Heitor
Conto, por Celly Monteiro.
Há muito que não via pai, nem mãe, nem família nenhuma. A família de um guerreiro são os companheiros de batalha. Os irmãos vão caindo juntos com os inimigos, nem sempre com sepultura. Seus pertences sujeitos a pilhagem. O corpo; alimento para as aves.
Os anos correm como que por milagre; sem cama quente, sem comida decente. O calor humano se manifesta no campo e vai se dissipando, suplantado pela lembrança das feridas ou então avivado no ventre escuro dos abutres. Quantas famílias seu braço pusera em segurança mesmo banhado de sangue? Quantos homens dera liberdade batendo-se com o inimigo como se fosse fera? E agora resta só o silêncio. O fim era frio, turvo, e solitário como o fundo do oceano. Não havia nenhuma gloria em perecer em um campo de batalha distante dos olhos daqueles por quem lutou. Imerso em total anonimato. Tão distante mesmo da memória daquela que lhe gerou. Sem um rosto conhecido. Sem uma palavra de conforto. Cercado de inimigos. Sentindo que era só mais um homem dentre tantos. Sem nem mesmo pertencer mais a um lado do campo de batalha.
Seus feitos se dissipam naquela aragem, em instantes não será mais nada. Seu braço forte encontrou imponente digno e agora o silêncio é sua mortalha. As aves desempenham um vôo solene, apenas espreitam pacientemente o nefasto momento de se regalarem-se de sua carne. A fumaça ao longe não é pira funerária, mas apenas marca daquele novo embate.
Triste engano que se descobre apenas no fim; o único inimigo sempre foi à morte. Seu último banho é de sangue. O vento vai levando aquele odor acre a se misturar com as outras mostras de barbaridade. O ceifeiro cruel que lhe reduz a cacos pouco antes do fim como uma forma de castigo por bater-se com outros homens.
Cerra lentamente os olhos, torcendo que aquela tortura não se prolongue. Seus ouvidos ainda ouvem com normalidade, passos se aproximam, para romper o silêncio de forma ultrajante. Prepara-se para ter o momento de morte violado. Que levem tudo; mesmo sua bela armadura agora de nada lhe serve mais. Mas que surpresa! Mãos delicadas acolhem sua cabeça, depositando-as em superfície macia, morna, perfumada. Sente carícias ternas em seu cabelo sujo de sangue. Sente saudade daquele calor emanado pela a vida. Gotas mornas gotejam em seu rosto. Por incrível que pareça não é sangue. Aquele cheiro lembra sua mãe que um dia esquecera para tornar-se homem. Traz lembranças de braços femininos em que se refugiou em momentos de cansaço do terror da guerra. Abre os olhos para vislumbrar a Valquíria bondosa que vem acompanhá-lo ao fim. Seus olhos fitam uma desconhecida. Um rosto sem qualquer significado. Não imagina que em algum momento foi mesmo herói, que seu nome por alguém é lembrado. A morte afasta qualquer alento. Naquele colo finalmente expira. Vai embora sem deixar qualquer legado.
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Créditos da imagem: Site olharees - fotografia online
Imagem 1, por Fulano de Tal .
Gostei muito, Celly.
ResponderExcluirPoderia ser qualquer Heitor da modernidade, desses que esbarramos todos os dias nas grandes cidades.
Mas tratando-se de mitologia, para mim, o verdadeiro e único herói da Ilíada é Heitor, e não Aquiles.
Hm, tbm tenho um especial apreço por um personagem tão nobre e com final tão comovente como ele, não é atoa que escrevi o conto. fico feliz que tenha gostado José. Obrigada pela leitura. Abraços!
ResponderExcluirUm conto que consegue captar a solidão e a melancolia, sentimentos que nem mesmo um herói consegue vencer, muito bom. Por fim, o que é mesmo vencer?
ResponderExcluirAdorei, Celly! Parabéns.
ResponderExcluirMuito original, fez transportar até o coração do guerreiro...
ResponderExcluirbjs meus
Fico feliz que tenham gostado meninas. ^^
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