I Concurso Literário Benfazeja

Quatro cantos do horizonte (um olho fechado guardou a luz no ângulo da Terra)


Conto, por Carolina Bernardes.

Faz dias que estou aqui, quatro muros ao meu redor. Nenhuma janela, nenhuma porta. Apenas os tijolos enfileirados. É verdade, estou entre esses muros. Não sei quem me colocou aqui. Noto que o cimento é fresco. Os tijolos estão lisos. Não há telhado, mas os muros são tão altos, não sei se nasci para lagartixa. O chão está empoeirado, não tiveram o cuidado de assentar o piso. A sensação de desespero já passou. Quando a noite chega, não vejo nada. As estrelas ficam distantes pela altura dos muros. É como um poço profundo, sem água. Nem me dei conta de que não bebo nem me alimento há dias. Não me recordo de ser um presidiário. Não me recordo de ser um criminoso.
Não vejo pessoas. Não ouço vozes. As baratas não conseguem passar pelas mínimas frestas entre o chão e o tijolo. Ainda não choveu, ainda não esfriou. Quando o sol chega, posiciona-se a uma distância tão afastada que seus raios não chegam a machucar. Tingem todo o meu chão de amarelo, fico sem proteção, mas é a minha única visita. Com as estrelas não posso conversar, porque não posso vê-las. Se ao menos existisse uma gravura na parede, eu poderia sonhar. A solidão não me desagrada, não preciso fingir, não preciso nem falar. Não sinto fome e durmo muito pouco, o necessário apenas para escapar daqui. Mas logo volto, acostumei, é seguro. Começo a não sentir falta da vida que deve existir lá fora. Não me lembro de muita coisa, passo horas sem pensar. Às vezes, forço a memória para lembrar os traços do rosto de algum amigo, as visões estão se tornando raras. Desconheço também a minha face. Ando pelo quadrado para meus membros não atrofiarem. Sento, um pouco em cada canto, para modificar minha visão de horizonte. Ali, no canto oposto, começou a aparecer alguma coisa. É estranho, não tem a forma de tijolo, nem a cor. É novo e desconhecido. Tem muitas cores, vão se definindo e se separam aos bocados. Tem forma, tamanho, bem maior que um tijolo. Tem contornos muito semelhantes aos meus. Aos poucos, a imagem vai se tornando mais nítida. E aquele corpo estranho começa a se mexer. Assusto-me, não é uma mera parede pintada de outras cores. Aquilo se levanta e está vindo em minha direção. O que devo fazer? Algo dentro de mim está pulando e me incomoda. Não tenho nada a fazer, para fugir. Mas tenho medo. Está cada vez mais próximo. Próximo. Próximo. Já estamos frente a frente. Olho bem, vou me acalmando. Não é algo tão estranho. Parece que já vi isso antes, em uma outra vida; é, aquela que vivi fora destes muros. Temos quase o mesmo tamanho. A coisa tem mãos também. E vejo braços. Tem sinais ao alto que devem ser muito parecidos com o que tenho, quando sinto ao passar minha mão. Se ainda me recordo, é algo como olhos e boca. A boca se mexe, quer fazer alguma coisa. Vejo uma cor em seus olhos. E me lembro que essa cor, lá fora, é chamada de verde. Ela estende sua mão. Fico tão curioso que corro a pegá-la. A mão é real, tem vida, calor. Não consigo deixar de ver os olhos verdes. A coisa me abraça e me acorda de um sono profundo. Quando retorno a olhar, vejo uma mulher a minha frente, linda. Ela abre a boca e começa a falar. E a voz vai entrando, ocupando um espaço dentro de mim. Desconheço tudo o que está acontecendo, mas sinto que é bom, porque sinto uma coisa engraçada. Começo a rir. Tenho vontade de falar. Tenho vontade de abraçá-la o tempo todo. Ela também está gostando. Esta noite as estrelas podem ser vistas. E nós não temos vontade de dormir. Queremos falar, queremos tocar, queremos inventar umas coisas. Bem, isso é ideia dela. Está há algum tempo falando em sonhos, em música, em Deus, em luz. Não entendo direito. Ela explica. Aos poucos vou entendendo. Vou me lembrando. Mas tem olhos escuros a me rondar. Consegui recortar um pedaço de janela na parede. É bem pequeno, não dá ainda para ver o que há lá fora. Ela diz que a luz existe e que é possível iluminar os olhos negros que me vigiam. Eu acredito, porque chegou de viagem e trouxe uma mala cheia de estrelas. Ela não fala de tijolos, cimento, chão empoeirado. Ela fala de um mundo que tem lá fora. Fico curioso, mas é tão bom estar aqui com ela a ouvir suas histórias! Agora ela quer dançar. Trouxe música, luzes que se mesclam. Ela se mexe, parece que estamos no meio da multidão. Mas não vejo essas pessoas, não têm brilho. Não consigo tirar os olhos dela, enquanto levanta os braços, fecha os olhos, mexe as pernas, sente a música. Ela se tornou ainda mais linda. Porque segue o espanto que se forma dentro de nós. A aceitação. Presa em muros de tijolos, ela brilha, aceita, ama. Isso me faz sentir dor. A felicidade me deprime. Não suporto essa luz. Afasto-me dela. Estou procurando o canto mais seguro. Ela me segue, com aquela cara cheia de sorriso. Ainda está em enlevo. Raiva é o que sinto. Porque ela dança, porque tem os olhos iluminados. Eu quero que ela vá embora. Mas ela continua a sorrir. Fico endoidecido. Quero com crescente vigor que ela vá embora. Falo. Ela foge. Improvisa uma barraca e se esconde. Eu me preocupo. Ela deve estar chorando. Mas não vou me aproximar. Tem olhos escuros que não deixam. A menina volta. Ela não tem vontade de ir embora. Quer minhas mãos, meus braços, meu corpo, minhas palavras. Quer a minha iluminação. Gosto da luz, mas gosto de minhas paredes também. Conheço cada pequena fenda no tijolo, o encaixe enfileirado e intercalado deles. As palavras que ela me diz me consomem, tento decodificar, mas assemelham-se à linguagem estrangeira. Ela busca recursos, faz sinais, acena com bandeiras, dança, escreve, me ama. Eu me aproximo da luz, chego a vislumbrar um novo horizonte. Meu corpo dói. Corro a fechar a janela que construí, é melhor assim. Ela sofre, busca um canto e me olha à distância. Vejo seu rosto em contorção. Ela tem um mundo de coisas para dizer, mas começa a doer o ato de falar. Ela fecha os olhos, cansada, deita-se sobre os joelhos dobrados e ali fica por longo tempo. Gosto dela, faz bem sua companhia, faz bem sua intenção de me amar. Mas ali ela ficou e não mais levantou. Não mais vi seus olhos iluminados. Não mais ouvi sua voz. E aquele corpo que era mágico foi definhando. Dissolveu-se com o tempo. Não restou nada.

Faz muito tempo que estou aqui entre essas quatro paredes. Começo a sentir falta de algo. Tenho medo de pensar que sinto falta dela. Não sei se ela ainda existe em outro mundo. Tenho medo de sair daqui, estou sozinho. Hoje tive ímpetos de um projeto audacioso: tornar-me lagartixa. Escalei até o topo do poço. Olhei por sobre o muro com um olho apenas, o outro guardei como segurança. Vi muita luz. Senti dor. Um único olho não agüenta tanto. Tive uma visão linda. Entendi que o mundo externo é o meu lugar. Alegrei-me com a possibilidade de encontrá-la em algum canto da luz. Meu olho fechado me chamou. Desci, porque tinha que varrer toda aquela poeira, poderia chover. Quem sabe um dia?

Faz tempo que estou aqui. E hoje choveu.

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Conto extraído do livro O CENTAURO AMARELO. Ribeirão Preto: Publicação Artesanal, 2002.

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