã de bens materiais.

É claro que o passado, por seu turno, converge para a mente e se projeta como possibilidade. Parte do que se deixou fica e retorna ou funciona como inspiração no que elaboramos sobre o presente ou sobre o futuro. Possui traços conservadores e progressistas. Princípios de morte e de vida, na luta que travam, impregnam a atualidade, qualquer que seja ela, com os seus sabores e venenos. Mas Sartre parece estar com a razão ao escolher o caminho para frente como uma forma de expressão graças à qual em grande parte pensamos. Entre as duas alternativas, o problemático é o presente, modelo sempre instável e insatisfatório para que nos acomodemos e o transformemos em ideal. Transformá-lo em definitivo permanece fora de questão, qualquer perspectiva soando melhor, mais convidativa e menos reacionária. Que nos apresentem o impossível, menos o dia de hoje como a da mágica solução. Mesmo quando desejamos muito acreditar, não conseguimos. Logo percebemos a falsidade da sugestão e a rejeitamos.

Não é fácil, cabe reconhecer, quando se trata da verdade, escolher os instrumentos de investigação. À maneira de cegos que só enxergam por clarões, nada nos chega com nitidez no quesito da existência, qualquer instrumento inventado não passando de um modo de prospecção, quando muito uma verdade estatística. Limites se misturam e nos confundem. Para organizá-los e interpretá-los construímos as ciências. E que método devemos empregar?

A historiografia, bem como a sociologia ou a filosofia não se valiam de princípios baseados no critério da ambigüidade. Esta representava uma categoria da arte. Estourar os núcleos do que é e apontá-los sem receio de falsear não faz parte da sua linguagem. É preciso dizer sem dizer. Nunca pareceu conveniente, muito menos útil, entretanto, empregar a ambigüidade como meio de entender aquelas áreas afeitas à prática da definição conceitual e da dissecção, sobretudo depois da expansão do conhecimento científico e da irradiação de seus postulados. Menos relevante ainda, como guia de entendimento, mostrava-se a ambigüidade na fase da construção de uma filosofia da história, a partir da Revolução francesa e suas conseqüências, quando se efetuou a crítica do passado pós-renascentista e os modos de vida que instituiu. De que adiantaria sugeri-la ou defendê-la diante de uma situação determinada como a que se impôs no escravismo, no imperialismo, no nacionalismo?

O senhor e o escravo são seres humanos; semelhantes por essência. Biologicamente, não diferem. Por outro lado, o fato de que um escravo pode se tornar senhor, e vice-versa, não modifica o elemento de determinação do que representam. A partir desta situação, separam-se e divergem, pouco importando a base de identidade física que os une. Imbuídos de sua condição, pensam e agem, tão díspares como díspares podem ser um homem e animal. É o que explica a teorização discriminatória com que toda engrenagem de um sistema econômico se sustentou e persistiu. Uma vez escravo, mesmo liberto,a imagem de subalterno se sustenta, gruda e não se retira. Continua no interior do processo de emancipação ou da mudança na legislação. Negar a evidência é fechar os olhos para a eficácia das pressões sociais e do poder de transcendência que atravessa gerações. Por isso, mostram-se lentas e difíceis as teses de independência e alforria.

No quadro das nações, como no quadro das pessoas, não basta uma constituição legal para afirmar a noção de liberdade.

Se atende aos requisitos de uma narrativa literária, a noção de ambigüidade se presta mal, ou imperfeitamente, adotada na sociologia ou na história, disciplinas que necessitam de precisão para que retirem coerência da confusão caótica e apresentem hipóteses inteligíveis. Que a ambigüidade, como a ironia, participam da vida e constituam formas intermediárias de significação, não se discute. Mesmo como figuras literárias comunicam alguma coisa de concreto no conjunto de meios que utilizamos para ocupar nosso lugar ao sol. Valem menos se tomadas ao pé da letra para se transformarem no veículo da compreensão e no conteúdo dos resultados.

Detendo-se num personagem de Simone de Beauvoir, Sartre, para nos manter no mesmo autor, registra um comentário estimulante da escritora relativo às discussões que estamos travando. Afirma ela, sobre a existência, que estaríamos cercados de irrealizáveis. Queria com isso mencionar a quantidade de objetos existentes nos quais podemos pensar de longe e descrever mas ver jamais. Eles estão ao alcance da mão. Solicitam nosso olhar, nós nos voltamos para mirá-los e nada encontramos. Trata-se de um saber que se liga a objetos que nos dizem respeito. São ingredientes daquilo que constituímos, não obstante invisíveis ou infactíveis, vivências que não se desencadearam e se fixaram no limite.

Acontece-me por exemplo dizer: tudo o que eu queria em minha juventude, eu tive mas não da maneira como quis. Isto, eu penso, em comparação com o que me lembro ter querido no que obtive. Eu penso mas não vejo. Parece sempre que poderíamos redobrar nossa alegria de ter efetuado um empreendimento olhando este sucesso através das nossas esperanças e nossos temores passados: eu desejava tanto e eis que tive. Mas na maioria dos casos, é uma coisa impossível.(viii)

Somos o que realizamos mas somos ainda, então, o que poderíamos ter realizado. Somos os irrealizáveis. Este é o ingrediente que se infiltra na arte e nos retorna através dela.

A observação fornece uma pista, senão um encaminhamento para as nossas questões (se é a totalidade, se é fragmento ou se são ambos que correspondem à verdade do que significamos), na medida em que, por meio
dela, visitam-nos impressões de um grande poder. Os irrealizáveis sugerem não apenas o que poderia ter sido e não foi. Alargam nosso horizonte e entretecem o concreto ao abstrato. Explicam o romance e a poesia, as situações vividas ou não vividas. Em parte, pelo que poderíamos ter sido e não fomos ou não somos, reunimos uma riqueza na qual não avança um imaginário desprovido de sentido de realidade, mas, sobretudo, uma forma de pensar e de ser. Isso no plano individual. No geral, cada uma das pessoas que conhecemos ou entram em nosso universo por quaisquer das portas abertas a que têm acesso (a história, o jornalismo, a TV, o cinema, a literatura, a pintura, a escultura, etc.) adquirem algum direito de posse sobre nosso psiquismo e o transformam, compõem, caracterizam, aumentam ou retraem o círculo onde giramos. São para nós tão irrealizáveis quando irrealizáveis os conteúdos vitais apontados por Sartre e Simone de Beauvoir.

Os irrealizáveis participam, por conseguinte, da realidade. Graças a eles ultrapassamos limitações e adquirimos possibilidades fora de questão, se fosse outra a maneira de nos posicionar. A conseqüência é que multiplicamos o número de sentidos e de órgãos com que contamos. Os braços e pernas com os quais nos movemos, nossos olhos, nossos sabores, nossa audição, nossa visão, etc. crescem e se agigantam em  proporções inumeráveis. É o motivo pelo qual falamos do mundo como propriedade nossa e nunca como entidade à parte, estrangeira e inexplicável, em cuja face nada nos identifica. Por mais severos que nos mostremos no que se refere a ele, por mais aviltados que nos sintamos no calor da luta, algo nos diz que somos uma parte do mesmo e lhe damos, em nossa medida, maior ou menor contribuição. Etienne de la Boetie, ao comentar sobre o exercício da dominação, exatamente por isso, não se eximiu de responsabilidade e não eximiu a ninguém. Afirmam que o tirano tem dois braços e duas pernas, dois olhos, um nariz e uma boca, salienta ele, mas o que conto nele são muitos braços, pernas, olhos, narizes e bocas...

A afirmação e a negação desse “mundo” misturam-se numa ambigüidade envolvente e contagiante. Isso sem dúvida. Ao mesmo tempo, na maior rejeição, sabendo-nos parte do conjunto, se queremos mudar e transformar as condições que se instalam e se anunciam para o futuro, é para a totalidade – e não para o fragmento ou o meu pequeno quintal – que nos refugiamos quando sonhamos.

A poesia, tanto quanto o romance, exemplifica a postura. Inúmeros são os exemplos que dela tiramos. Claro que a arrogância modernista de abarcar e sintetizar, esgotar o existente e o não existente, camuflou muitas vezes semelhante princípio. Também é certo que, desde Dante, traduzir os irrealizáveis numa única narrativa, uma narrativa capaz de dizer tudo e significar a contemporaneidade dos homens, representou um esforço que não se restringiu a dois ou três autores. Examinada como um todo, isso a que chamamos literatura compôs um painel enfático do que fomos, do que somos e do que poderemos ser, queiramos ou não. Sem jamais nos tornarmos ficção, vemos seus personagens como os nossos irrealizáveis, através de um procedimento de troca e de esperança. O fragmento, portanto, toca, ainda que de leve, com freqüência, na totalidade.

Está talvez mais explicitado agora porque o trabalho de Locke, privilegiando a esfera do sensível para a emergência das idéias, como uma fonte na qual as colhemos, ajudou a libertar a humanidade das limitações em que se encontrava e abriu-lhe uma trilha que, uma vez transposta, tal a imensidão de sua riqueza, não teria retorno. Ao fazê-lo, colocou-nos diante de uma aventura marcada pela multiplicidade. Deixaríamos a unidade para trás, atordoados, muitas vezes, pela quantidade de descobertas e sugestões que teríamos de testar sobre modos de ser, como ser e o que desejar. Emancipados, os fragmentos ocuparam a cena. Até podemos escutar, fechando os olhos, o ruído dos ossos estalando, como imaginamos a dor de um crescimento em direção à maturidade e sua afirmação, livre das fantasias infantis. Dores e ossos comporão, como a Guernica, de Picasso, o efeito, às vezes bom, às vezes lamentável, de um tipo de ação que já há certo tempo cortou suas formas de dependência com Deus e com o sobrenatural. Havia interesse na dor, logo se descobriu, apesar de sua aversão à beleza e aos antigos modos de conceber a estética. Ela acrescentava informações que de outra forma permaneceriam ocultas ou latentes. Ainda hoje experimentamos um sentimento de curiosidade dilacerada sentindo-a tão próxima e tão alheia, tão aviltante, tão desumana e tão nossa. O romantismo de Schlegel, em O dialeto dos fragmentos, como o entusiasmo que o marca, não teria surgido não fosse essa descoberta.(ix) As revoluções muito menos teriam sido possíveis, com suas enormes barrigas gerando filhos e netos até as beiradas de ontem...

Clara, ademais, pode ter se tornado a posição de Leibniz ou de Adorno ou de Sartre e suas zonas de reserva. Afinal não se esgotou o elenco de possibilidades do que somos ou do que queremos ser. E um olhar que se debruça sobre algo ou alguém, ainda que a hipótese da essência ou da alma não passe de uma enganação, um irrealizável, neles pode encontrar muita coisa, além de uma vontade de viver e dos obstáculos que enfrentamos para colocá-la em prática.

Ronaldo Lima Lins é Professor da UFRJ

Notas
(i). JABÈS, Edmond. Chanson pour le retour des hirondelles. In: Le Seuil. Le sable. Paris: Poésie/Gallimard, 1990, p. 53. A tradução ficaria assim:
Se eu te tomasse os braços/E os cortasse em quatro/Tu terias tantos braços/Como se fosses quatro.

(ii). BHABHA. Homi K. O lugar da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 19.

(iii). BHABHA, Homi K. Idem, p. 47.

(iv). LOCKE, John. An essay concerning human understanding. Londres: Everyman, 1996, p. 17. A tradução é nossa.

(v). LEIBNIZ. Gottfried Wilhelm. Nouveaux essais sur l’entendement humain. Cronologia, bibliografia, introdução e notas de Jacques Brunschwig. Paris: GF-Flammarion, 1990, p. 37-38. A versão para o português é nossa.

(vi). Cf. LEWIS, Geneviève Rodis-. Descartes, uma biografia. Trad. Joana Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Record, 1996.

(vii). SARTRE, Jean-Paul. Carnets de la drôle de guerre. Paris: Gallimard, 1955, p. 224. Tradução nossa.

(viii). SARTRE, Jean-Paul. Carnets de la drôle de guerre, p. 422. A tradução é nossa. Sartre tira suas deduções do personagem Elizabeth, do romance L’invité, de Simone de Beauvoir, publicado em 1943.

(ix). SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.


Resumo
O texto que aqui se apresenta realiza uma reflexão em torno de conceitos da pósmodernidade, tais como multiplicidade, ambigüidade, hibridismo etc. Para fazê-lo, fundamenta-se num percurso traçado pela filosofia a partir de Locke e das posições que adota sobre as idéias do homem e suas origens.

Palavras-chave
Pós-modernidade, ambigüidade, totalidade.


Résumé
Cet article propose une réflexion au tour de concepts de la post-modernité, dont la multiplicité, la totalité, l’ambiguité, l’hibridisme. Pour le faire, cherche les chémins qui nous mènent à la philosophie depuis Locke et les positions qu’il adopte vis-à-vis les idées de l’homme et ses origines.

Mots-clés
Post-modernité, ambiguité, totalité.

Nenhum comentário