I Concurso Literário Benfazeja

Adormecido


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Conto, por Tiago Correa.



"Todos os porres não fariam o menor efeito de absolvição. Todas as linhas escritas por mim, não me dariam novamente o objetivo"


Ultimamente, no decorrer dos dias, eu ando meio estranho. Não o ato em si de andar, caminhar e passear, se refere cem por cento ao lado emocional, sentimental. Porém, difere de carência obsessiva ou doentia. Nunca fui assim e acho que esse tipo de sentimento não leva a lugar algum.

O que venho sentindo há alguns dias é algo muito mais forte que uma simples saudade ou remorso. É um sentimento puro que surge do ímpeto companheirismo e abala, avassala, me impede de respirar tranquilamente, fico com ela em minhas lembranças de uma forma tão verdadeira que meus poros chegam a arrepiar-se.

Acordo pela manhã com o som da televisão alta. Não me lembrava em que momento havia deixado ligado. Como a janela do meu quarto estava fechada, obviamente impedia os raios do sol de entrarem, mas percebia a claridade do dia. Olhei no relógio que marcava dez e dez da manhã. Fiquei pensando como o tempo passa rápido demais. Há doze horas atrás eu me mantinha escrevendo e corrigindo textos. Agora, doze horas a frente, já estava acordado novamente e pegando um cigarro que deixei em cima da estante de livros. Acendi e fiquei relembrando meus momentos de infância quando ficava jogando futebol na calçada. Naquela época eu imaginava incessantemente que, quando fosse adulto, encontraria minha alma gêmea em algum bar, boteco, danceterias ou pesquisando algum livro na biblioteca. Acho que sempre fui um romântico nato. Não sei me descrever por completo.

Na tela da tevê passava um show de uma banda de blues. Daqueles que te fazem flutuar. Ainda com o cigarro soltando fumaça, me dirijo até a janela e abro totalmente. O sol estava mais brilhante, mais quente e mais belo. As pessoas que caminhavam lá embaixo nas calçadas iam e vinham de todos os lugares. Suas expressões faciais eram de todos os tipos e maneiras: uma moça rindo ao telefone. Poderia estar conversando com seu príncipe encantado e ele lhe desejando um bom dia. Mais a frente uma senhora fazia sinal com a mão para o motorista do ônibus, deveria estar indo ao médico. Sua testa pregueada demonstrava dor. Idade é fogo. Na sinaleira, um homem anão com olhos fundos de sono esperava para atravessar. Quando ele esfregou os olhos com as duas mãos e bocejou, contive meu riso. Já passei por isso várias vezes, meu caro. Acho que o mais interessante de ser visto naquele momento, foi um mendigo que dançava conforme os sons das buzinas iam tocando. Se algum motorista buzinasse duas vezes seguido, o mendigo chacoalhava seu traseiro duas vezes. Se outro soava três, o mendigo dava duas reboladas e um passo à frente. Teve horas que até rodopio em torno dele mesmo chegou a dar. E mesmo sendo um louco e diferente de todos que estavam em volta, percebia-se a alegria que reluzia do seu rosto.

Jogo o cigarro fora.

Coloco a cafeteira para funcionar e vou escovar os dentes. A escova passa na língua, nos dentes frontais, laterais, os do fundo e termina na língua novamente. Dou uma cuspida esbranquiçada e enxáguo a boca. Vou ao vaso dar a primeira mijada do dia, puxo a descarga e me preparo para o café.

Ao servir a xícara, fico pensando nos acontecimentos que ocorreram comigo enquanto eu estava na companhia de Jurema. Se fosse há alguns meses atrás, essa solidão que sinto hoje misturada com saudade, não seria vista por mim e nem originada por alguma atitude minha. Estaria nos braços dela. Eu seria acordado com um beijo nos lábios e cafuné. Seria visto com olhos de admiração. Teria meu valor e seria visto com algum valor por quem sempre os mereceu.

Jurema era simplesmente fantástica com seus cabelos avermelhados e cheirosos. Como eu sou relativamente alto, sempre que me abraçava em Jurema, sua cabeça batia exatamente em meus ombros, podendo aconchegá-la perfeitamente em meus braços e protegê-la de qualquer mal que pudesse vir pela frente.

Sentei-me à mesa da cozinha e fiquei relembrando os tempos que dormíamos juntos, nas caricias, nos afagos, nas horas de conversa, nas horas de prazer, na sua face, no seu cheiro e no tom meigo de sua voz. Num amor que aflorava dentro de mim e que eu não comentava com Jurema, não desabafava, não expulsava. Talvez por medo ou por receio que algo pudesse dar errado. Naquela época meus pensamentos eram voltados total e incondicionalmente para o bem estar de Jurema. Acho que foi a primeira vez que tanto amei alguém durante a vida inteira.

Este fato aconteceu há alguns meses atrás. Logo depois, fiquei sabendo que seu coração havia sido preenchido por outro alguém. Minha esperança de tentar reatar com jurema havia ido ao ralo, ao esgoto e desgosto de, quem sabe, pela minha falta de capacidade em tentar consertar qualquer erro meu.

A vez que conheci a mãe de Jurema, - uma moça robusta e aparência jovial, foi em um final de semana após um almoço num bar próximo a sua casa. Nos abraçamos após a apresentação de Jurema. As palavras que ela havia dito a sua mãe bateram tão profundamente em mim que, por pouco, não pedi a permissão da sogra em casar com sua filha.

“— Esse é meu namorado, mãe. O nome dele é Jimmy.”

Namorado... namorado... namorado. Aquela foi a melhor palavra que ela poderia ter dito. Finalmente eu estava sendo feliz nesse mundo e não sabia.

Termino de tomar meu café e acendo outro cigarro enquanto me dirijo para a sacada do apartamento. Me debruço no peitoril. Como eu pude ser tão burro naquele tempo? Todos os porres não fariam o menor efeito de absolvição. Todas as linhas escritas por mim, não me dariam novamente o objetivo de tê-la em meus braços. Todas as lágrimas despejadas durante noites, não iria transformá-la em Jurema de carne e osso. Ela continuaria eternizada em meu ser. Continuaria viva dentro de mim. Meu olhar vazio e cinza acompanha a fumaça azulada do cigarro enquanto os movimentos das pessoas lá embaixo continuam violentos. Se ela estivesse aqui do meu lado jogando palavras de todos os tipos, eu veria essas pessoas agitadas de forma graciosa e com esperança. Abraçaria em torno de seu pescoço e diria que a amava. Que nunca a esqueci e que agora, deste momento em diante, minha vida estaria completa. Não me faltaria mais nada daquilo que chamamos de felicidade.

Não sei se é típico de pessoa eternamente apaixonada, mas faria o que fosse para poder ter aqueles olhos diante de mim novamente. Ter a companhia daquela alma exuberante enquanto sua mão passaria pela minha cabeça me chamando de qualquer coisa carinhosa. O que ela quisesse. Ela teria esse direito. Me entregaria de corpo e alma. Faria cartas perfumadas para exalar meu cheiro pelo quarto inteiro. Fazendo-a não me esquecer, sentir que tem alguém que a admira mais que qualquer coisa e que também a respeita. Que sabe esperar os momentos certos de agir. Que tem com quem contar em todas as horas. Que tem alguém disposto a mudar sua vida para melhor através de um sentimento avassalador, porém, verdadeiro, veementemente parecido com as estrelas postas todas as noites no céu.

Jogo o cigarro quase apagado dentro do cinzeiro e vou me deitar um pouco. Certa tristeza havia chego. Um fracasso, uma perda, uma derrota, um descuido.

Acabo pegando no sono minutos depois. O turbilhão de sentimentos causou o meu cansaço. Igual a um dia ensolarado que de repente surgem nuvens escuras com vento.

Hoje já fazem quase um ano que guardo todos esses sentimentos aqui dentro, louco de vontade de serem despejados nos ouvidos de Jurema. Sentir que algo nos aguarda. Não quero mostrar por simples auto-orgulho. Quero satisfazer o desejo do meu coração e sentir-me feliz novamente como um banho gelado no verão. Quero ser seu companheiro e anjo da guarda. Ver aquele sorriso lindo acompanhado de um olhar de admiração. Fazê-la feliz e amada.

Nos meus sonhos, me encontrei com Jurema. Nos abraçamos de uma forma única. Não queria desgrudar. Senti novamente seu cheiro e o toque de sua pele. Desabafei, chorei e me abri.

Tudo isso, depois de um tempo, voltou a ficar mais quente que nunca. Vi de uma vez por todas que ela era a mulher da minha vida. O amanhã sempre nos guarda vitórias. Mas enquanto o amanhã não chega, vou tentando manter minha calma e tranqüilidade. Mesmo sabendo que tudo aqui dentro continua adormecido.

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Créditos da imagem:
o meu sofá, por Manuel Peixoto.

Um comentário:

  1. Muito massa o conto! Tenho certeza que muitas pessoas iriam se identificar com o protagonista. Saudade de uma paixao perdida, e auto-flagelação por sentir-se unico culpado da perda!

    Parabens!

    Abração

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