poética literaruta angolana brasileira
Artigo acadêmico: "O preto em movimento: os ecos do discurso poético da Negritude angolana na música popular brasileira", porAna Lidia da Silva Afonso¹
¹UFF
A criança que foge da polícia amedrontada pode ser uma criança qualquer da comunidade que já está acostumada com as arbitrariedades cometidas por parte dos representantes desta Instituição, ao entrar nas periferias, daí a necessidade de fuga para não sofrer represálias sem sentido. Contudo, justapondo o trecho do poema de Neto com o do rap dos Racionais MC’s, pode-se criar uma outra leitura dos versos acima
expostos:
Referências bibliográficas:
DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano I. Lisboa: Plátano Editora, 1989.
LARANJEIRA, Pires. A negritude africana de língua portuguesa. Porto: Edições Afrontamento, 1995.
MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
MEA, Giuseppe (org.). Poesia angolana de revolta. Porto: Paisagem Editora, 1975.
NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática, 1985.
ROCHA, Janaina, DOMENIK, Mirella & CASSEANO, Patrícia. Hip Hop: a periferia grita. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: de índios, negros e mestiços. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.
WISNIK, José Miguel. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1999.
Material Fonográfico:
MV BILL. Falcão: o bagulho é doido. Universal Music, 2006.
RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Zâmbia e Cosa
Nostra Fonográficas, 2002. 2 compact Disc.
_________________. Racionais mc’s. São Paulo: Zâmbia, 1994.
i DAYRELL, 2005.
ii RACIONAIS, 1994.
iii No livro Hip Hop - a periferia grita, de Janaina Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano, as
autoras destacam a releitura dada aos quilombolas na atualizade. Segundo as autoras “em suas letras, MV
Bill mostra que é um exemplo de quilombola urbano” (2001, p. 121). As músicas evidenciam, em alguns
momentos, as infelicidades da guerra do tráfico, em outros prega a paz e convocam os negros a resistirem
contra a opressão.
iv LARANJEIRA, 1995.
v Idem, ibidem, p. 427.
vi MEA, 1975, pp. 181-182.
vii MARGARIDO, 1980, p. 62.
viii RACIONAIS, 1994.
ix NETO, 1985, p. 12.
x RACIONAIS, 1994.
xi Idem, ibidem.
xii NETO, op. cit., p. 100.
xiii MV BILL,: 2006.
Tem que ser sangue bom com atitude
Saber que a caminhada é diferente
pra quem vem da negritude.
MV BILL
¹UFF
Esta comunicação é parte de nossa pesquisa de dissertação de mestrado e pretende realizar uma leitura comparada entre o discurso poético da negritude angolana e os encontrados nas letras de rap brasileiro. Tal proposta surge, dentre outras coisas, a partir de pistas deixadas por pesquisadores como Juarez Dayrelli, que afirma ser o rap portador de marcas da tradição oral africana. As letras de rap servem de instrumento de reivindicação dos jovens inseridos nos guetos negros urbanos no Brasil.
Ao mencionar a importância do estilo de vida rap na abordagem da temática negritudinista, Dayrell afirma que as letras de rap procuram resgatar a imagem de heróis negros, sobretudo os afro-brasileiros, como uma forma de tentar reconstruir a História, contada na maioria das vezes sob o olhar do branco — “Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee / Zumbi, um grande herói, o maior daqui / São importantes pra mim”ii.
Identificados como “quilombolas urbanos”iii, os jovens negros ligados ao movimento hip hop resgatam o herói Zumbi como personagem capaz de atualizar e reacender discussões ideológicas de resistência e luta pela liberdade de ser, pleiteada nos diversos movimentos negros que surgem ao longo da História.
Ao tratar do processo de representação discursiva do negro nos textos da negritude de língua portuguesa, Pires Laranjeiraiv fala do surgimento de códigos míticosimbólicos, na escrita de diversos poetas, como forma de valorizar personalidades negras e seus legados.
Segundo Laranjeira, a reprodução simbólica da imagem de tais personagens tem um objetivo essencial: destacar suas histórias de sucesso. A preocupação de resgatar a imagem destes heróis teria o fim de “integrar os seus nomes no discurso, em sinal de louvor, admiração e reiterar o mito, mas também indicar que o negro africano pode alcançar o mesmo patamar de sucesso”v do homem branco.
No caso da poesia angolana, um bom exemplo do uso da iconicidade como forma de exaltação e valorização do negro é o poema “Mamã Negra”, de Viriato da Cruz. Nele, o poeta abre ao leitor a possibilidade de fazer uma recapitulação histórica dos momentos mais importantes de lutas dos negros espalhados pela diáspora, através da citação de vários ícones dos principais movimentos que surgiram nas Américas durante o século XX:
[...]
Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais dos seringais dos algodoais...
Vozes das plantações da Virgínia
dos campos das Carolinas
Alabama
Cuba
Brasil
Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos eitos das pampas das usinas
Vozes do Harlem District South
Vozes das sanzalas
Vozes gemendo blues, subindo do Missisipi, ecoando
[dos vagões.
[…]
Vozes de toda a América. Vozes de toda a África.
Vozes de todas as vozes, na voz ativa de Langston
na bela voz de Guillén...
Pelo teu dorso
Rebrilhantes dorsos aos sóis fortes do mundo
Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com suor amaciando as mais ricas terras do mundo
Rebilhantes dorsos (ai a cor desses dorsos...)
Rebrilhantes dorsos torcidos no tronco, pendentes da força caídos por Lynch.
Rebrilhantes dorsos (ah, como brilham esses dorsos),
ressuscitados com Zumbi, e, Toussaint alevantados.
Rebrilhantes dorsos...
[...]vi
Atenção especial deve ser dada ao resgate do herói Zumbi, colocado no texto através da palavra “ressuscitados”, na posição de fundador de uma trajetória que culmina no movimento negritudinista angolano — “Rebrilhantes dorsos (ah, como brilham esses dorsos), / ressuscitados com Zumbi”.
O herói Zumbi, recuperado por Viriato da Cruz como figura fundamental nos movimentos de resistência, é o principal ícone apresentado nas letras de rap brasileiro — “Zumbi, um grande herói, o maior daqui”.
Outro tema recorrente nas letras de rap é a cisão da cidade, temática que aparece também na literatura angolana. Conforme Alfredo Margaridovii ao dizer que “nos bairros de Luanda, capital de Angola, ao lado dos 70 000 brancos da cidade, mais de 200 000 seres humanos de origem étnica diversa viviam no que se chamavam bairros de lata”.
É no espaço cidade que, segundo Margarido, a poesia angolana assume a feição da revolta, passando rapidamente do discurso individual para o coletivo, com o intuído de criar uma consciência capaz de libertar o homem negro do estado de alienação.
A fala poética dedicada ao homem africano traz em alguns poemas o tema da solidariedade com “os negros de todo o mundo”, convocando os filhos de África da diáspora a se unirem em torno de um mesmo ideal. Afinal não importa onde estejam — Angola, Cabo Verde, Brasil, etc. — é o homem branco colonizador que aparece em posição de superioridade perante o negro.
Nos discursos poéticos que evidenciam os musseques angolanos e nos que retratam as favelas brasileiras pode-se observar o desfile de personagens que vivem o drama cotidiano que envolve um clima de tensão por uma série de situações de violência e constrangimento impingidos aos moradores destes locais.
Em seu texto “Fim de semana no parque”, os Racionais MC’sviii procuram falar, sobretudo, pela garotada e para elas, com o intuito de chamar a atenção para importância de lutar para reverter o quadro de miséria atual, afinal, criança é sinônimo de futuro:
[...]
Tô cansado dessa porra de toda essa bobagem
Alcoolismo, vingança, treta, malandragem
Mãe angustiada, filho problemático
Famílias destruídas fins de semana trágicos
O sistema quer isso a molecada tem que aprender
Fim de semana no Parque Ipê.
[...]
Um dos signos da violência no espaço favela é representado por uma das instituições agenciadas pelo Estado — “Polícia a morte, polícia socorro”. Nesta perspectiva, o texto assume o caráter de denúncia, uma vez que começa a desvelar o sentimento de insegurança em que vivem os indivíduos destas comunidades, que não
encontram proteção nem por parte da Instituição que deveria trabalhar para o bem estar da população como um todo.
As contradições e sentimento de insegurança esboçados na letra dos Racionais MC’s, é semelhante ao apresentado na poesia “Sábado nos musseques”, da obra Sagrada Esperança, do poeta Agostinho Netoix. O horror diante da ação policial, um dos traços de similitude, é expresso pelo sujeito poético através de versos que mostram estes homens desprovidos de quaisquer sentimentos humanitários:
[...]Ansiedade
no homem fardado
alcançando outro homem
que domina e leva aos pontapés
e depois de ter feito escorrer sangue
enche o peito de satisfação
por ter maltratado um homem
[...]
Nestes lugares onde os mecanismos de subsistência são os mais variados, um relato, em especial nos chamou a atenção: a figura do menino marginal. Em Neto, a construção desta personagem não aparece de maneira explicita, uma vez que nos versos — “ansiedade / na humilde criança / que foge amedrontada do polícia / de serviço”, não aparece nenhum vocábulo capaz de expressar claramente o envolvimento desta criança
em atitudes erradas.A criança que foge da polícia amedrontada pode ser uma criança qualquer da comunidade que já está acostumada com as arbitrariedades cometidas por parte dos representantes desta Instituição, ao entrar nas periferias, daí a necessidade de fuga para não sofrer represálias sem sentido. Contudo, justapondo o trecho do poema de Neto com o do rap dos Racionais MC’s, pode-se criar uma outra leitura dos versos acima
expostos:
[...]
No último natal papai Noel escondeu um brinquedo
Prateado, brilhava no meio do mato
Um menininho de 10 anos achou o presente
Era de ferro com 12 balas no pente
E fim de ano foi melhor para muita gente
[...]x
Muitos destes meninos-homens que são obrigados a amadurecer muito cedo, na tentativa de sobreviver nos contextos onde estão inseridos, não encontram outro caminho além da marginalidade.
Outra contribuição para o fim trágico de muitos indivíduos das comunidades carentes é a falta de políticas públicas que os possibilitem almejarem um futuro melhor, acabando por arrastá-los para um caminho, na maioria das vezes, sem volta, quando na verdade seus anseios são projetados, única e exclusivamente, para o desejo de uma vida melhor — “Eles também gostariam de ter bicicleta / De ver seu pai fazendo cooper tipo
atleta / Gostam de ir ao parque se divertir / E que alguém os ensinasse a dirigir”.
Nas linhas finais dos dois poemas, o mesmo desejo expresso de formas diferentes. Nos Racionais a convocação da união de esforços para criar mecanismos para afastar os moradores da periferia do álcool e das drogas, uma forma de levá-los ao exercício da cidadania. Na poesia de Agostinho Neto, manifesto no desejo de alcance do estatuto de cidadão — “Nos homens / ferve o desejo de fazer o esforço supremo / para que o Homem/ renasça em cada homem”.
Os dois discursos revelam a periferia como espaço de resistência e de luta pela legitimação dos direitos à uma vida melhor, não só do homem negro, mas de todos os que estão imersos naqueles espaços desumanos.
Nas falas dos sujeitos poéticos, observa-se o desejo de dar visibilidade a personagens excluídos da cena social. No caso do Brasil invisibilidade que é escamoteada através do falso discurso da “democracia racial”. Discurso este que os Racionais MC’s faz questão de ironizar na letra “Racistas Otários”xi — “O Brasil é um
pais de clima tropical / Onde as raças se misturam naturalmente / E não há preconceito racial / Há, há, há, há, há”.
No rap afirmação do direito de ser é expresso no discurso do enunciador, na maioria das vezes em 1ª pessoa, como um processo de tomada de consciência de toda a trajetória histórica do negro ao longo da História, responsáveis por “criar no espírito criar no músculo criar no nervo”xii do homem negro o sentimento engajado de luta pela legitimação de sua cidadania. Neste sentido afirma MV Bill:
Não sou o movimento negro
Sou o preto em movimento
Todos os lamentos (me fazem refletir)
Sobre a nossa História
Marcada com glórias
Sentimento que eu levo no peito é de vitória
[...]xiii
O principal sinal da atitude engajada do sujeito poético aparece logo no título da música, “Preto em movimento”, da qual extraímos o fragmento acima. Ser o preto em movimento e não o movimento negro, não expressa um olhar de desaprovação quanto a este e sim a constatação de que, apesar de todas as vitórias alcançadas por todos os que lutaram até aqui pelas causas negras, a batalha ainda esta longe de acabar, uma vez que o contexto de desigualdade pouco ou quase nada se alterou.
Nas letras de MV Bill, Racionais MC’s, em especial, pode-se observar os ecos de discursos como o de Viriato da Cruz, Agostinho Neto e outros poetas que produziram textos de viés negritudinistas. Neles é possível perceber a contundência das falas que não abrem mão de evidenciar que, ao longo da História, o preto sempre esteve em movimento na luta por sua inserção como sujeito histórico.
Referências bibliográficas:
DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano I. Lisboa: Plátano Editora, 1989.
LARANJEIRA, Pires. A negritude africana de língua portuguesa. Porto: Edições Afrontamento, 1995.
MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
MEA, Giuseppe (org.). Poesia angolana de revolta. Porto: Paisagem Editora, 1975.
NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Ática, 1985.
ROCHA, Janaina, DOMENIK, Mirella & CASSEANO, Patrícia. Hip Hop: a periferia grita. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: de índios, negros e mestiços. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.
WISNIK, José Miguel. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1999.
Material Fonográfico:
MV BILL. Falcão: o bagulho é doido. Universal Music, 2006.
RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Zâmbia e Cosa
Nostra Fonográficas, 2002. 2 compact Disc.
_________________. Racionais mc’s. São Paulo: Zâmbia, 1994.
i DAYRELL, 2005.
ii RACIONAIS, 1994.
iii No livro Hip Hop - a periferia grita, de Janaina Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano, as
autoras destacam a releitura dada aos quilombolas na atualizade. Segundo as autoras “em suas letras, MV
Bill mostra que é um exemplo de quilombola urbano” (2001, p. 121). As músicas evidenciam, em alguns
momentos, as infelicidades da guerra do tráfico, em outros prega a paz e convocam os negros a resistirem
contra a opressão.
iv LARANJEIRA, 1995.
v Idem, ibidem, p. 427.
vi MEA, 1975, pp. 181-182.
vii MARGARIDO, 1980, p. 62.
viii RACIONAIS, 1994.
ix NETO, 1985, p. 12.
x RACIONAIS, 1994.
xi Idem, ibidem.
xii NETO, op. cit., p. 100.
xiii MV BILL,: 2006.
Nietzsche dizia que o mundo é um imenso pântano e que a arte é a orquídea colorida e bela que nasce no alto da árvore podre.
ResponderExcluirDigo então que BLOGS DE POESIA SÃO ORQUÍDEAS NO PÂNTANO DA WEB.
Convido a ler poesia da minha autoria, escrita ontem 05/03/2011. Se gostar comente e divulgue:
http://valdecyalves.blogspot.com/2011/03/canto-vida-peregrina.html