I Concurso Literário Benfazeja

Travessia


Conto para a seção Fantásticos, por M Blannco*



     Sudoeste da França. La Montagne Noire
     (Meados do século XIV)

     VÄILLE        Fogo. Gritos. Carne humana queimada. Fedor de excrementos.
     Continuo correndo. Dos frades negros e de seus mercenários. Tão depressa quanto os pés machucados permitem. Preciso alcançar o abrigo subterrâneo da grande muralha _ La Montagne Noire.  Antes que a escolta armada me encontre.
     Nossos inimigos não conhecem o caminho. Buscam a passagem há centenas de anos sem sucesso. Meu povo, ou o que restou dele, refugiou-se no ventre da pedra quando a última fortaleza da fronteira caiu, profanada pelos bárbaros _ assassinos disfarçados de homens santos, a serviço do poder, que impunham sua fé através da espada.
     Novamente devo pedir socorro à montanha, esconder em seu regaço os pergaminhos antigos que herdei de meu pai. Minha família recebeu os escritos das mãos dos perfeitos, na retirada de Montségur. Antes que os sacerdotes e seus seguidores se lançassem às chamas entoando cânticos. Os pergaminhos indicam a localização do labirinto sob a terra e dos reservatórios de água. Lá, nossa gente escapou dos servos das trevas enquanto o mundo era varrido pela destruição. Mais uma vez o mundo está em perigo. A peste negra bateu à nossa porta, como o curandeiro disse que aconteceria. Espalhou-se como um incêndio.
     Ouço o pio agudo do pássaro negro e o rugido tronante do leão da noite. Eles me acompanham. São meus guias. Eu os chamei. Recitei as orações de meus antepassados e invoquei a proteção dos espíritos. E eles me enviaram o corvo e a fera. Confio em sua visão. Mas sei que não me podem defender, porque não são soldados, porque não pertencem a esta realidade. Dizem que estou perto, que a escuridão me protegerá.
     A solidão me traz lembranças. De meu pai e meu irmão, devorados pela enfermidade, atirados à pilha incandescente de corpos. Também vieram atrás de mim, vasculhando nossa casa com seus olhos injetados e cheios de ódio, imaginando que eu já teria sido levada pela morte. Mas eu estava viva, ainda. A poção do curandeiro, que revolve minhas entranhas e roubou meu paladar, emprestou a meu corpo um resto de energia vital.
     A massa de rocha vai definindo-se. Tudo está quieto. Não escuto o tropel das montarias ou as imprecações dos homens. A brisa leve parou de soprar, não sinto a presença de meus guias. Um instante de mistério.
     Não sei de onde veio ou como chegou, mas avisto o cavaleiro e sua besta alada. Eu não o conheço, mas ele não me é estranho, meu coração se alegra sem motivo. Suas roupas confundem-se com a noite, quebrada, a intervalos, por raios hesitantes de um luar esmaecido. Mal distingo o entorno, mas não me amedronto: conheço cada palmo desta terra.
     A negridão tampouco parece ser um obstáculo para o estrangeiro, pois se movimenta com firmeza até onde estou, inebriada por sua aparição. É muito alto, tem o porte altivo e elegante, ombros largos, pernas longas e flexíveis.  Desloca-se com a eficiência e a agilidade de um animal selvagem. Detém-se a poucos metros de mim, poderia tocá-lo. Mas é ele quem estende as mãos, metidas em mitenes de couro. A pelica fina e lustrosa veste seus dedos compridos e benfeitos como uma carícia.
     _ Vejo seu rosto, Väille _ fala, citando o nome somente conhecido por mim. Sua voz é sonora, profunda.
     Ele prende meus braços num aperto leve, aquecendo minha carne fria. _ Quem é você? _ pergunto. Pressinto o retorno da náusea e da vertigem. Mau presságio. Sinal de que o efeito da medicina do curandeiro esgota-se, e meu organismo não combaterá a doença por muito tempo. A peste mora em meu corpo. Engulo a saliva para afastar o mal-estar e o pânico. Aprumo o tronco. Resisto.  _ Não deveria estar aqui. Eles vêm atrás de mim e são muitos. Vão matá-lo.
     _ Não se preocupe. Ainda estão longe. E não precisa ter medo. Nada podem tirar de você _ ele diz.
     Nada que eu já não tenha perdido, claro.
     Estreito os olhos. Ele está semiencoberto pela sombra das árvores, mas eu o vejo por inteiro. É impressionante em sua beleza máscula, quase ostensiva, uma presença dominadora, do tipo que enlouquece as mulheres e intimida os homens. Os olhos verdes têm a cor das folhagens em dia de chuva, ferozes, cheios de paixão. Eu poderia ficar olhando para ele indefinidamente, suspensa no tempo. Vejo o medalhão.
     O cavaleiro sorri, como se lesse a minha alma. Não me sinto embaraçada, e ele não demonstra incomodar-se com minha avaliação minuciosa. 
     _ Você é bonito _ balbucio. Seus lábios se mexem, mas não distingo as palavras. Meus sentidos apurados começam a entorpecer-se. _ Quem o mandou?
     _ Você me chamou, Väille. Eu sou o pássaro e o leão. Não vou lhe fazer mal, prometo _ responde.
     _ Os escritos... devem ficar a salvo... eles... _ Meu tempo expira rapidamente. O pânico de novo.
     _ Eu a levarei comigo. Luc conhece o caminho.
     _ Luc... _ a criatura alada? Esquecera-me dela. O que era aquilo, um lagarto gigantesco com asas? _ De onde vem? _ questiono. Meu corpo treme, noto o suor gelado empapando a nuca, escorrendo pela espinha.
     _ De nenhum lugar nesta era _ explica. _ Eu e meus irmãos vivemos num tempo distante, nas fronteiras do Universo. Andamos entre os humanos quando nossa intervenção é necessária.
     Não compreendo.
     Minha respiração torna-se irregular, difícil, as roupas colam-se à pele, sinto frio, fome. A febre. Os joelhos falham. Seus braços me amparam. Aconchega-me a seu peito e me carrega sem pressa. Deposita meu corpo contra um tronco retorcido e acomoda-se à minha frente. Alisa meu cabelo úmido e emaranhado, afaga meu rosto. Como um amante apaixonado faria. Paixão. Há muita paixão nele. É um sentimento que me comove, porque eu só conheci o medo e a incerteza, o desespero e a morte.
     _ Descanse _ ordena, puxando o cantil da cintura e encostando-o em meus lábios ressecados.
     _ Não deve, estou doente _ retruco.
     Ele ignora meus protestos e derrama a água em minha boca. Senta-se ao meu lado, estica as pernas. O cheiro dele é bom, mistura de tabaco e especiarias raras, masculino, exótico. Inspiro com vontade. Para reter o aroma na memória. Através do contato próximo, percebo a musculatura rija como uma parede de aço. Eu teria delírios românticos com ele, se esse fosse meu temperamento, mas tenho natureza de guerreiro, meu pai dizia. Cerro as pálpebras. O mal-estar vai desaparecendo. Outro sinal _ quando a dor vai embora, o corpo desistiu de lutar. Apego-me ao ritmo de seus batimentos cardíacos, constantes, hipnóticos, a única coisa real ali. Ele envolve meus ombros num abraço. Sinto-me conectada a algo infinito e belo, algo que jamais experimentei. Meu coração vive sobressaltado. Sim, eu poderia amar alguém como ele, se eu tivesse conhecido esse tipo de amor, se tivesse tido tempo. Sou jovem demais e estou morrendo. Melhor assim, não saberia como envelhecer naquele mundo.
     _ Vejo seu coração, Väille _ ele interrompe o silêncio. _ Eu também poderia amar você.
      Pressinto a chegada do anjo da morte e de seu hálito de gelo. Nunca me permiti desistir, mas estou exausta, sem forças. Entrego-me ao torpor. Sem pânico.  A fome é voraz agora. Não posso evitar o riso convulsivo, histérico. Então, tudo se apagou. A noite, o perfume dele, o frio, eu.


     Sistema Estelar de Yx-Gaalateia. Luas de Zhayne. Mardras
     (Ano 2.500. Quinta era)

     TRISTAN        Väille estava morta. Não havia nada a fazer. A doença devastara seu corpo e vergara seu espírito. Tampouco pude aliviar seu sofrimento. Meus conhecimentos de nada serviriam, cheguei tarde. E nenhum alimento saciaria sua fome, porque seu estômago não funcionava mais. Fiquei vendo-a adormecer, contemplando o rosto lívido e magro, tão estranho e delicado. Senti uma imensa dor. Não sei dizer quantas horas permaneci na floresta. Despertei com o grunhido de Luc, avisando que os soldados se acercavam.
     Peguei a bolsa que pendia da cintura de Väille e parti nas costas de meu amigo, antes que o portal se fechasse definitivamente, aprisionando-me. Não traí a mulher que amava, porque os escritos ficariam mais seguros conosco. Os mortais não estavam preparados para o conhecimento.
     Não ouvi os passos, nem notei sua presença. Minha atenção e meus sentidos estavam presos ao passado, a uma história que nunca existiu, a um sentimento de perda que eu não desejava abrigar em meu coração.
     _Tristan _ a voz cristalina e musical de Alissa,  minha irmã.
     Virei-me e abri os braços para recebê-la. Apertei seu corpo contra o meu como se fosse a última vez que a via, como um náufrago.
     _ Tristan... Está tudo bem? _ Os olhos astutos tinham uma expressão inquisitiva. _ O que aconteceu de verdade quando esteve fora?
     Engoli a saliva para afastar o nó na garganta. Não queria preocupá-la. Mas Alissa podia ver tudo que se passava em mim, ou em qualquer um. Tinha o dom da visão, uma dádiva muito venerada em nosso mundo, somente concedida aos puros de alma, aos perfeitos.
     _ Fale comigo, meu irmão _ insistiu.
     _ Não há o que contar, nada que você não saiba _ respondi, sem muita certeza. Porque eu podia fechar minha mente, se quisesse. Alissa me ensinara como fazer. _ Recuperei os pergaminhos e encontrei o mensageiro, é tudo _ concluí.
     _ Väille era o mensageiro. _  Ela ficou em silêncio, os olhos fixos nos meus.
     Senti um golpe no peito. _ Eu poderia resgatá-la. Ela não merecia morrer daquele jeito.
     _ Não estava escrito que ficaria com ela. Não podemos interferir dessa maneira, nem alterar a história.
     Então, por que eu sentia tanta dor? Por que não conseguia expulsar seu rosto da memória? Alissa me abraçou, recostou a cabeça em meu pescoço. As estrelas gêmeas levantavam-se sobre a Cidade Flutuante _ Mardras _, principal núcleo populacional do quadrante sul. Os imponentes edifícios pairavam sobre o oceano vermelho, indiferentes ao rugido das ondas e às tempestades da estação quente. Era uma região indomada, mas de uma beleza arrebatadora, instigante. Por isso, Alissa a escolhera. Ela precisava da tormenta para aplacar a própria fúria.
     Eu não podia negar que a alvorada em Mardras era de tirar o fôlego, mas certamente preferia estar numa das fazendas produtivas, com os pés em terra firme. Imaginei como Väille se sentiria aqui, em meu mundo, admirando a paisagem de linhas curvas e arrojadas através do painel de cristal. O mar revolto.
     _ Está sorrindo, Tristan? _ Alissa perguntou. _ Sim, ela vai gostar daqui. _ completou.
     Inspirei o ar fresco que entrava pelos dutos de ventilação, cheiro de mar, sal, chuva. _ Quero estar com ela para sempre, Alissa. Eu a amo. Amei sempre, desde que vi a pintura. _ Hesitei. _ Pode vê-la em meu futuro?
     Alisa se afastou um pouco, as mãos em meus ombros.
     _ Sim. Eu posso. Vocês se encontrarão novamente. Väille vai nascer com os sinais de nossa raça e... será muito linda.
     _ Ela sempre foi linda.
     Alissa sorriu. _ Ela voltará para você, Tristan. Atravessará o esquecimento e a névoa por você. Muitas luas se passarão no mundo dos humanos, um tempo infindo para nós. Vai esperar?
     _ Sabe a resposta. _ Sim, ela sabia.
     _ Estou com inveja. Quero um macho como você em minha vida. Acha que consigo?
     _ Não estou bem certo, você é muito arrogante e muito exigente com nosso sexo. _ Mal contive o riso. Alissa jamais pertenceria a ninguém.
     _ Você é detestável, Tristan, sabe disso, não sabe? Não entendo como essa fêmea humana se apaixonou por você, realmente não entendo _ bufou, virando-me as costas e saindo em direção à ala inferior.
     _ Também amo você, Alissa! _ gritei, rindo. _ Alimente Luc. Deve estar faminto.
     _ Vá se danar, Tristan!
     Agarrei o medalhão em meu pescoço _ insígnia de minha estirpe _ e invoquei os espíritos. Na língua sagrada. Pedi que conduzissem Väille pela terra das sombras enquanto estivesse longe. Que a trouxessem para mim.
     Väille.


* M Blannco mora no Rio de Janeiro, é louca por livros e escreve desde criança. Filha de imigrantes, herdou dos pais o amor pelos livros e pelas letras. Já publicou vários contos e tem um blog onde posta alguns de seus trabalhos de ficção:

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Email:
mblannco@ymail.com


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Créditos da imagem: J. W. W. Waterhouse


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6 comentários:

  1. Parabéns pelo belíssimo conto, M! Abraços. Paz e bem.

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  2. Obrigada, Celly, pelo espaço e pela divulgação. A imagem ficou lindíssima, tão romântica. Adorei. Pode me convidar sempre (rsr).
    Obrigada a você também Cacá, pelo comentário e carinho. Beijo grande aos dois.
    Maya.

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  3. Conheço seu blog, Maya e li seu conto Noite de Prata no blog do André. Garota, você tem um mega talento. Quando vai se decidir a escrever um livro, hem? Dê esse prazer a seus leitores. Acredite, você já tem uma legião de fãs. Abraço grande.

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  4. Sensacional, maya. Escreves muito bem. Quero encontrar teus contos mais vezes aqui. Beijos para ti.
    Gustavo Henriques.

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  5. Bom te ver por aqui, menina. A história me emocionou. Está de parabéns. Torço pra ler muitas coisas mais escritas por vc. Bjo da Silvana.

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  6. Curto demais tuas histórias. Está na hora de sair o livro. Bjk.

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