Considerações sobre os afetos na obra de Sigmund Freud e de Jacques Lacan: a angústia
Considerações sobre os afetos na obra de Sigmund Freud e de Jacques Lacan: a angústia (i)
Resumo
Abstract
Nadiá Paulo Ferreira
Professora Titular de literatura Portuguesa/UERJ
Psicanalista do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, seção Rio de Janeiro
nadia@corpofreudiano.com.br
Resumo
O objetivo desse texto é repensar os pares opositivos afetividade X racionalidade, interioridade X exterioridade e subjetividade X objetividade a partir da obra de Sigmund Freud e do ensino de Jacques Lacan, dando destaque à angústia, em função de minha pesquisa sobre a obra de Gregório de Matos e Guerra e Nelson Rodrigues.
Palavras-chave: Incorporação. Expulsão. Recalque. Denegação. Angústia. Abstract
This text rethinks oppositive pairs such as affectioness X rationality, interiorness, subjectivity X objectivity, exteriorness based on the works of Sigmund Freud and the writings of Jacques Lacan. Anguish is highlighted due the object of my present research: the reading of the oeuvre of Gregório de Matos e Guerra and Nelson Rodrigues.
Key words: Introjection. Expulsion. Repression. Denegation. Anguish.
Os afetos e os mitos sobre a subjetividade e a objetividade
Freud e Lacan foram acusados de não dar importância aos afetos. Os defensores dessa opinião alegam que a psicanálise foi o último estertor do racionalismo.
O ditado “Freud explica”, versão popular dessa crença, se sustenta na suposição de que a psicanálise desvenda os mistérios da afetividade, submetendo-os ao império da razão. Dessa concepção advém o emprego com sentido pejorativo do verbo intelectualizar, contrapondo-se ao sentir.
O primeiro golpe ao famoso axioma de Descartes — Penso, logo sou — foi dado por Freud, quando anunciou ao mundo que, para além da razão, há o inconsciente. O segundo foi dado por Lacan, quando, num primeiro momento, segundo seu testemunho, utilizou como guia de retorno a Freud a lingüística e a antropologia estrutural. Com Saussure aprendeu a reconhecer a estrutura da linguagem no inconsciente. Das teses de Lévi-Strauss, construídas a partir dos estudos lingüísticos de Hejlmslev, sobre as alianças e as relações de parentesco, regidas pelas estruturas da linguagem e pelas leis sociais, concluiu pela prevalência do simbólico.
Entre o homem e seu corpo ergue-se o muro da linguagem, abrindo-se uma incisão sem sutura. É certo que Freud demonstrou que o inconsciente tem as suas leis de funcionamento. E Lacan acrescentou que essas leis são as mesmas que regem a linguagem. Ou seja, o inconsciente tem as suas razões. Só que essas, além de não levarem ao conhecimento do “eu sou”, subvertem a concepção de razão, como faculdade de conhecimento que possibilita o acesso a toda a verdade.
A psicanálise não é a versão descarteana do século XIX. Quando Freud se dedicou ao estudo dos sonhos, para descobrir o regime do inconsciente, esbarrou com alguma coisa que permanece desconhecida, o que fez com que recorresse à metáfora “umbigo do sonho” para indicar uma fronteira que não pode ser ultrapassada.
Lacan interpreta essa metáfora freudiana como sendo a indicação do real: o que ex-siste e não cessa de comparecer como impossível de ser simbolizado. Enigma sem decifração é a marca registrada do real. Aliás, a inclusão do real na estrutura subjetiva indica a natureza do humano, que não é outra senão a castração(iii) . Nós, seres falantes, somos efeitos de uma operação simbólica, que ordena o imaginário e que não fecha jamais esse buraco chamado real. Nós, seres de linguagem, portamos um furo e uma falta sem resgates. Justamente por isto ou por causa disto, desejar — lamentar o que falta — é nossa sina. E os afetos nada mais são que os invólucros que giram em torno do desejo, da castração e da excentricidade da sexualidade (pulsão).
Do corpo e da alma, afetados pela intervenção do significante (simbólico), nasce um sujeito e se inicia uma história singular, que será marcada, entre outras coisas, por uma série de manifestações anímicas (afetos), que comparecem tanto no sonho quanto na vigília. Assim, medo, cólera, culpa e angústia passam também a fazer parte do cotidiano, envolvendo as relações familiares, profissionais e os laços produzidos pelo amor (Eros) e pela amizade (philia). Eis a definição freudiana dos fenômenos psíquicos que afetam o corpo. Os afetos e suas múltiplas faces se articulam com o mecanismo do recalque, que agencia a conversão na neurose histérica (paralisias motoras, contrações, ações ou descargas involuntárias, dores, alucinações); o deslocamento na neurose obsessiva (idéias e hábitos obsedantes) e a transformação de um conflito em angústia. O que se converte se desloca e se transforma em afetos? O sexual como energia libidinal canalizada pelas pulsões.
Em relação às neuroses (histérica e obsessiva) e às fobias, Freud observa que determinados afetos sempre se repetem associados a um sintoma: sensações de angústia, de fadiga e de um peso na cabeça ligados ao cheiro de pudim queimado (Caso Miss Lucy)(iv); medo de ser mordido por um cavalo (Caso pequeno Hans)(v); pavor de ser devorado por um lobo (Caso Homem dos Lobos)(vi); medo de que alguma coisa ruim fosse acontecer com seu pai e com a mulher que admirava; impulsos compulsivos, tais como cortar a garganta com uma lâmina; e criações de algumas proibições para si mesmo (Caso Homem dos Ratos)(vii).
Lucy R, Hans, Homem dos Lobos e Homem dos Ratos não só eram surpreendidos pelos afetos, mas também sofriam por causa deles. O que não sabiam era: por que ficavam possuídos por eles, a ponto de serem levados a não fazer o que queriam, a perder o sono, a ficar atormentados? É nesse sentido que Freud afirma que os afetos não são recalcados e, justamente por isto, são sempre conscientes. O que é recalcado e, portanto, fica desaparecido da consciência, são os componentes pulsionais (sexuais) de uma experiência com valor de trauma. Em função disso, os afetos se separam das representações, relacionadas às experiências traumáticas, e se ligam a outras representações, através de uma série de deslocamentos e de substituições. Essa desconexão é o que possibilita a permanência inalterada dos afetos.
Lacan, em seu retorno à obra do criador da psicanálise, faz questão de assinalar que Freud sempre insistiu que os afetos se manifestam à deriva do eu e se apresentam desamarrados, deslocados, loucos e metabolizados, mas nunca recalcados. E acrescenta: o que está recalcado é os significantes que ficaram amarrados a esses afetos. Assim, todo mecanismo afetivo é estrutural, porque remete para a relação do sujeito com o significante.
Freud, depois de confirmar a hipótese de que os afetos se separam das representações (significantes para Lacan), quer dar conta da constituição dos mecanismos que possibilitam essa operação no aparelho psíquico. Constrói, então, a hipótese de que as primeiras relações, que se estabelecem entre o recém-nascido e o mundo, são regidas por duas forças primárias: atração (introjeção/incorporação) e expulsão. Estas forças comandam a primeira construção mítica do fora e do dentro. Lacan acrescenta que essas forças inauguram, simultaneamente, a primeira simbolização, o advento do sujeito e a alienação como marca fundamental do sujeito.
O modo pelo qual se constitui o fora e o dentro subverte as noções correntes de subjetivo e de objetivo. Num primeiro tempo, o que está fora, e, portanto não pertence ao próprio corpo, é introjetado (incorporado), passando a fazer parte dele, desde que seja fonte de prazer. E o que está dentro, mas causa desprazer, é expulso do próprio corpo.
Lacan assinala que esse tempo é marcado pela imagem de um corpo despedaçado, representação que antecede a primeira imagem unitária do próprio corpo. Esta só irá acontecer no estádio do espelho, momento em que se constitui a estrutura do eu, que tem como matriz o imaginário — narcisismo secundário(viii).
A formação do dentro e do fora remete para a fase mais arcaica da história do ser falante e Freud faz questão de grifar que esta fase é regida pelo Princípio do Prazer. O mais intrigante é que a constituição do subjetivo (interioridade) e do objetivo (exterioridade) é concomitante ao nascimento do amor (Eros como tendência para unificação: apropriação/ introjeção) e do ódio (tendência para a destruição: expulsão). É bem verdade que estamos no momento de construção do narcisismo primário (autoerotismo), onde os objetos de interesse passam a ser amados e os objetos indiferentes passam a ser odiados. A origem do amor é, então, marcada pela ambivalência. Assim, no narcisismo primário, amor é sinônimo de incorporação, e ódio é sinônimo de estranhamento.
Muito antes da consciência de si mesmo e, portanto da formação do eu, a sintaxe — ou seja, a estrutura — dos mitos do dentro (afirmação primordial/Bejahung) e do fora (expulsão/Ausstossung) é amalgamada pelos afetos. Isto não seria suficiente para colocar em cheque-mate os ideais de subjetividade, objetividade e autenticidade, tão caros ao ser humano?
Jean Hyppolite, no texto “Comentário sobre a verneinung de Freud”, publicado em Escritos, relaciona essas forças primárias de incorporação e de expulsão aos mecanismos do recalque e da foraclusão. Para Lacan, a afirmação primordial, efeito do juízo de atribuição (interessa X não interessa), deve ser compreendida como o momento de inscrição de um corpo vivo da espécie falante na ordem simbólica. A constituição do primeiro símbolo se realiza no momento em que o seio, como objeto real, se transforma em objeto simbólico. É como signo do amor, isto é, como signo de dom, que o objeto é incorporado. Trata-se, então, de atribuir ao corpo transformado pela intervenção do simbólico uma nova representação. Aqui, entra em cena o juízo de existência. Mas é claro que aí se abre uma dessimetria entre o objeto real e o objeto simbolizado (alucinação do objeto para Freud). Assim, o objeto reencontrado nunca corresponde ao objeto, que, por ter sido simbolizado (alucinado), foi incorporado. Logo, é preciso insistir no retorno e, a cada volta, repete-se a frustração, na medida em que o que é encontrado nunca é o que era esperado. Justamente por isto, Freud fala de objeto para sempre perdido (das Ding) e Lacan elabora o conceito de frustração originária(ix). Para Lacan, é exatamente aqui que se instala o mecanismo do recalque. Onde nada existia (buraco como furo real no imaginário e falta de um significante no simbólico) passa a existir alguma coisa: significantes. Se o primeiro recalque (recalque originário) retira de cena esse buraco e se a lei do recalque, desde Freud, é o retorno do recalcado, é exatamente esse real, sob a forma de buraco, que, por não cessar de retornar, reaparece, sob a forma de angústia de castração(x), para ser denegado. É exatamente isto que Freud chama de Urverdrängt (recalque primordial) na leitura de Lacan. No Seminário 22, R.S.I., na Lição de 18 de fevereiro de 1974, ele afirma que o recalcado primordial é o que Freud designa como o inacessível do inconsciente.
Retorno do recalcado e denegação do recalcado são os mecanismos que constituem a neurose como estrutura. Quanto às psicoses, o que não aconteceu foi a afirmação primordial, ou seja, não se realizou o processo de simbolização, fazendo com que a estrutura da linguagem não seja comandada, orientada e cerceada pelo significante que introduz a Lei (Nome-do-Pai).(xi) É nesse sentido que Lacan afirma que o que não foi simbolizado reaparece no real. As questões referentes à psicose remetem a uma complexidade tal, que exigiria outro um texto. Fica, apenas, essa breve indicação como diretriz de estudo.
Do presente ao passado, muitos anos se passaram. As matrizes, depois de constituídas, não param de funcionar. Ingressamos na decantação da razão ou da afetividade. Dar asas à imaginação, ingressando no inferno ambivalente dos afetos, ou rechaçá-los em nome da razão: eis os mitos de subjetividade (afetividade), objetividade (racionalidade) e autenticidade, tão caros ao Classicismo e ao Romantismo.
Ser ou não ser racional: eis o impasse que perde todo o sentido, depois de Freud ter descoberto as leis que regem o psiquismo do homem. De um lado, o inconsciente e as pulsões, que têm como alvo o gozo. De outro lado, o eu e sua afetação pelo inconsciente, fazendo com que de vez em quando o ser falante tropece com atos falhos, com esquecimentos e com ditos que burlam a intenção do dizer. Isso não pára, porque o eu e suas instâncias ideais (eu-ideal e ideal-do-eu) e imperativa (superego) julgam, rechaçam e insistem permanecer na ignorância pela via do recalque. Isso não pára, porque o inconsciente sempre abriga as exigências pulsionais, porque nele não há lugar para o não.
Aqui, entra em cena o mecanismo da denegação (Verneinung), que é objeto de estudo freudiano, no texto traduzido por A Negativa(xii). O afeto, por ter sido julgado e condenado, é retirado da cena da consciência. Mas, se mesmo assim, o negado reaparece na fala, ele deve mais uma vez ser negado. Negação da negação diz Jean Hyppolite:
O importante — e Freud faz questão de repetir isto, nesse artigo, inúmeras vezes — é que o retorno do recalcado não suspende a ação do recalque. Por quê? Porque o sujeito não reconhece em sua fala o que acabou de dizer. Se o dito coloca em cena o recalcado, o eu, como soldado vigilante, torna sem efeito o que foi dito. Ou, como diz Hyppolite, a denegação é um “modo de apresentar o que se é à maneira do não ser.”(xiv) Os exemplos freudianos auxiliam a compreensão da denegação:
A angústia
Lacan, na Lição de 14 de novembro de 1962, no Seminário 10, A Angústia, afirma que de todos os afetos, a angústia é o que mais explicita os efeitos da estrutura do desejo em suas conexões com a castração e com as pulsões.
Freud relaciona a angústia à castração. Em Inibições, Sintomas e Ansiedade(xviii), reformula a hipótese de que o recalque produz angústia, afirmando que a angústia, compreendida como o medo diante do perigo da castração, é que agencia o recalque.
É bem verdade que, nesse texto, Freud privilegia a formação de sintomas na fobia. A angústia, diante do medo de ser castrado pela mãe (Pequeno Hans) e pelo pai (Homem dos Lobos) produz, simultaneamente, a fobia e o deslocamento do objeto. Assim, mãe e pai são substituídos pelo cavalo e pelo lobo, respectivamente, fazendo com que a angústia de castração seja dirigida para outro objeto. Essa substituição não só evita o conflito do filho com seus pais, mascarando a ambivalência do amor em relação a eles, mas também restringe a angústia a determinados objetos, os quais, ao contrário dos pais, podem ser evitados a partir de certas proibições, como não sair de casa (Pequeno Hans) e não olhar mais para o livro que tinha gravuras de cavalos (Homem dos Lobos).
Lacan, no Seminário 22, R.S.I., na Lição de 17 de dezembro de 1974, comentando o caso do pequeno Hans, afirma que, quando o real é despertado do interior do seu corpo por uma experiência que lhe permitiu a associação entre corpo e gozo fálico, irrompe a angústia em estado puro. A fobia foi o caminho que ele encontrou para “dar corpo ao embaraço que há nesse falo, e para o qual ele inventa uma série de equivalentes, sob a forma de fobia aos cavalos”.
Freud, depois de identificar a causa da angústia com a ameaça de castração, nas fobias, e de tecer várias considerações, descartando-se do ponto vista econômico (quantidade de energia psíquica) e apresentando uma série objeções à teoria do trauma do nascimento (Otto Rank, 1923, O Trauma do Nascimento), coloca a seguinte questão: Por que, nas neuroses histérica e obsessiva, a angústia surge no lugar da dor e do luto, já que estes são as reações afetivas diante da perda do objeto? Essa interrogação conduz Freud ao âmago da questão: nas neuroses, a causa da angústia não é a perda do objeto amado, mas o perigo da perda do amor da mãe, como primeiro objeto de amor. Então, sintetizando, tanto nas fobias quanto nas neuroses, a angústia é uma reação ao perigo: perda do amor na histeria, ameaça da castração nas fobias e medo do superego na neurose obsessiva(xx).
Nesse artigo, duas questões importantes, ainda, são colocadas por Freud: a distinção entre sintoma e angústia; e a relação entre a formação de sintomas e a angústia. O sintoma é uma formação substitutiva que têm uma função defensiva: evitar a angústia. Vejamos os exemplos freudianos: a agorafobia, os rituais obsessivos e a inibição são sintomas e, como tais, protegem o eu da emergência da angústia. Assim, uma pessoa agorafóbica só sai de casa se for acompanhada e um neurótico obsessivo se obriga a lavar as mãos toda vez que toca em algo. Mas se esse for impedido de cumprir seu ritual e aquele for deixado na rua pelo seu acompanhante, imediatamente são tomados pela angústia.
Freud faz questão de grifar que a relação entre sintomas e angústia reside no fato de que aqueles (os sintomas) se constituem para prevenir o eu da angústia de uma coisa que está no lugar de outra coisa. É nesse sentido que se deve entender a definição freudiana de sintoma como formação substitutiva e a de Lacan como símbolo(xxi) . O sintoma tem duplo sentido, porque é, ao mesmo tempo, símbolo de um conflito defunto e símbolo de um conflito presente. Se o sintoma é um símbolo, logo ele só pode ser estruturado como uma linguagem. Mas, como grifa Lacan, o sintoma é uma linguagem “cuja fala deve ser libertada”(xxii).
Se o sintoma vem em defesa da angústia e esta se apresenta desligada de sua causa, que, como vimos, não é outra senão algo que parte do real; logo, o sintoma apresenta uma dupla função defensiva. A primeira função é indicada por Freud como defesa da angústia. A segunda é apontada por Lacan como defesa do desejo. Esbarramos com o desejo e sua interpretação pela psicanálise.
Em Freud, desejo e realização do desejo estão sempre articulados. É nesse sentido que o sonho é definido como sendo a realização alucinatória de um desejo inconsciente. Mas, é claro, uma realização que só pode se apresentar pela via do disfarce. Aliás, a função dos mecanismos de condensação e de deslocamento é a deformação, fazendo com as mensagens oníricas se apresentem como enigmas a serem decifrados. Freud, ao estabelecer as fontes do desejo, que motivam os sonhos, apresenta três espécies de desejo: (1) desejo reconhecido e não satisfeito na vida diurna (Sistema Pré-Consciente); (2) desejo repudiado e, portanto suprimido pelo recalque na vida diurna (desejos que “terão sido forçados a recuar do sistema Pré-Consciente para o Inconsciente, único lugar onde continuam a existir”);(xxiii) (3) desejos que “são inteiramente incapazes de transpor o sistema Inconsciente(xxiv).
Para Lacan, não há realização do desejo, porque a estrutura do desejo se caracteriza pela falta do objeto. Mas se não há o objeto do desejo, isto é, o falo (φ), existem os objetos que causam desejo: os objetos a. Estes também são os objetos da pulsão, aqueles que Freud classifica de parciais e indiferentes. Esta classificação implica que qualquer objeto que satisfaça o alvo pulsional, que é o gozo, pode ser investido de libido. Mas o gozo, ao contrário do desejo, se realiza. Aliás, Lacan afirma, inclusive, que o sujeito goza por desejar. Só que toda experiência gozante é marcada por uma fissura, na medida em que no ser falante o gozo é limitado, cerceado pelo significante. Este é um dos sentidos do axioma lacaniano: todo gozo é fálico. E, justamente por isto, em todo gozo fálico se inscreve uma falta a gozar. Eis outra face da castração.
Realização do desejo para Freud e posição desejante para Lacan, não são a mesma coisa: A experiência freudiana mostra-nos um encaminhamento inteiramente diverso, embora, muito curiosamente, e também de maneira muito notável, o desejo também se apresente nele como profundamente ligado à relação com o outro como tal, apesar de se apresentar como um desejo inconsciente(xxv).
Mas para ambos: é preciso que haja reconhecimento do desejo, é preciso não ceder do desejo. Não há dúvida de que Lacan elaborou uma complexa teoria sobre o desejo. A experiência do desejo se situa no intervalo que se abre entre as transformações das demandas, no decorrer de uma história singular, e a exigência de reconhecimento do outro (exigências de amor). É nessa fenda que o desejo é apreendido como desejo do Outro. É, portanto, no interior do desejo do Outro que o sujeito irá situar seu próprio desejo. Se o desejo só pode se situar nesse espaço (desejo do Outro), logo, necessariamente, ele remete para as primeiras experiências do sujeito com o Outro. Estas são marcadas pela opacidade e pela obscuridade da presença primitiva e onipotente do Outro, onde o sujeito, por seu estado indefeso, fica inteiramente à deriva do desejo do Outro. Nesse sentido, a experiência do desejo é sempre traumática. E a angústia é o afeto que coloca em cena essa experiência do sujeito com seu desejo, sob a forma de desejo do Outro.
Lacan, no Seminário 6, refere-se ao texto O Diabo Enamorado, 1772, de Jacques Cazotte, porque, nele, vamos encontrar uma passagem que ilustra essa experiência traumática. D. Álvaro, narrador e herói da história, conta que é incapaz de descrever o que sentiu ao ouvir ressoar “aquele terrível Che vuoi” (Que queres?)(xxvi). Depois de reunir todas suas forças para dominar o terror (estado de angústia pura), enfrenta o Diabo, que aparece sob a forma de “uma cabeça de camelo tão horrorosa no tamanho como na forma,”(xxvii) e lhe dirige a pergunta: “— Que pretendes tu de mim, temerário, ao mostrares-te sob tão hórrida forma?”(xxviii) E o Diabo responde: “ — Chamaste-me?” Então, trava-se o seguinte diálogo:
Se o desejo do sujeito é o desejo do Outro, logo ele só pode desejar como Outro. Não é isso que acontece, quando a pergunta do Diabo (Outro) — Che vuoi (O que você quer de mim) — retorna para D. Álvaro, exatamente como ele esperava, já que partiu dele a iniciativa de chamá-lo? E mais: a invocação é feita para que o Diabo fique a serviço de quem o chame. Exatamente por isto é preciso se defender, ter garantias. O que está em jogo aqui não é a necessidade de se prevenir do próprio desejo? Só depois de D. Álvaro ter entrado dentro de um pentáculo, com propriedades mágicas, é que ele grita três vezes pelo nome de Belzebu. Por isto, Lacan afirma que a pergunta do Outro (Che vuoi) “é a que melhor conduz ao caminho de seu próprio desejo — caso ele se ponha, graças à habilidade de um parceiro chamado psicanalista, a retomá-la, mesmo sem saber disso muito bem, no sentido de um “Que quer ele de mim”(xxx)?
Belzebu, disfarçado em um lindo pajem e depois na mais bela donzela, desperta o desejo em D. Álvaro pelas mulheres. Mas esse desejo não é reconhecido por ele, porque, em vez de se colocar, como sujeito, na posição masculina, e tomar como seu o desejo do Outro (desejar como Outro), ele se coloca na posição feminina de objeto causa do desejo do Outro. É deste lugar que ele se vê como vítima arrependida da onipotência do Mal. D. Álvaro, como todo bom neurótico, converte a falta, que se inscreve no Outro, em impostura. Ele foi enganado pelo Diabo, aquele que, em sua fantasia, como encarnação do Outro, deveria lhe dar tudo. Então, ele retorna ao lugar imaginário, que lhe é dado pelo desejo materno, lugar de onde nunca saiu: falo no imaginário materno. Assim, ele “irá contrair laços com uma pessoa do belo sexo,”(xxxi) que será escolhida por sua mãe.
O Diabo, mesmo no terreno das histórias fantásticas, não doa o falo, mas engendra a fantasia de realização do desejo. Mas é óbvio que nesse jogo é preciso um pacto, em que o Diabo é quem dá as cartas. Assim, o sujeito, que ofereceu sua vida em troca do falo, não só não recebe o Supremo prêmio, mas também perde a vida.
Na maioria das estórias de terror, quando o Diabo aparece para cobrar seu preço, os personagens alegam que não chegou a hora, porque ainda alguma coisa está faltando. E o sujeito adormecido, mais uma vez, é despertado pelo real que irrompe, sob a forma de um afeto lancinante, colocando-o diante do desaparecimento mais radical, que é a morte. Na narrativa de Cazotte, Belzebu desaparece e D. Álvaro acredita que Deus se compadeceu do seu arrependimento. Ele não se dá conta de que o Diabo lhe deixou queimando nas chamas do seu próprio inferno.
Referências
CAZOTTE, JACQUES. A história do diabo enamorado de Cazotte, seguida de o recibo do diabo de Musset e o diabo engarrafado de Stevenson. Lisboa: Arcádia,1977. Col. Meia-Noite.
FREUD, SIGMUND. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, /s.d./.
JORGE, Marco Antonio e FERREIRA, Nadiá Paulo. Freud criador da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. Col. Psicanálise Passo-a-passo 14.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 4, a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
______. O seminário, livro 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
______. Séminaire 6, Le désir et ses interprétations (O desejo e suas interpretações), 1958-1959, inédito.
______. Séminaire 10, L’angoisse (A angústia), 1962-1963, inédito.
______. Séminaire 22, R.S.I., 1974-1975, inédito.
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
O QUE É UM PAI? Coord. Sérgio Nazar David. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997. Col. Clepsidra 2.
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(i) Este texto foi publicado em O Marrare: Revista do Setor de Literatura Portuguesa, ano 4, número 3, maio de 2003. ISSN 1676-1235.
(ii) A noção de estrutura para Lacan implica o entrelaçamento de três registros: Real (que comparece sob a forma de buraco sem fundo no imaginário e de falta no simbólico), Simbólico (estrutura da linguagem que se assenta no Nome-do-Pai) e Imaginário.(fenômeno ótico e matriz do eu).
(iii) O verbo castrar (do latim castrare) faz parte do código de nossa língua com os seguintes significados, segundo a versão de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em Novo Dicionário da Língua Portuguesa: cortar ou destruir os órgãos reprodutores; capar; impedir a proficuidade ou eficiência; anular ou restringir fortemente a personalidade; eliminar os estames de flor hermafrodita, antes que se abram para soltar o pólen, a fim de se proceder ao cruzamento artificial. Esses significados são inteiramente antinômicos ao conceito de castração em psicanálise. A condição para o ser falante se constituir como sujeito é ter sido inscrito no simbólico, que tem uma estrutura e um suporte: a linguagem e Nome-do-Pai, respectivamente. Nome-do-Pai se refere à função simbólica do pai, que está estreitamente ligada à enunciação da lei, que se dirige à mãe e não ao filho: — Não reintegrarás jamais o teu produto. Diz Lacan: “Em vista disso, a criança é profundamente questionada, abalada em sua posição de assujeito (...). Em outras palavras, é na medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se torna, pura e simplesmente, o desejo da mãe” (LACAN, Seminário 5, 1999, p. 210). Como se vê, castração está diretamente articulada com o desejo e sua estrutura de falta do objeto. V. o livro O que é um pai, 1997.
(iv)“Caso 3 – Miss Lucy R., 30 anos”, 1893. In FREUD, op. cit., v. II. Ver também o capítulo “Clínica da Histeria” do livro Freud: criador da psicanálise, 2002.
(v) “Pequeno Hans Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, 1909. In FREUD, op. cit., v. X.
(vi) “História de uma neurose infantil”, 1918 [1914]. In FREUD, op. cit. v. XVII).
(vii) “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, 1909. In FREUD, op. cit., v. X.
(viii)Ver “O estádio do espelho como formador da fundação do eu”. In LACAN, 1998.
(ix) Ver Seminário 4, A relação de objeto, 1985.
(x) É nesse sentido que Lacan, no Seminário 22, R.S.I., na Lição de 17 de dezembro de 1974 (inédito), define a angústia como sendo a invasão do real no imaginário.
(xi) O significante que inscreve um corpo vivo na ordem simbólica, tornando-o humano, é o Nome-do-Pai. A função desse significante é ser o representante do Outro, como lugar dos significantes, sob a forma da lei. Quem transmite esse significante é o Desejo-da-mãe, na medida em que a mãe, como função, é, para todos os recém-nascidos, o primeiro representante do Outro. Desejo-da-Mãe, diz Lacan, é “um rótulo, uma designação simbólica do que constatamos na prática, isto é, a promoção correlata e cindida do objeto do desejo em duas metades irreconciliáveis” (LACAN, 1999, p.339).
(xii) Esse texto se encontra no volume XIX, da Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
(xiii) HYPPOLITE, p. 897. In LACAN, 1998.
(xiv) Idem, ibidem, p. 895.
(xv) FREUD, v. XIX, Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
(xvi) V. em Freud, principalmente, os seguintes textos: As Neuropsicoses de Defesa (tentativa de formulação de uma teoria da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias, 1894; A Interpretações dos Sonhos, 1900-1901; 1916; Inibições, Sintomas e Ansiedade, 1926 [1925].
(xvii) V. principalmente em Lacan: Seminário 6, O desejo e suas interpretações, 1957-1958, ainda inédito, onde se dedica ao estudo do sentimento de culpa, na leitura de Hamlet, que se encontra nas Lições de 4, 11 e 18 de março de 1959; Seminário 10, A Angústia, 1962, também, ainda inédito.
(xviii) Apesar de angústia ser considerada melhor tradução do que ansiedade, a edição brasileira das obras completas de Freud mantém a palavra ansiedade.
(xix) Inibições, Sintomas e Ansiedade. In FREUD, op. cit., v. XX. Mantive a palavra ansiedade só no título, modificando-a, na citação, para angústia (v. nota 17). Depois do Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, a proposta de Lacan para a tradução de Trieb por pulsão e não por instinto foi aceita quase que por unanimidade. O mesmo ocorre com recalque e sua tradução por repressão. As palavras grifadas nas citações indicam as alterações que realizei.
(xx) Idem, ibidem.
(xxi) V. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, em os Escritos.
(xxii) LACAN, 1998, p. 270.
(xxiii) FREUD, A Interpretação dos sonhos. Segunda Parte, op. cit., v. V.
(xxiv) Idem, ibidem.
(xxv) LACAN, 1999, p.332.
(xxvi) CAZOTTE, 1977, 33.
(xxvii) Idem, ibidem, p. 33.
(xxviii) Idem, ibidem, p. 34.
(xxix) Idem, ibidem, p. 34.
(xxx) LACAN, 1998, p. 829.
(xxxi) CAZOTTE, op. cit., p.124.
O ditado “Freud explica”, versão popular dessa crença, se sustenta na suposição de que a psicanálise desvenda os mistérios da afetividade, submetendo-os ao império da razão. Dessa concepção advém o emprego com sentido pejorativo do verbo intelectualizar, contrapondo-se ao sentir.
O primeiro golpe ao famoso axioma de Descartes — Penso, logo sou — foi dado por Freud, quando anunciou ao mundo que, para além da razão, há o inconsciente. O segundo foi dado por Lacan, quando, num primeiro momento, segundo seu testemunho, utilizou como guia de retorno a Freud a lingüística e a antropologia estrutural. Com Saussure aprendeu a reconhecer a estrutura da linguagem no inconsciente. Das teses de Lévi-Strauss, construídas a partir dos estudos lingüísticos de Hejlmslev, sobre as alianças e as relações de parentesco, regidas pelas estruturas da linguagem e pelas leis sociais, concluiu pela prevalência do simbólico.
Entre o homem e seu corpo ergue-se o muro da linguagem, abrindo-se uma incisão sem sutura. É certo que Freud demonstrou que o inconsciente tem as suas leis de funcionamento. E Lacan acrescentou que essas leis são as mesmas que regem a linguagem. Ou seja, o inconsciente tem as suas razões. Só que essas, além de não levarem ao conhecimento do “eu sou”, subvertem a concepção de razão, como faculdade de conhecimento que possibilita o acesso a toda a verdade.
A psicanálise não é a versão descarteana do século XIX. Quando Freud se dedicou ao estudo dos sonhos, para descobrir o regime do inconsciente, esbarrou com alguma coisa que permanece desconhecida, o que fez com que recorresse à metáfora “umbigo do sonho” para indicar uma fronteira que não pode ser ultrapassada.
Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido (“A interpretação dos sonhos: Segunda Parte”, capítulo VII, “O Esquecimento dos Sonhos”. In FREUD, Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. V. O grifo é meu).
Lacan interpreta essa metáfora freudiana como sendo a indicação do real: o que ex-siste e não cessa de comparecer como impossível de ser simbolizado. Enigma sem decifração é a marca registrada do real. Aliás, a inclusão do real na estrutura subjetiva indica a natureza do humano, que não é outra senão a castração(iii) . Nós, seres falantes, somos efeitos de uma operação simbólica, que ordena o imaginário e que não fecha jamais esse buraco chamado real. Nós, seres de linguagem, portamos um furo e uma falta sem resgates. Justamente por isto ou por causa disto, desejar — lamentar o que falta — é nossa sina. E os afetos nada mais são que os invólucros que giram em torno do desejo, da castração e da excentricidade da sexualidade (pulsão).
Do corpo e da alma, afetados pela intervenção do significante (simbólico), nasce um sujeito e se inicia uma história singular, que será marcada, entre outras coisas, por uma série de manifestações anímicas (afetos), que comparecem tanto no sonho quanto na vigília. Assim, medo, cólera, culpa e angústia passam também a fazer parte do cotidiano, envolvendo as relações familiares, profissionais e os laços produzidos pelo amor (Eros) e pela amizade (philia). Eis a definição freudiana dos fenômenos psíquicos que afetam o corpo. Os afetos e suas múltiplas faces se articulam com o mecanismo do recalque, que agencia a conversão na neurose histérica (paralisias motoras, contrações, ações ou descargas involuntárias, dores, alucinações); o deslocamento na neurose obsessiva (idéias e hábitos obsedantes) e a transformação de um conflito em angústia. O que se converte se desloca e se transforma em afetos? O sexual como energia libidinal canalizada pelas pulsões.
Em relação às neuroses (histérica e obsessiva) e às fobias, Freud observa que determinados afetos sempre se repetem associados a um sintoma: sensações de angústia, de fadiga e de um peso na cabeça ligados ao cheiro de pudim queimado (Caso Miss Lucy)(iv); medo de ser mordido por um cavalo (Caso pequeno Hans)(v); pavor de ser devorado por um lobo (Caso Homem dos Lobos)(vi); medo de que alguma coisa ruim fosse acontecer com seu pai e com a mulher que admirava; impulsos compulsivos, tais como cortar a garganta com uma lâmina; e criações de algumas proibições para si mesmo (Caso Homem dos Ratos)(vii).
Lucy R, Hans, Homem dos Lobos e Homem dos Ratos não só eram surpreendidos pelos afetos, mas também sofriam por causa deles. O que não sabiam era: por que ficavam possuídos por eles, a ponto de serem levados a não fazer o que queriam, a perder o sono, a ficar atormentados? É nesse sentido que Freud afirma que os afetos não são recalcados e, justamente por isto, são sempre conscientes. O que é recalcado e, portanto, fica desaparecido da consciência, são os componentes pulsionais (sexuais) de uma experiência com valor de trauma. Em função disso, os afetos se separam das representações, relacionadas às experiências traumáticas, e se ligam a outras representações, através de uma série de deslocamentos e de substituições. Essa desconexão é o que possibilita a permanência inalterada dos afetos.
Lacan, em seu retorno à obra do criador da psicanálise, faz questão de assinalar que Freud sempre insistiu que os afetos se manifestam à deriva do eu e se apresentam desamarrados, deslocados, loucos e metabolizados, mas nunca recalcados. E acrescenta: o que está recalcado é os significantes que ficaram amarrados a esses afetos. Assim, todo mecanismo afetivo é estrutural, porque remete para a relação do sujeito com o significante.
Freud, depois de confirmar a hipótese de que os afetos se separam das representações (significantes para Lacan), quer dar conta da constituição dos mecanismos que possibilitam essa operação no aparelho psíquico. Constrói, então, a hipótese de que as primeiras relações, que se estabelecem entre o recém-nascido e o mundo, são regidas por duas forças primárias: atração (introjeção/incorporação) e expulsão. Estas forças comandam a primeira construção mítica do fora e do dentro. Lacan acrescenta que essas forças inauguram, simultaneamente, a primeira simbolização, o advento do sujeito e a alienação como marca fundamental do sujeito.
O modo pelo qual se constitui o fora e o dentro subverte as noções correntes de subjetivo e de objetivo. Num primeiro tempo, o que está fora, e, portanto não pertence ao próprio corpo, é introjetado (incorporado), passando a fazer parte dele, desde que seja fonte de prazer. E o que está dentro, mas causa desprazer, é expulso do próprio corpo.
Lacan assinala que esse tempo é marcado pela imagem de um corpo despedaçado, representação que antecede a primeira imagem unitária do próprio corpo. Esta só irá acontecer no estádio do espelho, momento em que se constitui a estrutura do eu, que tem como matriz o imaginário — narcisismo secundário(viii).
A formação do dentro e do fora remete para a fase mais arcaica da história do ser falante e Freud faz questão de grifar que esta fase é regida pelo Princípio do Prazer. O mais intrigante é que a constituição do subjetivo (interioridade) e do objetivo (exterioridade) é concomitante ao nascimento do amor (Eros como tendência para unificação: apropriação/ introjeção) e do ódio (tendência para a destruição: expulsão). É bem verdade que estamos no momento de construção do narcisismo primário (autoerotismo), onde os objetos de interesse passam a ser amados e os objetos indiferentes passam a ser odiados. A origem do amor é, então, marcada pela ambivalência. Assim, no narcisismo primário, amor é sinônimo de incorporação, e ódio é sinônimo de estranhamento.
Muito antes da consciência de si mesmo e, portanto da formação do eu, a sintaxe — ou seja, a estrutura — dos mitos do dentro (afirmação primordial/Bejahung) e do fora (expulsão/Ausstossung) é amalgamada pelos afetos. Isto não seria suficiente para colocar em cheque-mate os ideais de subjetividade, objetividade e autenticidade, tão caros ao ser humano?
Jean Hyppolite, no texto “Comentário sobre a verneinung de Freud”, publicado em Escritos, relaciona essas forças primárias de incorporação e de expulsão aos mecanismos do recalque e da foraclusão. Para Lacan, a afirmação primordial, efeito do juízo de atribuição (interessa X não interessa), deve ser compreendida como o momento de inscrição de um corpo vivo da espécie falante na ordem simbólica. A constituição do primeiro símbolo se realiza no momento em que o seio, como objeto real, se transforma em objeto simbólico. É como signo do amor, isto é, como signo de dom, que o objeto é incorporado. Trata-se, então, de atribuir ao corpo transformado pela intervenção do simbólico uma nova representação. Aqui, entra em cena o juízo de existência. Mas é claro que aí se abre uma dessimetria entre o objeto real e o objeto simbolizado (alucinação do objeto para Freud). Assim, o objeto reencontrado nunca corresponde ao objeto, que, por ter sido simbolizado (alucinado), foi incorporado. Logo, é preciso insistir no retorno e, a cada volta, repete-se a frustração, na medida em que o que é encontrado nunca é o que era esperado. Justamente por isto, Freud fala de objeto para sempre perdido (das Ding) e Lacan elabora o conceito de frustração originária(ix). Para Lacan, é exatamente aqui que se instala o mecanismo do recalque. Onde nada existia (buraco como furo real no imaginário e falta de um significante no simbólico) passa a existir alguma coisa: significantes. Se o primeiro recalque (recalque originário) retira de cena esse buraco e se a lei do recalque, desde Freud, é o retorno do recalcado, é exatamente esse real, sob a forma de buraco, que, por não cessar de retornar, reaparece, sob a forma de angústia de castração(x), para ser denegado. É exatamente isto que Freud chama de Urverdrängt (recalque primordial) na leitura de Lacan. No Seminário 22, R.S.I., na Lição de 18 de fevereiro de 1974, ele afirma que o recalcado primordial é o que Freud designa como o inacessível do inconsciente.
Retorno do recalcado e denegação do recalcado são os mecanismos que constituem a neurose como estrutura. Quanto às psicoses, o que não aconteceu foi a afirmação primordial, ou seja, não se realizou o processo de simbolização, fazendo com que a estrutura da linguagem não seja comandada, orientada e cerceada pelo significante que introduz a Lei (Nome-do-Pai).(xi) É nesse sentido que Lacan afirma que o que não foi simbolizado reaparece no real. As questões referentes à psicose remetem a uma complexidade tal, que exigiria outro um texto. Fica, apenas, essa breve indicação como diretriz de estudo.
Do presente ao passado, muitos anos se passaram. As matrizes, depois de constituídas, não param de funcionar. Ingressamos na decantação da razão ou da afetividade. Dar asas à imaginação, ingressando no inferno ambivalente dos afetos, ou rechaçá-los em nome da razão: eis os mitos de subjetividade (afetividade), objetividade (racionalidade) e autenticidade, tão caros ao Classicismo e ao Romantismo.
A Denegação
Ser ou não ser racional: eis o impasse que perde todo o sentido, depois de Freud ter descoberto as leis que regem o psiquismo do homem. De um lado, o inconsciente e as pulsões, que têm como alvo o gozo. De outro lado, o eu e sua afetação pelo inconsciente, fazendo com que de vez em quando o ser falante tropece com atos falhos, com esquecimentos e com ditos que burlam a intenção do dizer. Isso não pára, porque o eu e suas instâncias ideais (eu-ideal e ideal-do-eu) e imperativa (superego) julgam, rechaçam e insistem permanecer na ignorância pela via do recalque. Isso não pára, porque o inconsciente sempre abriga as exigências pulsionais, porque nele não há lugar para o não.
Aqui, entra em cena o mecanismo da denegação (Verneinung), que é objeto de estudo freudiano, no texto traduzido por A Negativa(xii). O afeto, por ter sido julgado e condenado, é retirado da cena da consciência. Mas, se mesmo assim, o negado reaparece na fala, ele deve mais uma vez ser negado. Negação da negação diz Jean Hyppolite:
Literalmente, o que aparece aqui é a afirmação intelectual, mas apenas intelectual, como negação da negação. Esses termos não se encontram em Freud, mas acho que só fazemos prolongar seu pensamento ao formulá-lo dessa maneira. É isso mesmo que ele quer dizer.
Nesse momento (fiquemos atentos a um texto difícil!), Freud vê-se em condições de mostrar como o intelectual se separa [em ato] do afetivo, de formular uma espécie de gênese do juízo, ou seja, em suma, uma gênese do pensamento(xiii).
O importante — e Freud faz questão de repetir isto, nesse artigo, inúmeras vezes — é que o retorno do recalcado não suspende a ação do recalque. Por quê? Porque o sujeito não reconhece em sua fala o que acabou de dizer. Se o dito coloca em cena o recalcado, o eu, como soldado vigilante, torna sem efeito o que foi dito. Ou, como diz Hyppolite, a denegação é um “modo de apresentar o que se é à maneira do não ser.”(xiv) Os exemplos freudianos auxiliam a compreensão da denegação:
O imperativo da consciência moral, ao promover o recalque, expulsa o que viria arranhar uma imagem egóica, conduzindo o sujeito ao caminho da traição de si mesmo, que não é outro senão renunciar ao desejo e ignorar as exigências de suas pulsões. Nesse sentido, a denegação por parte do eu contribui, mais uma vez, para a ignorância de si mesmo, na medida em que inviabiliza o reconhecimento do recalcado. Como se pode falar de liberdade no reino do desconhecimento? Ou, dito de outro modo: como um sujeito pode se posicionar diante das exigências de suas pulsões, se o eu persiste em ignorá-las? Não escolhe, mas sofre. E quanto mais se afeta pelo sofrer, mais cede do desejo e mais se entrega ao gozo, que se transforma em tormento, que consome todos os dias de sua existência. Dos afetos infernais, destaco aquele foi privilegiado por Freud(xvi) e também por Lacan(xvii): a angústia.‘Agora o senhor vai pensar que quero dizer algo insultante, mas realmente não tenho essa intenção.’ Compreendemos que isso é um repúdio, por projeção, de uma idéia que acaba de ocorrer. Ou: ‘O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe’. Emendamos isso para: ‘Então, é a mãe dele.’(xv)
Lacan, na Lição de 14 de novembro de 1962, no Seminário 10, A Angústia, afirma que de todos os afetos, a angústia é o que mais explicita os efeitos da estrutura do desejo em suas conexões com a castração e com as pulsões.
Freud relaciona a angústia à castração. Em Inibições, Sintomas e Ansiedade(xviii), reformula a hipótese de que o recalque produz angústia, afirmando que a angústia, compreendida como o medo diante do perigo da castração, é que agencia o recalque.
Não vale a pena negar o fato, embora não seja agradável relembrá-lo, de que em muitas ocasiões afirmei que no recalque o representante pulsional é distorcido, deslocado, e assim por diante, enquanto a libido que pertence ao impulso sexual é transformada em angústia. Mas agora um exame das fobias, que deve ser o mais capaz de oferecer provas confirmatórias, deixa de sustentar minha asserção; parece, antes, contradizê-la diretamente. (...) Até onde se pode observar no momento, a maioria das fobias remonta a uma angústia dessa espécie sentida pelo ego no tocante às exigências da libido. É sempre a atitude de angústia do ego que é a coisa primária e que põe em movimento o recalque. A angústia jamais surge da libido recalcada. (xix)
É bem verdade que, nesse texto, Freud privilegia a formação de sintomas na fobia. A angústia, diante do medo de ser castrado pela mãe (Pequeno Hans) e pelo pai (Homem dos Lobos) produz, simultaneamente, a fobia e o deslocamento do objeto. Assim, mãe e pai são substituídos pelo cavalo e pelo lobo, respectivamente, fazendo com que a angústia de castração seja dirigida para outro objeto. Essa substituição não só evita o conflito do filho com seus pais, mascarando a ambivalência do amor em relação a eles, mas também restringe a angústia a determinados objetos, os quais, ao contrário dos pais, podem ser evitados a partir de certas proibições, como não sair de casa (Pequeno Hans) e não olhar mais para o livro que tinha gravuras de cavalos (Homem dos Lobos).
Lacan, no Seminário 22, R.S.I., na Lição de 17 de dezembro de 1974, comentando o caso do pequeno Hans, afirma que, quando o real é despertado do interior do seu corpo por uma experiência que lhe permitiu a associação entre corpo e gozo fálico, irrompe a angústia em estado puro. A fobia foi o caminho que ele encontrou para “dar corpo ao embaraço que há nesse falo, e para o qual ele inventa uma série de equivalentes, sob a forma de fobia aos cavalos”.
Freud, depois de identificar a causa da angústia com a ameaça de castração, nas fobias, e de tecer várias considerações, descartando-se do ponto vista econômico (quantidade de energia psíquica) e apresentando uma série objeções à teoria do trauma do nascimento (Otto Rank, 1923, O Trauma do Nascimento), coloca a seguinte questão: Por que, nas neuroses histérica e obsessiva, a angústia surge no lugar da dor e do luto, já que estes são as reações afetivas diante da perda do objeto? Essa interrogação conduz Freud ao âmago da questão: nas neuroses, a causa da angústia não é a perda do objeto amado, mas o perigo da perda do amor da mãe, como primeiro objeto de amor. Então, sintetizando, tanto nas fobias quanto nas neuroses, a angústia é uma reação ao perigo: perda do amor na histeria, ameaça da castração nas fobias e medo do superego na neurose obsessiva(xx).
Nesse artigo, duas questões importantes, ainda, são colocadas por Freud: a distinção entre sintoma e angústia; e a relação entre a formação de sintomas e a angústia. O sintoma é uma formação substitutiva que têm uma função defensiva: evitar a angústia. Vejamos os exemplos freudianos: a agorafobia, os rituais obsessivos e a inibição são sintomas e, como tais, protegem o eu da emergência da angústia. Assim, uma pessoa agorafóbica só sai de casa se for acompanhada e um neurótico obsessivo se obriga a lavar as mãos toda vez que toca em algo. Mas se esse for impedido de cumprir seu ritual e aquele for deixado na rua pelo seu acompanhante, imediatamente são tomados pela angústia.
Freud faz questão de grifar que a relação entre sintomas e angústia reside no fato de que aqueles (os sintomas) se constituem para prevenir o eu da angústia de uma coisa que está no lugar de outra coisa. É nesse sentido que se deve entender a definição freudiana de sintoma como formação substitutiva e a de Lacan como símbolo(xxi) . O sintoma tem duplo sentido, porque é, ao mesmo tempo, símbolo de um conflito defunto e símbolo de um conflito presente. Se o sintoma é um símbolo, logo ele só pode ser estruturado como uma linguagem. Mas, como grifa Lacan, o sintoma é uma linguagem “cuja fala deve ser libertada”(xxii).
Se o sintoma vem em defesa da angústia e esta se apresenta desligada de sua causa, que, como vimos, não é outra senão algo que parte do real; logo, o sintoma apresenta uma dupla função defensiva. A primeira função é indicada por Freud como defesa da angústia. A segunda é apontada por Lacan como defesa do desejo. Esbarramos com o desejo e sua interpretação pela psicanálise.
Em Freud, desejo e realização do desejo estão sempre articulados. É nesse sentido que o sonho é definido como sendo a realização alucinatória de um desejo inconsciente. Mas, é claro, uma realização que só pode se apresentar pela via do disfarce. Aliás, a função dos mecanismos de condensação e de deslocamento é a deformação, fazendo com as mensagens oníricas se apresentem como enigmas a serem decifrados. Freud, ao estabelecer as fontes do desejo, que motivam os sonhos, apresenta três espécies de desejo: (1) desejo reconhecido e não satisfeito na vida diurna (Sistema Pré-Consciente); (2) desejo repudiado e, portanto suprimido pelo recalque na vida diurna (desejos que “terão sido forçados a recuar do sistema Pré-Consciente para o Inconsciente, único lugar onde continuam a existir”);(xxiii) (3) desejos que “são inteiramente incapazes de transpor o sistema Inconsciente(xxiv).
Para Lacan, não há realização do desejo, porque a estrutura do desejo se caracteriza pela falta do objeto. Mas se não há o objeto do desejo, isto é, o falo (φ), existem os objetos que causam desejo: os objetos a. Estes também são os objetos da pulsão, aqueles que Freud classifica de parciais e indiferentes. Esta classificação implica que qualquer objeto que satisfaça o alvo pulsional, que é o gozo, pode ser investido de libido. Mas o gozo, ao contrário do desejo, se realiza. Aliás, Lacan afirma, inclusive, que o sujeito goza por desejar. Só que toda experiência gozante é marcada por uma fissura, na medida em que no ser falante o gozo é limitado, cerceado pelo significante. Este é um dos sentidos do axioma lacaniano: todo gozo é fálico. E, justamente por isto, em todo gozo fálico se inscreve uma falta a gozar. Eis outra face da castração.
Realização do desejo para Freud e posição desejante para Lacan, não são a mesma coisa: A experiência freudiana mostra-nos um encaminhamento inteiramente diverso, embora, muito curiosamente, e também de maneira muito notável, o desejo também se apresente nele como profundamente ligado à relação com o outro como tal, apesar de se apresentar como um desejo inconsciente(xxv).
Mas para ambos: é preciso que haja reconhecimento do desejo, é preciso não ceder do desejo. Não há dúvida de que Lacan elaborou uma complexa teoria sobre o desejo. A experiência do desejo se situa no intervalo que se abre entre as transformações das demandas, no decorrer de uma história singular, e a exigência de reconhecimento do outro (exigências de amor). É nessa fenda que o desejo é apreendido como desejo do Outro. É, portanto, no interior do desejo do Outro que o sujeito irá situar seu próprio desejo. Se o desejo só pode se situar nesse espaço (desejo do Outro), logo, necessariamente, ele remete para as primeiras experiências do sujeito com o Outro. Estas são marcadas pela opacidade e pela obscuridade da presença primitiva e onipotente do Outro, onde o sujeito, por seu estado indefeso, fica inteiramente à deriva do desejo do Outro. Nesse sentido, a experiência do desejo é sempre traumática. E a angústia é o afeto que coloca em cena essa experiência do sujeito com seu desejo, sob a forma de desejo do Outro.
Lacan, no Seminário 6, refere-se ao texto O Diabo Enamorado, 1772, de Jacques Cazotte, porque, nele, vamos encontrar uma passagem que ilustra essa experiência traumática. D. Álvaro, narrador e herói da história, conta que é incapaz de descrever o que sentiu ao ouvir ressoar “aquele terrível Che vuoi” (Que queres?)(xxvi). Depois de reunir todas suas forças para dominar o terror (estado de angústia pura), enfrenta o Diabo, que aparece sob a forma de “uma cabeça de camelo tão horrorosa no tamanho como na forma,”(xxvii) e lhe dirige a pergunta: “— Que pretendes tu de mim, temerário, ao mostrares-te sob tão hórrida forma?”(xxviii) E o Diabo responde: “ — Chamaste-me?” Então, trava-se o seguinte diálogo:
— Então o escravo atreve-se a meter medo ao dono? Se vens para receber as minhas ordens, assume forma conveniente e tom submisso.
— Mestre — disse-me o fantasma — sob que forma me hei-de apresentar para lhe ser agradável?(xxix)
Se o desejo do sujeito é o desejo do Outro, logo ele só pode desejar como Outro. Não é isso que acontece, quando a pergunta do Diabo (Outro) — Che vuoi (O que você quer de mim) — retorna para D. Álvaro, exatamente como ele esperava, já que partiu dele a iniciativa de chamá-lo? E mais: a invocação é feita para que o Diabo fique a serviço de quem o chame. Exatamente por isto é preciso se defender, ter garantias. O que está em jogo aqui não é a necessidade de se prevenir do próprio desejo? Só depois de D. Álvaro ter entrado dentro de um pentáculo, com propriedades mágicas, é que ele grita três vezes pelo nome de Belzebu. Por isto, Lacan afirma que a pergunta do Outro (Che vuoi) “é a que melhor conduz ao caminho de seu próprio desejo — caso ele se ponha, graças à habilidade de um parceiro chamado psicanalista, a retomá-la, mesmo sem saber disso muito bem, no sentido de um “Que quer ele de mim”(xxx)?
Belzebu, disfarçado em um lindo pajem e depois na mais bela donzela, desperta o desejo em D. Álvaro pelas mulheres. Mas esse desejo não é reconhecido por ele, porque, em vez de se colocar, como sujeito, na posição masculina, e tomar como seu o desejo do Outro (desejar como Outro), ele se coloca na posição feminina de objeto causa do desejo do Outro. É deste lugar que ele se vê como vítima arrependida da onipotência do Mal. D. Álvaro, como todo bom neurótico, converte a falta, que se inscreve no Outro, em impostura. Ele foi enganado pelo Diabo, aquele que, em sua fantasia, como encarnação do Outro, deveria lhe dar tudo. Então, ele retorna ao lugar imaginário, que lhe é dado pelo desejo materno, lugar de onde nunca saiu: falo no imaginário materno. Assim, ele “irá contrair laços com uma pessoa do belo sexo,”(xxxi) que será escolhida por sua mãe.
O Diabo, mesmo no terreno das histórias fantásticas, não doa o falo, mas engendra a fantasia de realização do desejo. Mas é óbvio que nesse jogo é preciso um pacto, em que o Diabo é quem dá as cartas. Assim, o sujeito, que ofereceu sua vida em troca do falo, não só não recebe o Supremo prêmio, mas também perde a vida.
Na maioria das estórias de terror, quando o Diabo aparece para cobrar seu preço, os personagens alegam que não chegou a hora, porque ainda alguma coisa está faltando. E o sujeito adormecido, mais uma vez, é despertado pelo real que irrompe, sob a forma de um afeto lancinante, colocando-o diante do desaparecimento mais radical, que é a morte. Na narrativa de Cazotte, Belzebu desaparece e D. Álvaro acredita que Deus se compadeceu do seu arrependimento. Ele não se dá conta de que o Diabo lhe deixou queimando nas chamas do seu próprio inferno.
Referências
CAZOTTE, JACQUES. A história do diabo enamorado de Cazotte, seguida de o recibo do diabo de Musset e o diabo engarrafado de Stevenson. Lisboa: Arcádia,1977. Col. Meia-Noite.
FREUD, SIGMUND. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, /s.d./.
JORGE, Marco Antonio e FERREIRA, Nadiá Paulo. Freud criador da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. Col. Psicanálise Passo-a-passo 14.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 4, a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
______. O seminário, livro 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
______. Séminaire 6, Le désir et ses interprétations (O desejo e suas interpretações), 1958-1959, inédito.
______. Séminaire 10, L’angoisse (A angústia), 1962-1963, inédito.
______. Séminaire 22, R.S.I., 1974-1975, inédito.
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
O QUE É UM PAI? Coord. Sérgio Nazar David. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997. Col. Clepsidra 2.
__________________
(i) Este texto foi publicado em O Marrare: Revista do Setor de Literatura Portuguesa, ano 4, número 3, maio de 2003. ISSN 1676-1235.
(ii) A noção de estrutura para Lacan implica o entrelaçamento de três registros: Real (que comparece sob a forma de buraco sem fundo no imaginário e de falta no simbólico), Simbólico (estrutura da linguagem que se assenta no Nome-do-Pai) e Imaginário.(fenômeno ótico e matriz do eu).
(iii) O verbo castrar (do latim castrare) faz parte do código de nossa língua com os seguintes significados, segundo a versão de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em Novo Dicionário da Língua Portuguesa: cortar ou destruir os órgãos reprodutores; capar; impedir a proficuidade ou eficiência; anular ou restringir fortemente a personalidade; eliminar os estames de flor hermafrodita, antes que se abram para soltar o pólen, a fim de se proceder ao cruzamento artificial. Esses significados são inteiramente antinômicos ao conceito de castração em psicanálise. A condição para o ser falante se constituir como sujeito é ter sido inscrito no simbólico, que tem uma estrutura e um suporte: a linguagem e Nome-do-Pai, respectivamente. Nome-do-Pai se refere à função simbólica do pai, que está estreitamente ligada à enunciação da lei, que se dirige à mãe e não ao filho: — Não reintegrarás jamais o teu produto. Diz Lacan: “Em vista disso, a criança é profundamente questionada, abalada em sua posição de assujeito (...). Em outras palavras, é na medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se torna, pura e simplesmente, o desejo da mãe” (LACAN, Seminário 5, 1999, p. 210). Como se vê, castração está diretamente articulada com o desejo e sua estrutura de falta do objeto. V. o livro O que é um pai, 1997.
(iv)“Caso 3 – Miss Lucy R., 30 anos”, 1893. In FREUD, op. cit., v. II. Ver também o capítulo “Clínica da Histeria” do livro Freud: criador da psicanálise, 2002.
(v) “Pequeno Hans Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, 1909. In FREUD, op. cit., v. X.
(vi) “História de uma neurose infantil”, 1918 [1914]. In FREUD, op. cit. v. XVII).
(vii) “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, 1909. In FREUD, op. cit., v. X.
(viii)Ver “O estádio do espelho como formador da fundação do eu”. In LACAN, 1998.
(ix) Ver Seminário 4, A relação de objeto, 1985.
(x) É nesse sentido que Lacan, no Seminário 22, R.S.I., na Lição de 17 de dezembro de 1974 (inédito), define a angústia como sendo a invasão do real no imaginário.
(xi) O significante que inscreve um corpo vivo na ordem simbólica, tornando-o humano, é o Nome-do-Pai. A função desse significante é ser o representante do Outro, como lugar dos significantes, sob a forma da lei. Quem transmite esse significante é o Desejo-da-mãe, na medida em que a mãe, como função, é, para todos os recém-nascidos, o primeiro representante do Outro. Desejo-da-Mãe, diz Lacan, é “um rótulo, uma designação simbólica do que constatamos na prática, isto é, a promoção correlata e cindida do objeto do desejo em duas metades irreconciliáveis” (LACAN, 1999, p.339).
(xii) Esse texto se encontra no volume XIX, da Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
(xiii) HYPPOLITE, p. 897. In LACAN, 1998.
(xiv) Idem, ibidem, p. 895.
(xv) FREUD, v. XIX, Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
(xvi) V. em Freud, principalmente, os seguintes textos: As Neuropsicoses de Defesa (tentativa de formulação de uma teoria da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias, 1894; A Interpretações dos Sonhos, 1900-1901; 1916; Inibições, Sintomas e Ansiedade, 1926 [1925].
(xvii) V. principalmente em Lacan: Seminário 6, O desejo e suas interpretações, 1957-1958, ainda inédito, onde se dedica ao estudo do sentimento de culpa, na leitura de Hamlet, que se encontra nas Lições de 4, 11 e 18 de março de 1959; Seminário 10, A Angústia, 1962, também, ainda inédito.
(xviii) Apesar de angústia ser considerada melhor tradução do que ansiedade, a edição brasileira das obras completas de Freud mantém a palavra ansiedade.
(xix) Inibições, Sintomas e Ansiedade. In FREUD, op. cit., v. XX. Mantive a palavra ansiedade só no título, modificando-a, na citação, para angústia (v. nota 17). Depois do Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, a proposta de Lacan para a tradução de Trieb por pulsão e não por instinto foi aceita quase que por unanimidade. O mesmo ocorre com recalque e sua tradução por repressão. As palavras grifadas nas citações indicam as alterações que realizei.
(xx) Idem, ibidem.
(xxi) V. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, em os Escritos.
(xxii) LACAN, 1998, p. 270.
(xxiii) FREUD, A Interpretação dos sonhos. Segunda Parte, op. cit., v. V.
(xxiv) Idem, ibidem.
(xxv) LACAN, 1999, p.332.
(xxvi) CAZOTTE, 1977, 33.
(xxvii) Idem, ibidem, p. 33.
(xxviii) Idem, ibidem, p. 34.
(xxix) Idem, ibidem, p. 34.
(xxx) LACAN, 1998, p. 829.
(xxxi) CAZOTTE, op. cit., p.124.
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