Voz da consciência
Conto, por Wellington Souza
– Sabe o que é... Acho que não estou mais te fazendo bem.
Nunca soube terminar, acho que é porque nunca gostei de terminar nada. Mas não pelo fim em si – logo arrumo outra coisa para fazer – e sim pela triste saudade que virá. Existem as saudades alegres. Aquelas coisas que a gente fez bem desde o começo dão uma saudade alegre. Sorrio ao me lembrar que era boa jogadora de handboll durante o ensino fundamental e, quando acertei propositalmente uma bolada no rosto da rouba-namorado, não senti – nem sinto – remorso em ver seus lábios sangrarem e o aparelho dentário ser desgrudado deles. Mas há a saudade ruim também, de coisas que poderíamos ter feito melhor, mas fomos displicentes e saiu tudo porco, sujo, e essa sujeira volta de novo pra gente, em ressacas que não escolhem lua.
No fim, a tristeza é pela saudade ruim do que pelo recomeço.
Estamos lado a lado num banco-de-praça no shopping. As pessoas que passam são tão sem-poesia. A única arte daqui está nos bancos-de-praça.
Isso não está mais me fazendo bem. Mas não é por isto também que estou aqui, prestes a por um fim, mudar de parágrafo. Tem coisas que são ruins e irremediáveis: se terminar fosse pior ainda que continuar o calvário, então não faria sentido interromper assim o curso das coisas: está ruim e só pode é piorar. É nessa que estou. Sempre me ensinaram que se for para mudar, que seja para melhor! É como a moral básica dos investimentos: recitas futuras maiores que os custos. E é isso que prendo fazer. Acho.
Ele não me olhava, nem de relance nem de soslaio. Parecia que mirava uma formiga ou contava quantos pés passavam por ali e se concentrava neste cálculo mental.
– Acho que não te peguei de surpresa, né? Não estou bem com o meu ‘eu’ e acho que parte disso é por dividi-lo assim, todo. Não sei mais o que ‘eu quero’, existe o que ‘queremos’, o ‘nós’, e só. Sinto falta de pensar ‘eu’ e de ouvir ‘você’.
Pauso. Respiro.
Respira.
– Todos chamam ‘venham cá em casa’ ou perguntam ‘viram tal filme?’ Ontem minha tia perguntou se ‘gostávamos de uva-passa na maionese’. Respondi mal pra ela, falei que eu não era você, daí ela me retrucou indignada por eu não saber se você gostava da merda das uvas-passas na maionese!
Pauso.
Continuo.
– Não é possível que você esteja feliz assim. Um leão necessita de mais de mil quilômetros quadrados para se sentir à vontade. Acho que não estamos respirando. Vamos acabar morrendo afogados, juntos.
Grande parte do drama humano vem das nossas relações, é fruto delas. Por isso que os orientais que querem atingir o entendimento se refugiam dos outros. E os sábios são Zaratustras que descem em corpo, mas mantêm suas almas lá no cume da montanha à prova de questionamentos inúteis ao seu saber. À prova de questionamentos inerentes aos homens, acho até que o nosso nome científico deveria ser homo-quaestonis. Assim eles podem viver em paz na realidade que criaram, sem esses choques-de-mundos que nos dão a sensação de que o que fazemos, independente de como fizemos, está errado.
Continua parado, parece que este discursinho sem-vergonha que fiz não lhe abalou em nada. Talvez esteja pensando em alguma pergunta em que não irá se humilhar. Sei quanto de orgulho e fragilidade há ai dentro. Ainda assim esperava, da parte dele, resistência, luta, diálogo, revolta, até grito, apesar do lugar público. Talvez só isto colocasse razão nisso que estou fazendo. Mas como ele aparentemente hasteou a bandeira-branca, tenho que criar uma justificativa para o nosso futuro que evaporou como se, sob a minha guarda, a chama se apagasse por vento ou falta de combustível, tanto faz. Resta um esclarecimento de minha parte, e talvez um “Perdão” por todos os pecados do mundo e por ser, ao invés de anjo, mulher.
Vira-se sem retirar os cotovelos dos joelhos e olha-me indiretamente, mira algo que está atrás de mim, mas o suficiente para ver a inaptidão de amante pintada em minha face. Depois desce o olhar um pouco e percebe que, com as unhas de uma mão, eu lasco uma da oposta.
“Você nunca fez isso”, me diz.
Tenho a impressão que meus músculos faciais se contorcem, como se eu quisesse sumir diminuindo o rosto. Gelo e interrompo a ação, deixando a unha por terminar de ser aparada junta à carne.
– Nunca me deparei com o fim, assim, tendo que executá-lo. Perdão.
“Digo isto com a unha. Sempre foram tão bem feitas.” Relaxo, riu e uma amarelidão me toma por completa.
Ah, a unha.
Em tom de desabafo, ele começa. Respondo apenas em pensamento.
“Não queria te sufocar, não era essa minha intenção.” Não há como controlar a reação em cadeia que nossas explosões causam.
“Não entendo isso que você sente, não me sinto assim.” É que você é materialista, estou para você como o futebol ou um dos carros da sua coleção.
“Você não é o meu mundo, ou não era, mas era o mundo para onde eu ia me refugiar do mundo.” Mas você é o meu, e tenho que abdicar do mundo para evoluir. ‘Enterre seus pais’, Buda disse e coloquei no meu perfil do Orkut.
Assume postura ereta, mas olhando para frente.
“Acho que você era o meu futuro, meu sonho. Imaginei-te grávida e velha.” “Mas agora está ai, fria, dizendo coisas que deve estar gestando há meses”. “Não tenho mais nada a falar. Seu pai não vai ligar em vir te buscar de carro, né?” “Adeus.” “Tenho um futuro para editar.”
Fala isso tudo olhando para os meus joelhos, que agora tremem.
Não quero mais ficar sozinha, enjoei. Já me perdi na vastidão fria da unidade infinita e vaga. Uma reta não é nada além de um traço, um esboço. Somente com duas forma-se – formam – um plano e desse plano, formas.
Levanta-se.
Seguro em sua mão com as minhas duas. Entrelaço as três num nó de marinheiro.
Ele desata-se e some entre as crianças que sorvem sorvetes e saltos-altos que olham vitrinas.
Minha mãe me disse que namorar meninos mais velhos é diferente de meninos da minha idade. Estes, eu apenas beijava e nossos planos não iam além do fim de semana. Começar a beijar outras pessoas era um sinal de que o relacionamento ia mal.
Desdobro o papel que tenho em mãos e que não consegui passar para a dele. Leio.
PLURAIS
Hoje sejamos nós, apenas. Atados
Sem lembrarmo-nos de um futuro
em que certamente lembraremos
das noites perdidas destes dias
em que nele não pensávamos,
e vivíamos feito bichos
nos cativeiros de nós mesmos.
Hoje, estejamos nós
cientes apenas deste tempo
e um da persona do outro
que como num palco
amam-se ardentemente,
mas são estéreis.
Hoje sejamos nós, apenas. Atados
Sem lembrarmo-nos do futuro que fantasiávamos.
__
Amasso e jogo no cesto ao lado. Confirmei que uma ruptura nunca é suave. Transição é eufemismo, mudança é mudança. Ele nem olhou por uma última vez nos meus olhos. Pareço já esquecer os dele.
Vou dar uma volta, depois ligo pro papai vir me buscar.
Queria pensar como uma menina de quinze anos novamente. É difícil ter quinze anos, mas ser precoce. Antes ser precoce que ser póstuma. Nossa! Nada a ver isso.
*
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the bench, por Col Cartwrigh
belissimo conto..
ResponderExcluiradorei..
parabens..
http://papiando-adoidado.blogspot.com