I Concurso Literário Benfazeja

Defunto




Conto, por Wellington Souza

"e sentiu os movimentos que um coração sossegado produz no corpo. O outro sentiu asco ao tocar um defunto"


Os três formaram um triângulo. Ou: os dois e um cadáver, não se sabe ainda. 

A noite tinha sido boa, mas pela manhã restavam dois bêbados conversando sobre Freud, Camus, e quais times de futebol eles torceriam se tivessem nascido no morro Canta Galo. A conversa ia nesse rumo até perceberem o terceiro, inanimado, no sofá.

Para um o corpo estava vivo; para o outro, estava morto. O dito nada achava, apenas estava.

O ‘está’ ‘não está’ ‘está’ ‘não está’ ‘está’ ‘não está’ durou tempo o suficiente para perceberem que isso de nada adiantaria, pois a filosofia ajuda até certo ponto: depois somente a prática ensina.

Um colou o ouvido no nariz do desfalecido e escutou a respiração. Ordenou, triunfante, que o outro também fizesse o teste. Feito, tudo voltou ao inicial, pois o outro nada ouviu.

‘Respira!’ ‘Não respira’. ‘Respira.’ ‘Não respira’. ‘Respira!’ ‘Não respira!’.

Um tomou o pulso e sentiu os movimentos que um coração sossegado produz no corpo. O outro sentiu asco ao tocar um defunto, ainda fresco, mas gelado e inanimado.

‘Pulsa’, ‘não pulsa’. ‘Pulsa’, ‘não pulsa’. ‘Pulsa’, ‘não pulsa’.

‘Um tapa! Se acordar, você me paga mil moedas’. ‘Aposto. E aposto que nem um vermelhãozinho a bofetada produzirá’. ‘Por que vermelhão?’ ‘Fica vermelho apenas quando o sangue está circulando.’

Um respirou fundo para dar o maior tablefe da sua vida. O outro, respirou fundo como pura resposta à tensão do momento. Agora iria doer no bolso.

O tapa fez um estalo que assustou o cachorro e o tirou da soneca. E mais nada: só um rosto virado e a alegria do outro por ter ganho algum (embora tenha perdido um amigo de copo). ‘Opá, opa! Olha lá, não acordou mas ficou vermelho! Ficou um vermelhão no lugar da bofetada. Ele não deve ter acordado pois está em coma-alcoólico’. ‘Marmelada! Ficou a marca pois ainda é defunto fresco!’ ‘Que nada! Vamos ligar para a ambulância!’.’Não! Você me deve e vamos ligar para o IML!’

‘Ambulância’. ‘IML’. ‘Ambulância’. ‘IML’. ‘Ambulância’. ‘IML’. Nisso um pegou o telefone e o outro foi impedir a ligação. Caíram os dois rolando sobre o terceiro e ficaram todos rolando em meio às garrafas, bitucas de cigarro e copos com resto de cerveja quente.

Até que um largou de briga, se levantou, e foi até a cozinha. Voltou com uma faca de cortar carne.

‘Se ele gemer, é porque está vivo e eu ganho. Se ele continuar na mesma, é porque já está em outra e você ganha’. O outro nada respondeu, atônito. Só virou o rosto para não terminar de ver a facada certeira na barriga que o um deu no coitado.

Virou-se lentamente para se inteirar do que acontecera.

Com a poça de sangue que se formou, o outro nem pensou em comemorar o seu triunfo. Apenas se mexeu para impedir o cão de ir cheirar e, quem sabe, lamber o sangue. ‘Se não estava morto, agora está’; se atreveu a pensar.

‘Nem IML  nem ambulância', um pensou ':é polícia. E o difícil será explicar a aposta para eles... acho que perdi a aposta e ele já estava morto!’

E os dois saíram, cambaleando, para abrir a saideira.


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Créditos da imagem: homem morto, por Cesar Roos

3 comentários:

  1. Muito bom, Wellington! Abraços. paz e bem.

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  2. Belo conto, caro Wellington.
    Leve, bem pontuado e divertido. Uma narrativa desenvolvida por quem conhece. Parabéns! Certamente irei ler seus outros contos.
    muito sucesso!
    walter rodrigues.

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