Vida de boneca quebrada
Conto para a seção Fantásticos, por Celly Monteiro*.
"Tinha aquele olhar sonhador de quem tinha contemplado o céu de perto. Era mesmo um lunático, ela sabia."
A colocaram na vitrine, assim ninguém percebia que estava quebrada. Veio com defeito de fábrica. Uma perna solta. Mas na vitrine ninguém percebia, e ainda servia para atrair compradores. Dali ela via o mundo, os passantes apressados, os olhares compridos dos pequeninos. Às vezes sorria, quase sempre resolvia. Eles entravam. “Eu quero aquela” e apontava o dedo diminuto em sua direção. O contentamento fazia bater seu coração de plástico. “Aquela não serve, veio com defeito” “Ah!” Mas não fazia diferença. Sempre escolhia outra e o contentamento era o mesmo. Se tivesse glândulas lacrimais a boneca choraria. Polimérico sintético era um material frio, e ainda por cima durava muito poluindo o mundo. Não sabia para quê durar tanto se ainda tinha vindo com defeito. E de fato, estava ali desde muito tempo. Acabava vendo todos irem embora um dia. Mas não dava para sentir saudade. Os passantes passavam apressados. Aprendeu que tudo passava... menos ela.
Até o belo astronauta passou. Era feito daquele mesmo material que ela, porém lhe parecia que tinha sido de poeira das estrelas. Tinha aquele olhar sonhador de quem tinha contemplado o céu de perto. Era mesmo um lunático, ela sabia. Nunca havia saído antes da fábrica de brinquedos. Pra ele nunca importou aquela perna quebrada. Quando a viu lhe lançou aquele mesmo olhar sonhador, e lhe chamou de princesa das galáxias. Fazia de tudo para arrancar-lhe risadas. Saía de sua caixa à noite para ir visitá-la. Cantava trovas de amor. Da princesa, o astronauta tornou-se menestrel. Mas também aquela felicidade durou pouco, logo encontrou comprador. E o inevitável aconteceu. Desde então o coração de plástico também tomou defeito. Mas ela sabia que tinha sido bem feito, desde o principio fora impossível aquele amor, não deveria era ter se permitido se iludir. Romance de loja de brinquedos não pode se consumar. Mesmo que o destino os unisse no mesmo lar, os seus sacos de brinquedos não seriam os mesmo. E um amor alimentado por encontros furtivos era a coisa sofrida e perigosa de se concretizar. Ainda por cima era quebrada, não havia nenhuma chance de alguém lhe comprar. O sofrimento foi merecido. Aprendeu que era perigoso se enganar. Se vida de brinquedo não é fácil, imagina de boneca quebrada.
Mais um dia, com efeito. O dono olha o rendimento satisfeito. Sorri para sua boneca quebrada. Tão bonita, mas com defeito. Ao menos para alguma coisa servia. Apaga as luzes e fecha as portas. Escuro, solidão e silêncio. Até outro dia que será daquele mesmo jeito, enquanto que uma redoma de vidro a separa do mundo. Mas fazer o quê? Ninguém quer uma boneca que veio com defeito.
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¹Biografia: "Celly mora em Aracaju, Sergipe é formada em Gestão de Turismo. Começou a escrever aos quatorze anos para concorrer a um concurso literário escolar, e desde então, não parou mais. Possui contos publicados em três antologias. Beijos e Névoas, Poções encantos e assombrações e Beijos e Sangue. Possui um blog onde expõe seus contos de cunho fantástico."
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Crédito da imagem:
boneca simpática, por Bruno Amorim
Certamente, poucos lugares são mais apropriados para a fantasia do que uma loja de brinquedos. Nos nossos sonhos infantis, nenhum lugar merece mais uma vida noturna do que este. Mas, pena, até nos recantos da fantasia há desilusões amorosas. Impossívele star impune a elas.
ResponderExcluirBelo Texto.
O realismo fantástico é uma coisa fascinante quando bem conduzido numa narrativa. Esse é um caso de encher os olhos. Lindo o conto! Abraços. paz e bem.
ResponderExcluirObrigada Amancio e Cacá pelos comentários. Estou feliz que tenham gostado. Comunidade Benfazeja agradeço a divulgação!
ResponderExcluirAbraços!
Lindo texto, parabéns! Sucesso na sua longa jornada!
ResponderExcluirComo ja lhe disse e repito, adorei esse conto doce e triste, são palpaveis a sensação da boneca,uma graça de historia!
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