I Concurso Literário Benfazeja

Entre o Amor e o Desejo, por Lídia Bantim

Entre o Amor e o Desejo
por Lídia Bantim

Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
- Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Almeida Garrett



Este trabalho interpreta dois poemas de Almeida Garrett, buscando um viés com a psicanálise e a mitologia, a fim de entender o conflito vivido pelo sujeito romântico, cindido entre o amor e o desejo.

Falar sobre o amor não é uma tarefa simples, visto que esse substantivo pode designar uma pluralidade de sentimentos distintos, tanto em relação ao seu objeto como à sua finalidade, que vai do desejo sexual ao místico.

Freud recorre à mitologia grega para definir o amor como Eros, ou seja, como tendência à unificação. Eros, como pulsão de vida, representa a criatividade e o desejo e sua função é aplacar a tendência à destruição da vida, que conduz o homem em direção à morte.

Para Freud, Amor e Morte estão indissociavelmente ligados, e acompanham todos os fenômenos humanos, visto que as duas pulsões de vida e de morte raramente trabalham sozinhas.

Segundo a mitologia grega, Eros é o mais belo de todos os deuses. Aquele cuja força é capaz de subjugar todos os corações e triunfar sobre todo e qualquer bom senso. Assumindo, portanto seu reinado de amor e desejo.

Inicialmente, ele foi descrito como filho de CAOS, por isso era tido como deus primordial, de força ordenadora e unificadora, ou seja, seu poder unia os elementos para que passassem do caos à organização.

Mais tarde, é apresentado como filho de Afrodite e de Ares, ou de Zeus, ou de Hermes, conforme as diversas versões. Afrodite, deusa da beleza e do amor, toma conhecimento da existência de uma jovem chamada Psique, cuja beleza atraía a atenção e a adoração de todos.

A deusa ficou enciumada e furiosa com o fato de uma simples mortal receber tantas honras e ordenou que Eros atingisse a jovem com suas flechas, fazendo-a apaixonar-se pelo homem mais desprezível do mundo. Entretanto, ao ver a beleza de Psique, o próprio Eros espeta-se em uma das flechas e se apaixona por ela. É nesse mito, que o deus aparece na plenitude de seu vigor, como sendo aquele que cria laços e une as almas.

Em Platão, Eros é descrito como filho de Poros, personificação da riqueza, da abundância e Pínia, personificação da pobreza. Portanto, na essência do amor, há sempre a falta de algo que impele o homem a uma eterna busca e constante insatisfação.

Aristófanes, em O Banquete de Platão, nos conta que, outrora, a natureza hu¬mana não era igual a que conhecemos hoje. Os seres humanos eram divididos em três gêneros e não apenas em dois - macho e fêmea - como atualmente. O ter¬ceiro gênero, que possuía as características dos dois primeiros, eram os andróginos. Eram dotados de extraordinária força, coragem e resistência e, além disso, eram extremamente arrogantes. Por isso, eles ignoravam os deuses e se recusavam a fazer-lhes oferendas.

Zeus estava indignado. Se, por um lado, ele fulminasse os habitantes da terra com um raio, como fizera com os titãs, não teria ninguém para lhe prestar homena¬gens e sacrifícios. Por outro lado, ele não podia permitir que tal insolência permane¬cesse impune.

Zeus decidiu, então, que a melhor maneira de quebrar a arrogância desses seres era enfraquecê-los: mandou Apolo cortá-los ao meio. Cada metade começou a procurar a sua parte decepada, no desejo de voltar ao que era antes do corte. Aqueles que encontravam a sua outra metade abraçavam-se e morriam de inanição.

Zeus ordenou que Apolo voltasse a terra e arrancasse os sexos desses se¬res partidos, e os recolocasse na frente, isto é, no mesmo lado em que estavam os seus rostos. A partir daí, nasceu o amor. Ou seja: o encontro de uma metade com outra metade, fazendo com que dois se tornem Um. Diz Aristófanes:

Afirmo, pois, de modo geral, que todos nós, homens e mulheres, o gênero humano em suma, seríamos felizes se, ajudados por Eros, encontrássemos cada um a me¬tade que o pode conduzir ao seu primeiro estado. Se esse estado primitivo era o mais perfeito, mais perfeito será necessariamente aquilo que desse estado mais se aproximar. (PLATÃO, [427-347 a.C], 2007, p. 67).

Embora Lacan se refira a várias modalidades de amor, este trabalho privile¬gia o amor-paixão (amor como Eros): amor como promessa de Felicidade. Nessa concepção de amor, temos a denegação da castração, ou seja, o amor é a via pela qual o sujeito encontraria a sua plenitude. É esse amor que está presente nos romances e poesias românticas.

No Romantismo, século XIX, a virgindade das mulheres é um tabu, cuja violação é rigorosamente punida com a morte. Enquanto na novela de cavalaria (século XIV), a donzela seduzia o amante, entregava-se a ele como prova de amor e, em vez de ser punida, era agraciada com o casamento e o reconhecimento da paternidade daquele filho nascido da transgressão ao código moral, no século XIX, as mulheres além de serem punidas por se desviarem da virtude, saem do lugar de agente da sedução para se colocarem no lugar de objeto. E como tal, serão punidas com a degradação física (doença: a tuberculose) ou moral (“morrer de amor”) que as conduz a morte.

De acordo com Nadiá Paulo Ferreira, no amor romântico, heróis e heroínas se inscrevem na estrutura neurótica, visto que tanto um como outro denegam o impossível e se colocam como impotentes diante das forças do mundo.

As heroínas, ao insistirem em um amor proibido, sustentam o desejo, sob a forma de desejo insatisfeito. O casal enamorado sonha com a completude, denegando dessa forma, a castração. Amar, ser amado e casar é possível; no entanto, é verdadeiramente impossível para o amante e o amado se tornarem Um somente por meio do casamento. Assim, o caminho para sustentar a promessa de felicidade é a via do sacrifício, que culmina com o “morrer de amor”. Diante do amor proibido, só resta desejar a morte. É exatamente isso que Freud denomina de masoquismo moral, em O Problema Econômico do Masoquismo.

Os homens, por sua vez, idealizam a figura feminina, concebendo-a como um ser puro, imaculado e, portanto, isento de desejos sexuais, conforme podemos observar nos poemas Não te amo e Anjo és, de Almeida Garrett:
Não te Amo

Não te amo, quero-te: o amor vem d’alma.
E eu n ‘alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! Não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! Não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.
(GARRETT, 2004, p.61).

No poema Não te amo, o sujeito tenta fazer com que a mulher desacredite do seu amor. No entanto, ao insistir repetindo “não te amo, não”, acaba reafirmando ainda mais esse afeto. É a denegação do amor.

O poeta concebe o amor como algo sublime e puro, ligado à espiritualidade, capaz de conduzir o homem a estágios mais elevados, à perfeição. O desejo, entretanto, se manifesta no corpo e, por estar ligado à pulsão é aquilo que não tem controle. Por isso, é tido como indigno, pecaminoso, que o enche de culpa, já que, de acordo com o romantismo, o gozo sexual deve ter origem no amor e não pode ocorrer antes do casamento. Daí, o conflito do sujeito entre amar e desejar.
ANJO ÉS

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jogo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua frente anuviada
Não vejo a c’roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d’amor.
Teus olhos têm a negra cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não tem. ─ Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes ─ e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? ─ Escaldou-me.
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de preceito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?

(GARRETT, 2004, p.65,66).

Em Anjo és, a antítese entre dois semblantes, angelical e diabólico que se constrói em torno da imagem da mulher deixa o sujeito angustiado e confuso. Afinal, essa mulher que se apresenta como um anjo, em vez dos adereços tradicionais deste, como o véu e a coroa, traz consigo algo de diabólico, ou seja, o erotismo e o indecifrável, que projetam o sujeito no mundo sombrio de medo e horror:
Teus olhos têm negra a cor
Cor da noite sem estrela:
A chama é vivaz e é bela,
Mas a luz não têm...

[...] Dou-me a ti, anjo maldito
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... de donde?

A mulher, configurada em duas imagens opostas, remete para os agentes de sua criação: “Jeová ou Belzebu?” Entre o Bem e o Mal, o sujeito vacila diante das forças pulsio¬nais, fazendo com que não lhe reste outra saída, senão o caminho da expiação. A culpa e o desejo inconsciente de punição levam o sujeito a um sofrimento, o qual se torna fonte inesgotável de gozo. O gozo da dor no lugar do gozo sexual é a via pela qual o masoquismo moral aprisiona o amante ao eterno sofrer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA, Nadiá Paulo. O Amor na Literatura e na Psicanálise. Rio de Janeiro: Dialogartes, 2008. p. 38, 75 .
GARRETT, Almeida. Cartas de Amor à Viscondessa da Luz. Organização de Sérgio Nazar David. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p. 61- 66 .
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. 21 v. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 21, 109, 116.
_____.O Problema Econômico do Masoquismo. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 19 v. Rio de Janeiro, Imago, 2000.
LACAN, Jacques. O Seminário 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
PLATÃO. O banquete. Tradução de Albertino Pinheiro. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2007. p .67, 118, 119 .

Nenhum comentário