I Concurso Literário Benfazeja

O traço apolíneo de Salgado Maranhão (i)

Luiz Fernando Valente

"A visão da poesia e das artes em geral está muito relacionada a uma postura dionisíaca e desleixada da vida. Nunca me permiti ser assim. Sempre tive uma postura apolínea."
Salgado Maranhão (ii)


Resumo
Auto-definindo-se como um “poeta apolíneo”, situação invulgar dentro da tradição predominantemente dionisíaca da poesia brasileira, Salgado Maranhão é autor de uma instigante obra cuja enganadora simplicidade mascara “cabralinamente” uma profunda consciência artesanal da palavra combinada a uma lúcida reflexão sobre o estar no mundo.

Palavras-chave
Apolíneo, dionisíaco, poesia brasileira.

Abstract
Self-defined as an “apolinean poet”, an uncommon occurrence within the predominantly dyonisean tradition of Brazilian poetry, Salgado Maranhão is the author of an impressive body of work, whose deceptive simplicity belies a profound self-consciousness about the possibilities and limitations of poetic language, combined with a lucid reflection on man’s situation in a precarious world.

Key-words
Apolinean, dyonisean, Brazilian poetry.


A poesia brasileira nasce e se desenvolve numa linha predominantemente dionisíaca. Como sugere Lúcia Helena em Uma literatura antropofágica, nosso primeiro grande poeta, Gregório de Matos, “inicia em nossa literatura a festa da carnavalização antropofágica” (:24), caminho que, segundo a autora, será percorrido por Augusto dos Anjos, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, entre outros. É também dentro da vertente dionisíaca que se inserem nossos árcades, românticos, parnasianos (iii) e simbolistas, e a maior parte dos nossos poetas modernos e contemporâneos, de Manuel Bandeira, Raul Bopp e Cassiano Ricardo a Adélia Prado, Chacal e Ana Cristina César. Entretanto uma tradição apolínea, menos populosa mas de inegável qualidade, se delineia durante o século passado com poetas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Mário Faustino. É dentro dessa vertente que se situa a obra de José Salgado Santos (1953- ), conhecido como Salgado Maranhão.

Natural de Caxias, no estado do Maranhão e de ascendência afro-brasileira, Salgado Maranhão está radicado desde 1973 no Rio de Janeiro, onde, além de poeta e letrista, é terapeuta de Shiatso e praticante do Zen. Além de ter participado na antologia Ebulições da escrivatura (1978), Salgado Maranhão publicou quatro livros de poesia, Punhos da serpente (1989), Palávora (1995), O beijo da fera (1996), pelo qual recebeu o Prêmio Ribeiro Couto da União Nacional dos Escritores, e Mural de ventos (1998), uma compilação de sua elegante e bem cuidada produção poética, que lhe valeu o Prêmio Jabuti. Sua obra é influenciada pelas suas leituras da grande tradição poética ocidental – em particular, Fernando Pessoa, Ezra Pound, T. S. Eliot, Dante, Maiakowski, e João Cabral de Melo Neto – e pelo seu “relacionamentoíntimo com elementos da filosofia oriental” (Wanderley, 1996: 12). Como sugere Jorge Wanderley, a poesia de Salgado Maranhão é marcada “pelo tom ático, elevado, do mais indiscutível sermo nobilis e também pela notável consciência artesanal da palavra” (:12). Todavia essa preocupação com a forma não resulta na aridez parnasiana da chamada “arte pela arte”. Pelo contrário, a poesia de Salgado Maranhão se origina do engajamento com o quotidiano, da aceitação agônica da materialidade do corpo, e de uma profunda consciência da fugacidade do tempo, da precariedade da existência e da inevitabilidade da história. Desta maneira, podemos caracterizar a poesia de Salgado Maranhão como apolínea não somente no sentido corrente de sobriedade e disciplina, mas também no sentido mais profundo que Friedrich Nietzsche empresta a esse termo.

Rejeitando a teoria de Schopenhauer segundo a qual a tragédia grega seria produto de uma contemplação serena e distante do mundo, Nietzsche propõe em O nascimento da tragédia que a arte trágica resulta de uma tensão entre diferentes formas de energia. Assim, a tragédia clássica seria caracterizada pelo perfeito equilíbrio entre o apolíneo (exemplificado nos diálogos) e o dionisíaco (exemplificado nos ditirambos do coro), equilíbrio esse que se romperá com o advento do racionalismo e do moralismo, representados pelo pensamento de Sócrates e Platão. É importante ressaltar que no sistema nietzscheano o apolíneo não se contrapõe ao dionisíaco, existindo antes entre esses pólos uma antinomia, que desconstrói qualquer rígida oposição entre os dois termos: “O contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações” (1992: 27). Além disso Nietzsche, numa colocação que pode parecer estranha na nossa era pós-freudiana, associa o apolíneo, e não o dionisíaco, aos sonhos, pois neles se vislumbra a possibilidade de um mundo perfeito em contraste com a imperfeição da realidade. Segundo Nietzsche no estado apolíneo dos sonhos “um novo mundo, mais claro, mais compreensível, mais comovedor do que o outro e, no entanto, mais ensombrecido, em incessante mudança, nasce de novo aos nossos olhos” (1992: 62). Local de uma visão para além da realidade pedestre do dia-a-dia, onde se imaginam os fenômenos não como eles são mas como poderiam ser, o mundo apolíneo dos sonhos é análogo à arte, na medida em que esta, enquanto produto das forças afirmativas da “grande vontade de vida”, representa uma vitória da ordem sobre o caos:

A verdade superior, a perfeição desses estados, na sua contraposição com a
realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível, seguida da profunda consciência
da natureza reparadora e sanadora do sono e do sonho, é simultaneamente
o análogo simbólico da aptidão divinatória e mesmo das artes, mercê
das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida (Nietzsche, 1992: 29).

Segundo Nietzsche a melhor poesia lírica, semelhantemente à tragédia, combina o êxtase dionisíaco com a contemplação apolínea. Desta forma, a poesia lírica não seria uma expressão imediata da subjetividade do poeta, mas uma sondagem profunda da relação entre o ser e o mundo mediada por imagens:

Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer “eu”: só
que essa “eudade” (Ichheit) não é a mesma que a do homem empírico-real,
desperto, mas sim a única “eudade” verdadeiramente existente (seiende) e eterna,
em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio
lírico penetra com o olhar até o cerne do ser (Nietzsche, 1992: 43).

Nietzsche, segundo o qual “só conhecemos o artista subjetivo como mau artista” (1992: 43) e para quem “aquele homem ... que deseja e quer subjetivamente não pode jamais e em parte alguma ser poeta” (1992: 46), propõe que as imagens do poeta lírico são “objetificações” do poeta.

Munidos desse instrumental, passemos à leitura de cinco poemas fundamentais de Salgado Maranhão. Com a exceção de “Da série de problemas pessoais”, publicado em Punhos da serpente, os poemas a serem discutidos fazem parte de Palávora, possivelmente seu melhor livro.

O soneto (aliás, uma das formas poéticas preferidas do autor) “Voz” abre sob o signo de Dionísio. O primeiro quarteto chama atenção para a materialidade de nossa existência, isto é, para o fato básico de que, enquanto seres humanos, somos feitos de nossa carne. O leitor é imediatamente confrontado com uma série de imagens que apelam para três dos cinco sentidos: tato (“Minha carne é fibra de argila”), visão (“sol verão”, “docas”, “paiol”) e audição (“rumba” e, indiretamente, “paiol”). Através de surpreendentes metáforas, o corpo, e não o espírito, como talvez se pudesse esperar, é apresentado como um grande reservatório para os desconcertos humanos. O corpo é comparado a “docas”, isto é, tal qual um porto, o corpo é o abrigo da dor (que aqui pode ser tanto espiritual como física); e a um “paiol” onde os “andróides de porre dançam rumba”, sugerindo que as emoções armazenadas no corpo estão sempre, tal qual a pólvora guardada num paiol, no limite de explodir. Assim, o poema sugere que tudo o que somos, desejamos e fazemos, incluindo nossa própria espiritualidade, passa inevitavelmente por nossos corpos. O segundo quarteto, por outro lado, nos coloca sob a égide de Apolo. Assistimos aqui ao processo de nascimento da poesia. Ainda que, qual flor brotando da terra, surja organicamente das experiências pessoais do poeta (“flui de mim um girassol lilás”), o poema é também uma construção que conduz a uma nova visão do mundo (“esculpe as esquadrias do arrebol”) para além da precariedade da existência humana (“dissolve o tempo”). Em outras palavras, apesar dos laços inevitáveis com a individualidade do poeta, a poesia transcende o meramente subjetivo na medida em que penetra na profundeza do ser e tenta decifrar os seus enigmas. Todavia, ao mesmo tempo que se conecta com o profético (“luz... que mais alumbra”), a poesia retém sua ligação primordial com a música (“que jazz”), ecoando assim a proposição nietzscheana segundo a qual “Apolo não podia viver sem Dionísio” (1992: 41). De sua parte, o poeta é comparado a um leão, sublinhando-se assim a força, o poder e a majestade do texto poético. Em concordância com a tradição petrarco-camoniana, os tercetos introduzem uma variação que desenvolve e completa o que foi expresso na oitava que os precede. Embora proporcione prazer (“de júbilo”), o poema é produto tanto do trabalho com a forma quanto das lutas da existência humana (“tanto degrau… tanta esgrima…”), dualidade sintetizada na paradoxal formulação “redemoinho de pedras”. O soneto conclui com uma afirmação da necessidade da arte, por mais que exígua, no acidentado percurso da vida: “e ao ter somente a voz como caminho / agarro a poesia pela crina / e me arrimo na minha própria rima”.

“Corda bamba” gira em torno de idéias semelhantes às que informam “Voz”, embora num registro menos solene. Em particular, “Corda bamba” enfatiza a função mediadora do poeta e da poesia. O poema está dividido em duas partes assimétricas. A primeira parte é composta de duas estrofes, nas quais, como em “Voz”, transitamos do dionisíaco ao apolíneo. Na primeira estrofe o poeta é definido em termos dionisíacos como “mercador / traficante de caminhos / que vende raios / sinfonias / e horizontes”. Como sabemos, Dionísio foi um grande viajante (portanto, “traficante de caminhos”), era filho de Zeus (o que torna apropriada a menção de “raios”), e seu culto estava ligado à música (“sinfonias”). Unindo o céu à terra, “horizontes” pode ser visto como uma metáfora para a arte (da qual Dionísio era patrono), na medida em que a arte estabelece uma conexão entre o sensível e o transcendente. Na segunda estrofe o poeta é definido em termos apolíneos. De Apolo o poeta herda a aptidão profética, o comedimento, e a capacidade de transcender, através de sua criação, a fugacidade do tempo e a transitoriedade do mundo sensível, embora seja este o material de que paradoxalmente é feita sua arte. Por isso, o poeta é um “frugal mercador de eternidades / porta a porto / aos quatro cantos do luar / ao mar / ao ar / sob o tempo /e o temporal”. Continuando a destacar o papel mediador do poeta, cuja atividade se situa entre os extremos da carne e do
intelecto, a segunda parte do poema propõe como alicerce da poesia a síntese do êxtase dionisíaco com a sobriedade apolínea: “o poeta corre o risco / entre o amor livre / e a palavra”. A poesia nasce de vivências concretas (“atravessa submerso as metrópoles / dos olhares”), pois está ancorada na experiência que o poeta possui da precariedade da existência humana (“em plena corda bamba / do mistério”) num mundo natural que lhe é indiferente. Neste sentido, é significativa a utilização poética em “Corda bamba” dos quatro elementos – terra, ar, água e fogo – que a ciência antiga, seguindo a proposição de Empédocles, como as substâncias constitutivas da natureza. Todavia, a poesia não é nem uma simples cópia da realidade exterior nem uma expressão inconsciente da subjetividade, mas uma construção voluntária e intencional (“está sempre atrás do pano”). É nesse sentido que o poeta é um profeta (“um louco solitário / que come fogo”), cujo ofício é oferecer-nos uma visão que transcenda a contingência do mundo natural e que nos conduza a uma percepção
mais aprofundada do ser.

À primeira vista o poema “Da série problemas pessoais” parece contrariar o que vimos dizendo sobre a poesia de Salgado Maranhão. Superficialmente, o poema pode ser lido como mais uma variação sobre o tema do ennui, tão caro aos românticos e simbolistas, e a certos modernos como, por exemplo, o Mário de
Andrade de Paulicéia desvairada ou o Fernando Pessoa em seu heterônimo Álvaro de Campos. Sem dúvida, há algo do spleen baudelairiano nesse indivíduo que perambula pela cidade arrastando um mal estar generalizado, e aparentemente destituído de perspectivas futuras. Entretanto, estamos bastante distantes da postura solipsista bem como do estilo grandiloqüente, freqüentemente associados à poetização do tema do ennui (iv). Aqui o poeta não se volta para dentro de si, mas ao contrário, deixa a segurança da casa e sai para a rua. Assim, o poema nasce do confronto entre um eu nãoheróico e o prosaico mundo exterior (“meto a cara na manhã / empoeirada da metrópole”). Além disso, o registro coloquial com o qual o poema se abre (“meto a cara”) e se fecha (“com o saco cheio de sair pela traseira / da vida”) desconstrói o patético, presente na maioria dos tratamentos daquele tema, ao mesmo tempo em que o tom não solene torna possível uma mais ampla identificação do leitor com a situação existencial da qual se origina o poema. A própria palavra “metrópole” sugere um espaço no qual a subjetividade individual é colocada em questão, ameaçada pelo coletivo. A primeira estrofe conclui definindo a poesia não como uma expressão da subjetividade do poeta, mas como o produto de uma luta entre o poeta e a linguagem poética (“arrasto comigo um poema / em busca de palavras exatas / para ser tecido”), homóloga, portanto, à confrontação entre o poeta e o mundo com que
a estrofe se tinha aberto. A segunda estrofe retoma o motivo do confronto entre o eu e o mundo (“jogo o corpo na manhã / cinzenta da cidade”). Todavia, o conflito individual é, como na primeira estrofe, imediatamente alargado na direção do universal. Enquanto a primeira estrofe transita de uma situação individual para uma evocação do processo de criação poética, a segunda estrofe expande a experiência individual numa consideração do complexo relacionamento entre o ser humano e o tempo. À transitoriedade do presente, soma-se a impossibilidade tanto de se controlar o futuro num mundo feito de contingência (“com a cara lavada de perspectivas”) quanto de se libertar da herança do passado (“e o coração que é um largo
lençol / de cicatrizes”). Imprensados entre o pesado fardo da memória e a frustração do desejo, estamos, enquanto seres humanos, condenados à efemeridade do presente, expressa aqui pelo uso exclusivo de verbos no presente do indicativo. Por toda sua obra, Salgado Maranhão propõe insistentemente que é talvez somente na criação artística que possamos realizar uma vitória sobre o tempo. Significativamente, nos dois primeiros versos da terceira estrofe a dicção coloquial que predomina na maior parte do poema é substituída por uma dicção obviamente literária, que não só incorpora o metafórico (“navego longamente na manhã”) mas também, através do neologismo “urbanotrópole”, sugere a ilimitada potencialidade criativa da linguagem poética. A partir de uma matéria prima ostensivamente individual, como sugere o próprio título, o poema aos poucos amplia sua perspectiva, conduzindo-nos a uma consideração sobre o estar no mundo e a uma meditação sobre a criação poética.

“Deslimites 10” é um excelente exemplo de um aspecto de fundamental importância na obra de Salgado Maranhão desde o início de sua carreira, quando, nos últimos anos da década de 70, emergiu como um dos mais promissores membros do Grupo Ebulição, formado por treze jovens poetas conscientes dos desafios impostos pelo contexto sociopolítico em que criavam sua poesia:(v) sua profunda consciência do relacionamento entre o indivíduo e a história. Colocando em questão a definição da identidade do Brasil em particular e do Novo Mundo em geral como uma síntese de várias etnias, exemplificada pela “fábula das três raças” no Brasil e pelo mito do “melting pot” nos Estados Unidos, “Deslimites 10” é uma meditação crítica sobre a situação dos grupos marginalizados e o papel que a poesia exerce como elemento tanto de preservação quanto de transformação da sua história. Semelhantemente ao que William Faulkner, referindo-se à fortitude dos descendentes de escravos no sul dos Estados Unidos, caracterizou como “endurance”, o poema se abre focalizando na notável capacidade de sobrevivência daqueles grupos – negros, indígenas, sertanejos – e contradizendo a suposta passividade que freqüentemente lhes é atribuída, como por exemplo no retrato dos afro-brasileiros na obra de escritores como Gilberto Freyre e José Lins do Rego: “eu sou o que mataram / e não morreu, / o que dança sobre os cactos / e a pedra bruta / — eu sou a luta”. Ainda que rejeitados pela sociedade dominante, resistem à injustiça e desumanização de que foram vítimas transformando suas vivências em majestosas expressões culturais: “o que há sido entregue aos urubus / e de blues / em / blues / endominga as quartas-feiras. / – eu sou a luz / sob a sujeira”. Descartando o sincretismo, o poema ressalta as diferenças (“endominga as quartas-feiras”) e celebra a singularidade cultural (“de blues / em blues”) desses filhos da África. Mais uma vez abandonando qualquer noção de síntese, a segunda estrofe apresenta, na esteira de Walter Benjamin, uma visão da história como ruína: “(noite que adentra a noite e encerra / os séculos, / farrapos das minhas etnias / artérias inundadas de arquétipos).” Entretanto, o poeta não acede passivamente às imposições dessa história que quer degradá-lo e marginalizá-lo. Embora guarde a memória da escravidão (“eu sou o ferro”) e de outras abjeções sofridas ao longo da história (“fogo milenar desta caldeira”), o poeta ousa levantar sua voz (“eu sou a forra”) e contemplar novas possibilidades (“elevo meu imenso pau de ébano / obelisco às estrelas”). Essa oposição, que se estenderá pelo resto do poema, é codificada na estrofe seguinte (“eh tempo em deslimite e desenlace! / eh tempo de látex e onipotência”), que aliás funciona como refrão na parte final do poema. Através do recurso retórico do quiasmo os elementos negativos (“desenlace” e “látex” – na medida em que o látex é usado para impedir a concepção) são contrabalançados pelos elementos positivos (“deslimite” e “onipotência”). Dando continuidade a essa alternância entre o negativo e o positivo, a sétima estrofe refere-se ao capitalismo selvagem e desumanizante dos tempos atuais como uma nova variação da escravidão: “e de blues a urublues / ouço a moenda / dos novos senhores de escravos / com suas fezes de ouro / com seus corações de escarro”. Significativamente, contudo, o poema termina com uma visão profética, que é ao mesmo tempo um ato de rebeldia. Mais uma vez o poeta levanta sua voz, afirmando que “eu sou a luz em seu rito de sombras / – esse intocável brilho”.

Finalmente, “Atemporal” pode ser lido como uma síntese da poética salgadiana, amalgamando traços apolíneos com a influência da filosofia oriental. O poema insiste mais uma vez sobre a imprescindibilidade da poesia (“no fim da linha / o que sobra é a poesia”) na busca contemplada, mas nunca completamente realizada (“a lapidar o inatingível”) de algo mais profundo (“a vida em sua face oculta”)(vi), para além do sensível. Salgado Maranhão confia na existência de uma dimensão transcendente à precariedade do quotidiano (o “avesso do des/haver”). Entretanto, essa busca, que aspira a um estado de tranqüilidade, depende paradoxalmente de uma luta perene com a palavra: “plasmada em palavras / e silêncios”.(vii) Não há nada de ingênuo, contudo, nessa procura. Com a lucidez que caracteriza toda a obra do autor, o poema reconhece a precariedade do próprio fazer poético, pois, enquanto atividade humana, sua matéria prima é necessariamente o contingente. Por isso, a poesia seria “construção sobre ruínas”. O poema conclui com uma visão extática, que evoca Mallarmé: “é o infinito não-ser /em seu azul atemporal”.

Uma das vozes mais originais de sua geração, Salgado Maranhão representa um elo importante na evolução do que identificamos como a linha apolínea na moderna poesia brasileira. Herdeiro de Drummond, Cabral e Faustino, sua elegante obra poética continua e renova o melhor da produção poética brasileira das seis últimas décadas.

Luiz Fernando Valente
Professor da Brown University

Notas

1. Este ensaio é baseado em comunicações sobre a poesia de Salgado Maranhão apresentadas nos congressos da Brazilian Studies Association (Atlanta, 2002) e da Associação Internacional de Lusitanistas (Providence, 2002). Agradeço a Silviano Santiago e Cleonice Berardinelli pelos comentários e sugestões a uma versão preliminar deste trabalho.

2. Citado em “Versos e óleos nas mesmas mãos”.

3. Apesar da preocupação com a precisão formal, a poesia parnasiana se insere na tradição dionisíaca pela musicalidade do verso e pela opulência das imagens.

4. Por exemplo, “O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser, / E a memória de qualquer coisa de que não me lembro esfria-me a alma” (Álvaro de Campos); ou os célebres versos de Baudelaire: “Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle / Sur l’esprit gémissant en proie aux longs ennuis / Et que l’horizon embrassant tout le cercle / Il nous verse un jour noir plus triste que les nuits” (“Spleen”).

5. Ver a antologia Ebulições da escrivatura: treze poetas impossíveis. Falando por seus colegas na introdução do volume, “Todos por um e um por todos”, Salgado Maranhão diz o seguinte: “Essa visão transformadora do mundo é que une todos os poetas do livro numa só frente de luta, na medida em que acreditam que a poesia transforma, educa e dá prazer às pessoas... A poesia do Grupo Ebulição da Escrivatura é, pois, a explosão de vários anos de sufoco e emoções acumuladas, sacudindo a própria repressão cultural e os cipós do formalismo para se tornar viva e intensa como a dor de um quisto” (1978: 10).

6. “Eu gosto desse estar oculto, essa posição permite que eu veja as coisas claramente”. Citado por Martins.

7. Comentando sobre seu método de trabalho, Salgado Maranhão revela que “o primeiro momento é o do encantamento, é o encontro com a musa. Mas depois, no segundo momento, é um impacto com o texto já existente, que precisa ser trabalhado, é um impacto com o nada, com uma relação insubstituível com a palavra”. Citado em “A poesia é um outro país”.


Referências bibliográficas

“A poesia é um outro país”. In: Correio Braziliense, Suplemento Pensar. 16 de julho de 2002. HELENA, Lucia. Uma literatura antropofágica. Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará, 1983.

MARANHÃO, Salgado. Mural de ventos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

. O beijo da fera. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

. Palávora. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

. Punhos da serpente. Rio de Janeiro: Achiamé, 1989.

MARTINS, Ana Maria. “Versos e óleos nas mesmas mãos”. In: Jornal do Brasil, Caderno B. 29 de julho de 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SEVALHO, Gil et al. Ebulição da escrivatura: treze poetas impossíveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

WANDERLEY, Jorge. “Pequena nota sobre ‘O Beijo da Fera’ de Salgado Maranhão” . In: O beijo da fera, 11-14.

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