Literatura em degraus
Artigo, por Ana Cristina Melo.
Esse texto foi originalmente publicado no Jornal Sobrecapa Literal - edição 2 (mar/2011). Está reproduzido aqui com algumas adaptações
Literatura em degraus
Diz Rubem Alves concedeu entrevista à Agência Estado, divulgando seu novo livro, e destaco uma frase dita por ele: “Aprendi que quem lê com prazer aprende mais”.
Vamos brincar de fazer escolhas. Suponha as duas opções de cada item. Qual será a sua preferência? 1) fazer sexo ou comparecer à reunião de condomínio? 2) comer uma refeição deliciosa ou lavar o banheiro? 3) escutar sua música preferida ou estudar física quântica? 4) assistir a um filme do seu gênero preferido ou ler um tratado filosófico do século XII.
Pois é, posso apostar que 99,9% dos meus leitores escolherão a 1ª opção de cada item. A explicação é simples e científica: essas atividades vão liberar dopamina, um hormônio associado ao prazer. E é esse prazer que faz com que a vida seja mais leve, menos carregada, mais palatável. Li que o excesso desse hormônio pode desenvolver dependências de jogo (inclusive eletrônicos), álcool e outras drogas. A falta pode levar à depressão.
Um dos livros que indico na seção “Nossa estante” da edição 2 do Jornal Sobrecapa Litera é o excelente “O Campeonato” de Flávio Carneiro, que traz um protagonista viciado em romances policiais. Ali, o vício beira o exagero, pois interfere no mundo real. Mas ele reverte essa situação, trazendo a ficção para dentro da sua vida.
Não é exatamente o que buscamos na literatura: essa transformação? Uma transformação que pode vir por reflexão ou por terapia. Sim, pois o livro é um terapeuta eficiente que não nos força falar, mas nos faz sair do divã com dez quilos a menos de preocupações. E pra isso, é preciso que a dopamina entre em ação, o prazer seja evocado.
Alguns associam o prazer na literatura a um grande pecado. Fala-se tanto dos hábitos modernos do vídeo game ou da televisão, mas parece que só podemos falar em literatura para substituir esses hábitos viciosos, se ela for a obra que transcende a época, o século, que não dá prazer a não ser o do conhecimento pleno e filosófico. Falar de uma literatura que estimule nosso cérebro, que vicie nosso corpo parece um pecado, mas é essa literatura que forma os primeiros degraus dos leitores pra vida toda. É essa literatura que vicia, que envolve, que transforma o leitor em um apaixonado fiel, eterno, que não se contentará com um, dois, dez, vinte livros por ano. Que precisará ler, sempre, em qualquer lugar, vários gêneros, que vão se incorporar aos poucos às suas preferências, como incorporamos experiências a cada fase vivida.
E o que será mais importante? Ler um clássico aos vinte anos, depois de centenas de livros lidos, e poder descobrir seu prazer, suas diversas camadas, sua voz consoante que transcende nossas certezas, ou obrigar ser um clássico o primeiro livro dos férteis quatorze anos, e ser esse o último exemplar que passará por suas mãos.
Uma vez ouvi um grande escritor dizer que sua literatura era uma escada para os jovens, que ele ficava feliz de ser o primeiro autor de futuros leitores.
E para isso eu pergunto: como o meio literário deseja que o livro seja enxergado, como uma obra de arte protegida por um cordão de isolamento ou como o cinema, acessível a todos, comentado nas esquinas, disputados em grandes filas de pré-estreia?
Precisamos respeitar o riso, o interesse que faz devorar um livro de 200 páginas num só dia, a sensação de sermos transportados para dentro da história, contemporânea ou não, só para sermos mais um investigador, mais um herói, mais um personagem que não terá nenhuma relação com a nossa vida, ao mesmo tempo que terá tudo, que falará o que sentimos, que agirá como não somos capazes, que chorará em nosso lugar.
Emma Bovary, de Gustave Flaubert, fantasiou tanto sua vida em relação aos romances que lia, que não foi possível se contentar somente com a realidade. Um escritor é um ser que não se contenta somente com sua própria vida. Mas esse é o risco que corremos: que a literatura nos transforme e nos transborde. E essa transformação, como diz Rubem Alves, precisa passar pela paixão, pelo prazer.
Pense numa namorada que se arruma, se enfeita, só pra agradar seu parceiro. Tudo pela paixão. Fosse ela se encontrar com um ogro, e não o príncipe, e não mexeria um fio de cabelo. Para nos transformarmos, precisamos acreditar que o outro vale a pena.
Ler também é uma arte e, como arte, tendencia pelo gosto.
Precisamos respeitar a literatura nacional e, principalmente, a literatura que forma esse degrau na vida de tantos leitores de ficção, que um dia agradecerão por terem dado os primeiros passos e terem descoberto uma porta que uma vez aberta, leva a uma dimensão de onde não vamos mais querer voltar.
Diz Rubem Alves concedeu entrevista à Agência Estado, divulgando seu novo livro, e destaco uma frase dita por ele: “Aprendi que quem lê com prazer aprende mais”.
Vamos brincar de fazer escolhas. Suponha as duas opções de cada item. Qual será a sua preferência? 1) fazer sexo ou comparecer à reunião de condomínio? 2) comer uma refeição deliciosa ou lavar o banheiro? 3) escutar sua música preferida ou estudar física quântica? 4) assistir a um filme do seu gênero preferido ou ler um tratado filosófico do século XII.
Pois é, posso apostar que 99,9% dos meus leitores escolherão a 1ª opção de cada item. A explicação é simples e científica: essas atividades vão liberar dopamina, um hormônio associado ao prazer. E é esse prazer que faz com que a vida seja mais leve, menos carregada, mais palatável. Li que o excesso desse hormônio pode desenvolver dependências de jogo (inclusive eletrônicos), álcool e outras drogas. A falta pode levar à depressão.
Um dos livros que indico na seção “Nossa estante” da edição 2 do Jornal Sobrecapa Litera é o excelente “O Campeonato” de Flávio Carneiro, que traz um protagonista viciado em romances policiais. Ali, o vício beira o exagero, pois interfere no mundo real. Mas ele reverte essa situação, trazendo a ficção para dentro da sua vida.
Não é exatamente o que buscamos na literatura: essa transformação? Uma transformação que pode vir por reflexão ou por terapia. Sim, pois o livro é um terapeuta eficiente que não nos força falar, mas nos faz sair do divã com dez quilos a menos de preocupações. E pra isso, é preciso que a dopamina entre em ação, o prazer seja evocado.
Alguns associam o prazer na literatura a um grande pecado. Fala-se tanto dos hábitos modernos do vídeo game ou da televisão, mas parece que só podemos falar em literatura para substituir esses hábitos viciosos, se ela for a obra que transcende a época, o século, que não dá prazer a não ser o do conhecimento pleno e filosófico. Falar de uma literatura que estimule nosso cérebro, que vicie nosso corpo parece um pecado, mas é essa literatura que forma os primeiros degraus dos leitores pra vida toda. É essa literatura que vicia, que envolve, que transforma o leitor em um apaixonado fiel, eterno, que não se contentará com um, dois, dez, vinte livros por ano. Que precisará ler, sempre, em qualquer lugar, vários gêneros, que vão se incorporar aos poucos às suas preferências, como incorporamos experiências a cada fase vivida.
E o que será mais importante? Ler um clássico aos vinte anos, depois de centenas de livros lidos, e poder descobrir seu prazer, suas diversas camadas, sua voz consoante que transcende nossas certezas, ou obrigar ser um clássico o primeiro livro dos férteis quatorze anos, e ser esse o último exemplar que passará por suas mãos.
Uma vez ouvi um grande escritor dizer que sua literatura era uma escada para os jovens, que ele ficava feliz de ser o primeiro autor de futuros leitores.
E para isso eu pergunto: como o meio literário deseja que o livro seja enxergado, como uma obra de arte protegida por um cordão de isolamento ou como o cinema, acessível a todos, comentado nas esquinas, disputados em grandes filas de pré-estreia?
Precisamos respeitar o riso, o interesse que faz devorar um livro de 200 páginas num só dia, a sensação de sermos transportados para dentro da história, contemporânea ou não, só para sermos mais um investigador, mais um herói, mais um personagem que não terá nenhuma relação com a nossa vida, ao mesmo tempo que terá tudo, que falará o que sentimos, que agirá como não somos capazes, que chorará em nosso lugar.
Emma Bovary, de Gustave Flaubert, fantasiou tanto sua vida em relação aos romances que lia, que não foi possível se contentar somente com a realidade. Um escritor é um ser que não se contenta somente com sua própria vida. Mas esse é o risco que corremos: que a literatura nos transforme e nos transborde. E essa transformação, como diz Rubem Alves, precisa passar pela paixão, pelo prazer.
Pense numa namorada que se arruma, se enfeita, só pra agradar seu parceiro. Tudo pela paixão. Fosse ela se encontrar com um ogro, e não o príncipe, e não mexeria um fio de cabelo. Para nos transformarmos, precisamos acreditar que o outro vale a pena.
Ler também é uma arte e, como arte, tendencia pelo gosto.
Precisamos respeitar a literatura nacional e, principalmente, a literatura que forma esse degrau na vida de tantos leitores de ficção, que um dia agradecerão por terem dado os primeiros passos e terem descoberto uma porta que uma vez aberta, leva a uma dimensão de onde não vamos mais querer voltar.
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Créditos da imagem:
A ilustração é de autoria de Danilo Marques. Danilo é paulista, tem 36 anos (até o próximo dia 10 pelo menos), trabalhou em diversas áreas, nunca deixando o sonho de ser ilustrador, o qual batalhava batendo em todas as portas de escritores e editores. Hoje tem mais de vinte livros ilustrados e em intensa atividade. Seu trabalho pode ser visto em http://www.danilomarques.com.br.
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