I Concurso Literário Benfazeja

As Nossas Ausências e outros poemas




Por Marcelo Sousa.



As nossas ausências

Certa manhã, ao acordarmos juntos e já atrasados
cada um correndo para um lado
procurando roupas e tempo,
ela parou, deixou o vento alisar seus cabelos
e o sol dar-lhe no rosto o beijo
que me faltou naquela hora.

O maquinário do viver vai gastando certas peças
que a gente não percebe que eram detalhes
que faziam toda a diferença, mas que de repente
simplesmente vão embora.

Ela fitou-me sem alento, e sentada na cama
frente à janela que convidava a aventuras titânicas
acho que desejou sair voando
como fazem sem pudor as aves oceânicas
a garça branca, o martim pescador, a gaivota
esses bichos poetas que rabiscam no céus
as suas efêmeras notas.

E sem saber se poderia ou deveria desejar ir ou ficar
ou se haveria tempo pra amar ou só olhar o mar
ou se tinha em si o tanto de loucura para saltar (voar?)
apenas disse com a sabedoria simples dos amantes:


"Ás vezes eu me pergunto se tudo o que a gente tem de verdade
são as nossas ausências..."

E eu, ausente de mim mesmo,
sem saber se ali ainda estava o homem
ou já a engrenagem imunda que move a máquina do mundo
só pude preenchê-la com a delicadeza destemperada do meu choro
e com os carinhos brutos da minha carne ereta de poeta
naquele único momento que de fato era nosso. (Era? Foi?)

E, sem mais filosofia
nos despedimos com um beijo de bom dia!



A Flauta de Pan


Eis que do aço e do concreto
pode brotar uma semente de nuvem, de éter,
que por um milagre oculto, discreto, seja
o nascimento de algo terrível e lindo
que vira carne, e em seu cerne te beija
e te segura pela crina e te cavalga
e te chama pelo teu nome secreto
aquele que só tua alma conhece
aquele que aparece quando você geme
no mais safado prazer ou na mais dolorosa prece
e que funciona como os axiomas
como os ditames da Filosofia
como a flauta de Pan
que com ou sem rima
do fundo do abismo onde habita
chega, te toca, esfrega na tua cara
as mais raras verdades e as mais puras putarias
a música mais esquisita, as mais dissonantes notas
e as mais doces iguarias que a tua língua e teus ouvidos
poderiam ouvir. Pobre e afortunada alma:
um poeta tocou em ti!



Deixai Crescer As Rosas


Homens circunspectos!
Homens de negócios!
Homens importantes!
Longe de mim!
Deixem-me quieto!
Protegei meu ócio!
Não quero ser amigo ou amante.
Não quero tirar a sorte grande.
Quero apenas ser poeta
e não ter que ser mais nada
além de uma criatura calada, alada
ou simplesmente sentada perdendo tempo
e ganhando a vida!
Estou incompleto, silente.
No seio da terra sou semente.
Deixai-me brotar devagar.
Deixai-me ser apenas um feto.
Essas horinhas da manhã precisam ser protegidas.
Essas horinhas de masturbação, de oração, de ação e sossego.
Deixai-me sozinho nessas horinhas malditas e milagrosas.
Por que é só quando o jardineiro não está olhando
é que crescem as rosas!


*
"Pedra e Pelúcia" / Crédito: Marcelo Sousa

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