Peripécias do Tércio
Conto (Parte 2), por Cláudia Banegas.
"Com o rosto apoiado no volante, se assustou com outra pancada seca no vidro. O velhinho voltara..."
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Finalmente, rumo ao sossego. E imaginar que logo no primeiro dia de férias, quase entrara em uma fria. Depois de quatro horas dirigindo, estava quase chegando ao seu destino, a fazenda do tio Ary.
O trajeto todo fora tranquilo. No carro tocavam músicas de Jack Johnson. Se sentia bem "zen". Faltavam poucos quilômetros quando ouviu um ruído forte.
"Mas... o que foi isso?! Ah, não! Será que foi um trovão?! Não pode ser... não pode chover logo agora!"
Mas choveu. Choveu não, o céu desabou. A estrada de terra em minutos virou um mar de lama. O carro atolou.
_ Mas não é possível!
Procurou o celular, em vão. Tinha deixado em casa. Nada de tecnologia, certo? Também, naquele fim de mundo, quem iria acudi-lo? Seria mais fácil aparecer o Kraken (*) do que um reboque. Não tinha escolha. Ficaria ali, esperando a chuva passar.
O tempo passou, mas a chuva não. Começou a ficar preocupado. Onde diachos se metera? Depois de tantos anos sem viajar, tinha resolvido logo visitar o tio Ary e a tia Cema. Ele só queria paz, ouvir os pássaros cantando nas árvores pela manhã, sentir o cheirinho do café fresquinho. As fotos que tiraria comprovariam toda a aventura.
Começou a escurecer e aí sim, ele entrou em pânico.
"Meu Deus, vai vir uma enxurrada...eu não mereço isso, não mereço!"
Bateu com a testa no volante umas duas vezes, foi então que lembrou que carro tem buzina.
_ Mas é claro! A buzina! Alguém vai me ouvir, com certeza!
Começou a tocar a buzina feito um doido. Minutos depois, avistou um borrão se aproximando. Não conseguia enxergar direito. Seria alguém ou um boi perdido?
O borrão foi se tornando uma silhueta humana. Um velhinho franzino, com uma grossa capa de chuva e de galochas bateu na lateral do carro. Tércio abaixou o vidro apenas o suficiente para ver que o velhinho não tinha dentes.
_ Incaiô, moço?
_ É...encalhei...
"Não é óbvio? Ou ele acha que estou esperando a carroça?"
_ Olha, estou aqui há um tempão, estou indo pra fazenda do Seu Ary. O senhor conhece?
_ Si conhessu...? O Ary é meu cumpradri.
_ Ah, que ótimo. Então, o senhor pode me ajudar?
O velhinho não respondeu. Deu meia volta e voltou aos poucos a ser um borrão.
"E agora, o que foi que eu fiz? Falei algo errado?"
_ Ei, moço! Aonde o senhor vai? Não vai embora não!
"Fala sério, isso só pode ser praga do Pepeu!"
Com o rosto apoiado no volante, se assustou com outra pancada seca no vidro. O velhinho voltara. Nas mãos, uma capa de chuva e um par de galochas.
_ É pru sinhô. Vamo andanu...
_ Andando?!
_ Ué, moço, si o sinhô num avoa, anda.
"Hmm..tá certo. Não sou o Nathan Petrelli(**). Sou só um cara da cidade querendo o sossego do campo! Que mal há nisso?"
_ O sinhô sai logu, pru quê vai decê...
"O que vai descer?!"
Tércio vestiu a capa e calçou a galochas. Então sentiu o carro deslizar um pouquinho.
"Não...não, não! Foi só impressão, isso não pode estar acontecendo!!"
Saiu do carro, segurando a mochila, se sentindo um verdadeiro ogro. As galochas eram maiores do que os seus pés e a capa quase o engolia.
_ Vamos?! Só falta pegar as malas no carro...
_ Vai dá tempu naum, moço. Tá decendu...
"Como não vai dar tempo? O que ele quer dizer com não vai dar tempo? Isso são horas de ter diarréia?"
Antes que terminasse de pensar, o carro começou a deslizar em direção a uma encosta, ao lado da estrada, que ele não tinha visto. O desespero foi total.
_ Meu carro! Meu carro tá afundando na lama! Ahhhhhh!
Impotente, viu o carro mergulhar na lama, como um morango no chocolate. [Chocolate de novo?]
Junto com o carro, foram-se as malas. Estava chocado.
O velhinho tentou consolar.
_ Pudia sê pió.
Tércio mal conseguia falar.
_ Pior? Como podia ter sido pior? O senhor sabe quanto eu gastei naquele carro? - balbuciou.
_ O sinhô pudia tá dentru dele, ué.
"Hmm, é... podia ter sido pior."
_ É, o senhor tem razão.
Com a mochila (felizmente impermeável) nas costas, Tércio-ogro seguia o velhinho-gnomo. Na mente, uma certeza. Nem tão cedo comeria chocolate.
(*) Kraken – espécie de lula ou polvo gigante que ameaçava os navios no folclore nórdico no séc. XVI – ver filme “Piratas do Caribe 2”
(**) Nathan Petrelli é um personagem de ficção interpretado por Adrian Pasdar, na série de TV Heroes. Ele tem a habilidade de voar.
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Créditos da imagem:
The best thing one can do when it's raining is to let it rain, por Kris Bradley
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