Retrospectiva literária: entre o épico e o cotidiano
Artigo para a seção Escrita Criativa, por Carolina Bernardes.
Nesta época do ano, acabamos mergulhados em uma infinidade de textos e reportagens televisivas refletindo sobre os acontecimentos do ano, que propõem um balanço do que significou o pobre e desprezado ano que termina. Talvez seja uma atitude ingrata com os 365 dias vividos, pois ele acaba reduzido a uma lista “Top Five” de catástrofes, polêmicas, escândalos, falecimentos, os vencedores de campeonatos de futebol. Ficam de fora da seleção as histórias das pessoas comuns: o almoço de cada dia (com muito arroz, feijão e ovo frito); as contas pagas e não pagas; o trânsito diário entre um local e outro; o encontro, o desencontro; a gripe que cancelou a noitada; o cansaço, o desvio, o atraso, o imprevisto, que diminuem o ritmo de trabalho e adiam projetos; os pequenos avanços de relacionamento; a morte do passarinho, da avó, do porteiro do prédio; a poesia que saiu do papel (ou entrou); as sinapses da rede social; a repetição da limpeza, da comida, do exercício físico, da auto-sabotagem; a espera da chuva, a espera do sol, a espera do calor e do frio, a espera de algo mais. Essa história não faz parte da retrospectiva, pois não salta aos olhos, não merece ser contada, segundo o cânone que dita o relevante e o descartável. O que se noticia, para ser consumido pelo público, é o momento épico. Quais foram os heróis do ano? E os grandes antagonistas? Quais foram os fenômenos climáticos que assolaram a boa gente, de maneira trágica, no melhor sentido dos gregos? E os conflitos entre povos, que movem paixões demasiadamente humanas, como em um filme de guerra de três horas de duração? Quais mitos decaíram com a morte ou se elevaram exatamente por terem saído de cena?
Este olhar seletivo para os acontecimentos grandiosos (nem sempre) de um ano reflete o interesse do ser humano por narrativas épicas. Ao leitor é muito atrativo acompanhar sagas, lutas, eventos sobrenaturais, heróis que se superam e vão além dos obstáculos, sucumbindo muitas vezes pelo poder de uma força maior. Gostamos de reconhecer o poder do homem, sua capacidade de enfrentamento, o que há de valor no aparente cotidiano insípido. Gostamos da ação, do suspense, da tragédia que envolve o destino humano. São esses ingredientes que nos levam ao cinema, ao jogo de futebol, a um show de música (seja de que gênero for) e a nos comover diante de desvarios contra animais indefesos e bebês rejeitados. Tanto o amor, como as lágrimas, o riso e a fatalidade são o impulso para a catarse (purificação do espírito do espectador/leitor através da purgação de suas paixões, dos sentimentos de terror e piedade). Isso, porém, porque deixamos de acreditar no cotidiano, como se a “vida comum” não tivesse significado maior e não pudesse mobilizar tantas emoções catárticas. Falemos, então, da simplicidade.
Existe um texto de Otto Lara Resende que costumo utilizar em minhas aulas de Escrita Criativa. Intitulado “Vista Cansada”, o autor incita o leitor a ver pela primeira vez o que se vê todo dia. Vemos sem ver. Os detalhes do trajeto que fazemos diariamente para chegar ao trabalho costumam ser ignorados. O banho, a comida, os olhos do irmão, da mãe. A esposa que arrumou o cabelo. O passarinho na árvore da frente. “O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.” Mas vemos a mulher que mata um cachorro, o assassinato de um certo goleiro, a menina atirada pela janela, os dribles sensacionais do atacante, o corpo e os cabelos (tão iguais aos da esposa) daquela cantora que sacode o público. Nossos olhos estão prontos para o que nos parece singular. E, assim paramentados, vamos em busca de outras viagens, conhecer outros mundos, a vida do outro em planetas distantes, sem perceber que a matéria-prima de nossas histórias e poemas está tão perto, nas folhas de relva de Walt Whitman, nas coisas ínfimas de Manoel de Barros, no último poema de Manuel Bandeira e na última crônica de Fernando Sabino, feitos das coisas mais simples.
Assim eu termino meu último artigo deste ano: desejando que os olhos dos autores de 2012 estejam imensamente abertos.
Este olhar seletivo para os acontecimentos grandiosos (nem sempre) de um ano reflete o interesse do ser humano por narrativas épicas. Ao leitor é muito atrativo acompanhar sagas, lutas, eventos sobrenaturais, heróis que se superam e vão além dos obstáculos, sucumbindo muitas vezes pelo poder de uma força maior. Gostamos de reconhecer o poder do homem, sua capacidade de enfrentamento, o que há de valor no aparente cotidiano insípido. Gostamos da ação, do suspense, da tragédia que envolve o destino humano. São esses ingredientes que nos levam ao cinema, ao jogo de futebol, a um show de música (seja de que gênero for) e a nos comover diante de desvarios contra animais indefesos e bebês rejeitados. Tanto o amor, como as lágrimas, o riso e a fatalidade são o impulso para a catarse (purificação do espírito do espectador/leitor através da purgação de suas paixões, dos sentimentos de terror e piedade). Isso, porém, porque deixamos de acreditar no cotidiano, como se a “vida comum” não tivesse significado maior e não pudesse mobilizar tantas emoções catárticas. Falemos, então, da simplicidade.
Existe um texto de Otto Lara Resende que costumo utilizar em minhas aulas de Escrita Criativa. Intitulado “Vista Cansada”, o autor incita o leitor a ver pela primeira vez o que se vê todo dia. Vemos sem ver. Os detalhes do trajeto que fazemos diariamente para chegar ao trabalho costumam ser ignorados. O banho, a comida, os olhos do irmão, da mãe. A esposa que arrumou o cabelo. O passarinho na árvore da frente. “O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.” Mas vemos a mulher que mata um cachorro, o assassinato de um certo goleiro, a menina atirada pela janela, os dribles sensacionais do atacante, o corpo e os cabelos (tão iguais aos da esposa) daquela cantora que sacode o público. Nossos olhos estão prontos para o que nos parece singular. E, assim paramentados, vamos em busca de outras viagens, conhecer outros mundos, a vida do outro em planetas distantes, sem perceber que a matéria-prima de nossas histórias e poemas está tão perto, nas folhas de relva de Walt Whitman, nas coisas ínfimas de Manoel de Barros, no último poema de Manuel Bandeira e na última crônica de Fernando Sabino, feitos das coisas mais simples.
Assim eu termino meu último artigo deste ano: desejando que os olhos dos autores de 2012 estejam imensamente abertos.
Maravilhoso texto, Carolina!
ResponderExcluirÉ assim que deve ser o nosso olhar. Lembro de quando fiz radioterapia, no final de 2009. Tive de ir de Volta Redonda ao Rio, diariamente, em quase 30 viagens. E neste vai e vem acabei descobrindo coisas pelo caminho que nas incontáveis vezes anteriores em que passara por aquela estrada não me dera conta.
Escrevi sobre isso na época e esta semana minha crônica aqui no Benfazeja também passa um pouquinho por esta questão do olhar diferente.
Beijo grande.
P.S.: Se quiser conhecer o texto, está em: http://www.giovanadamaceno.com/2009/12/radioterapia-em-25-viagens.html
Giovana,
ResponderExcluirFico muito honrada com sua leitura e comentário. Adoro suas crônicas, que são bem escritas, sensíveis e com um olhar diferenciado sobre as coisas. Passei lá pelo seu blog e li o texto que você indicou. Adorei a lista de coisas vistas no trajeto. Todos detalhes que vemos sem ver, de tanto serem vistos. Mas são tão interessantes que caracterizam a cidade, o espaço por onde você passou. Ou seja, o que parece ser comum, cotidiano e sem-graça é o que distingue a cidade das outras cidades. Por onde passo, não vejo o que você viu. Assim, entendemos a importância do olhar. Ele jamais será a percepção do comum! Um beijo!!! E vamos à cata das múltiplas percepções da vida.