Jantar em família
Conto, por Valentina Silva Ferreira.
"...apenas aquele sorriso que, conforme o humor de quem o recebia, poderia ser bonito ou irritante. "
- Passe-me a mão direita, mãe.
A senhora, sentada na poltrona de veludo verde-escuro, permaneceu estática. No sorriso miúdo via-se uma espécie de gozo, como as crianças que desobedecem e sentem prazer nisso. Os dentes, da placa cara e antiga, escondiam-se atrás da cortina dos beiços pálidos e, por cima, um bigodinho ralo e negro, sombreava aquela pele branca de neve. Os olhos estavam fechados.
- Oh mãe, nunca faz nada do que eu peço.
Cristina puxou o braço da mãe, carinhosamente, mas com uma certa firmeza, para a velha ver que, ali, quem mandava era ela, a filha: as tais ironias da vida. Passou o pincel na unha maior, tornando o amarelo sujo da unha gasta num vermelho vivo, demasiado extravagante para aquela mulher.
- Hoje é um dia especial, mãe. Vais conhecer o meu namorado.
As unhas foram todas pintadas e, depois, a velha mulher ganhou mais cor no rosto, com a ajuda das maquilhagens que Cristina coleccionava. Não mudou de roupa - estava bem assim, no seu conjunto azul-escuro. Usava-o muitas vezes. O cabelo foi penteado para trás; nas orelhas pendiam umas pérolas pequenas e, no anelar, uma jóia em ouro luzia sob o reflexo da vela acesa.
- Acho que vais gostar dele!
Cristina beijou a mãe e foi, ela própria, preparar-se para o jantar. A mãe ficou sozinha na sala, como tantas vezes ficava desde o acidente. Guardada no escuro, fazia companhia aos móveis e às plantas. Às vezes, antes de sair para trabalhar, Cristina ligava a televisão, colocava o volume na medida certa - o suficiente para ouvir ou para deixar dormir - e ajeitava as almofadas da mãe, para que ela ficasse direita. Muitas tardes, quando Cristina voltava, a senhora estava tombada para a frente ou para o lado. Coisas do cansaço ou da gravidade que, como se sabe, não perdoa a idade. Mas Cristina, com a sua doce paciência, endireitava a mãe, dava-lhe um beijo e ia preparar jantar. Sentavam-se juntas na mesa da cozinha, após Cristina quase deslocar a bacia para poder levar a mãe até lá, e conversavam sobre o dia. Bom, Cristina falava porque a velha não tinha muito o que contar.
- Estou pronta, mãe. Que achas?
A senhora não pronunciou nenhum som, apenas aquele sorriso que, conforme o humor de quem o recebia, poderia ser bonito ou irritante. Pelo brilho dos olhos de Cristina, ela estava feliz e o sorriso tinha sido a resposta perfeita à sua pergunta. Pegou na mãe, um braço à volta da cintura e o outro detrás das costas e foram, ambas quase a rasgar a alcatifa com os saltos, até à sala de visitas, aquela que só era usada em dias muito importantes. E quando digo muito importantes não consigo exprimir por palavras quão especiais são essas ocasiões: como o dia do acidente. O irmão de Cristina ia casar. Estavam todos, naquela sala, a dar beijos e abraços e a fazer recomendações. Telmo, o irmão, apertava os atilhos dos sapatos; Cristina arranjava o chapéu; a mãe rezava, baixinho, com o nó da separação na garganta; o pai disparava imbecilidades para o ar. Saíram juntos, foram no mesmo carro e, a cinco minutos da igreja, um grande camião chocou com o carro. Telmo teve morte imediata. A mãe e o pai ficaram em coma durante longas semanas. Cristina, como se tivesse roubado a sorte de todos os outros, apenas cortou a bochecha.
- Mãe, ele chegou.
Cristina voou até à porta. O ruído de um beijo repenicado chocou nas paredes daquela casa que, há muito, não conhecia esses sons do amor. Cristina apareceu, com o rosto banhado de felicidade, ao lado de um homem baixo e pouco atraente.
- Mãe, este é o J.P.
O homem engoliu em seco e apertou o tecido do casaco. Analisou aquela mulher: como era feia - o cabelo teso pela laca em excesso; o sorriso mesquinho; os olhos pequeninos, quase fechados; a pele branca que, se olhássemos bem, podia ser cinzenta; o cheiro a podre entranhado num fato velho e castigado pelo uso. O vómito subiu-lhe à garganta. Nunca estivera tão perto da morte como naquele momento. J.P sentiu as axilas ensoparem em suor. Estava preparado para qualquer tipo de sogra, menos para aquela. Uma sogra defunta era tudo o que não queria. Isso, e uma namorada louca.
A senhora, sentada na poltrona de veludo verde-escuro, permaneceu estática. No sorriso miúdo via-se uma espécie de gozo, como as crianças que desobedecem e sentem prazer nisso. Os dentes, da placa cara e antiga, escondiam-se atrás da cortina dos beiços pálidos e, por cima, um bigodinho ralo e negro, sombreava aquela pele branca de neve. Os olhos estavam fechados.
- Oh mãe, nunca faz nada do que eu peço.
Cristina puxou o braço da mãe, carinhosamente, mas com uma certa firmeza, para a velha ver que, ali, quem mandava era ela, a filha: as tais ironias da vida. Passou o pincel na unha maior, tornando o amarelo sujo da unha gasta num vermelho vivo, demasiado extravagante para aquela mulher.
- Hoje é um dia especial, mãe. Vais conhecer o meu namorado.
As unhas foram todas pintadas e, depois, a velha mulher ganhou mais cor no rosto, com a ajuda das maquilhagens que Cristina coleccionava. Não mudou de roupa - estava bem assim, no seu conjunto azul-escuro. Usava-o muitas vezes. O cabelo foi penteado para trás; nas orelhas pendiam umas pérolas pequenas e, no anelar, uma jóia em ouro luzia sob o reflexo da vela acesa.
- Acho que vais gostar dele!
Cristina beijou a mãe e foi, ela própria, preparar-se para o jantar. A mãe ficou sozinha na sala, como tantas vezes ficava desde o acidente. Guardada no escuro, fazia companhia aos móveis e às plantas. Às vezes, antes de sair para trabalhar, Cristina ligava a televisão, colocava o volume na medida certa - o suficiente para ouvir ou para deixar dormir - e ajeitava as almofadas da mãe, para que ela ficasse direita. Muitas tardes, quando Cristina voltava, a senhora estava tombada para a frente ou para o lado. Coisas do cansaço ou da gravidade que, como se sabe, não perdoa a idade. Mas Cristina, com a sua doce paciência, endireitava a mãe, dava-lhe um beijo e ia preparar jantar. Sentavam-se juntas na mesa da cozinha, após Cristina quase deslocar a bacia para poder levar a mãe até lá, e conversavam sobre o dia. Bom, Cristina falava porque a velha não tinha muito o que contar.
- Estou pronta, mãe. Que achas?
A senhora não pronunciou nenhum som, apenas aquele sorriso que, conforme o humor de quem o recebia, poderia ser bonito ou irritante. Pelo brilho dos olhos de Cristina, ela estava feliz e o sorriso tinha sido a resposta perfeita à sua pergunta. Pegou na mãe, um braço à volta da cintura e o outro detrás das costas e foram, ambas quase a rasgar a alcatifa com os saltos, até à sala de visitas, aquela que só era usada em dias muito importantes. E quando digo muito importantes não consigo exprimir por palavras quão especiais são essas ocasiões: como o dia do acidente. O irmão de Cristina ia casar. Estavam todos, naquela sala, a dar beijos e abraços e a fazer recomendações. Telmo, o irmão, apertava os atilhos dos sapatos; Cristina arranjava o chapéu; a mãe rezava, baixinho, com o nó da separação na garganta; o pai disparava imbecilidades para o ar. Saíram juntos, foram no mesmo carro e, a cinco minutos da igreja, um grande camião chocou com o carro. Telmo teve morte imediata. A mãe e o pai ficaram em coma durante longas semanas. Cristina, como se tivesse roubado a sorte de todos os outros, apenas cortou a bochecha.
- Mãe, ele chegou.
Cristina voou até à porta. O ruído de um beijo repenicado chocou nas paredes daquela casa que, há muito, não conhecia esses sons do amor. Cristina apareceu, com o rosto banhado de felicidade, ao lado de um homem baixo e pouco atraente.
- Mãe, este é o J.P.
O homem engoliu em seco e apertou o tecido do casaco. Analisou aquela mulher: como era feia - o cabelo teso pela laca em excesso; o sorriso mesquinho; os olhos pequeninos, quase fechados; a pele branca que, se olhássemos bem, podia ser cinzenta; o cheiro a podre entranhado num fato velho e castigado pelo uso. O vómito subiu-lhe à garganta. Nunca estivera tão perto da morte como naquele momento. J.P sentiu as axilas ensoparem em suor. Estava preparado para qualquer tipo de sogra, menos para aquela. Uma sogra defunta era tudo o que não queria. Isso, e uma namorada louca.
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Créditos da imagem: Olhares.com
Mãos, por Marcos Antonio Benassi
Eu gosto das senhorinhas arrumadas. Quem namora, conhece a família e, se não gosta da família, é melhor sair do namoro. Ele também tem uma família e a moça também deve conviver bem com essa família. Do contrário, sou contra esse namoro! Rsrs. Um abraço, Yayá.
ResponderExcluirA namorada a gente escolhe, a sogra, não tem jeito. "Errou na dose, errou na amor", como dizia o Chico Buarque. Mais um conto belíssimo, Valentina. Abraços. Paz e bem.
ResponderExcluirBeijo grande a todos os que leram, gostaram e comentaram o meu conto. Escrever para vocês será sempre um prazer :)
ResponderExcluirValentina Silva Ferreira.