Na vida da Morte
Conto, por Valentina Silva Ferreira
- Que te preocupa?
- Nada.
- Que procuras?
- A sombra. A paz. A garantia de fechar os olhos e não sentir nada. A leveza. A ternura do silêncio. A separação de mim, em mim, em vários ou num só. Encontrar-me, talvez.
- A morte?
- Para mim: a vida.
- Não posso dar-te a mão se não aceitares quem eu sou de verdade.
- Qual a importância disso?
- É fundamental que percebas que na morte não há vida.
- Mas na vida há morte…
Ela suspirou e sentou-se na cadeira. Às vezes era tão simples; noutras encontrava quem a duvidasse, quem a confundisse, quem a caracterizasse de um jeito que não era. Estava cansada de perguntas.
- Nunca pensei que fosses tão bonita.
Ela corou - pela primeira vez. Bateu as pestanas e olhou-o demoradamente: olhos escuros mas baços; boca atraente, embora com um certo esgar de tristeza; cabelos fortes e castanhos; pele trigueira pelo sol que abraça os pescadores; maçã-de-adão bem definida (como adorava esse detalhe); queixo estreito; barba rija que lhe escurecia a feição de macho.
- És o primeiro a dizer isso.
- Como é possível? És tão linda. Tão cheia de brilho.
- Estás louco.
- Por ti.
As palavras foram cortadas por um silêncio. Não havia constrangimentos; apenas chegavam, agora, àquele momento em que os lábios se selam e apenas os olhos falam: por legendas, por mímicas, por códigos. O homem tossiu. A mulher sentiu um aperto no peito ao vê-lo tão indefeso. Aproximou-se dele e colocou a mão sobre o seu rosto.
- Sofres?
- Demasiado. Leva-me contigo.
- Não posso.
-Porquê?
- Estou apaixonada por ti. Se te levo, perco-te.
- Não entendo.
- Eu sou apenas a transição; a mensageira; o transporte.
- E se me deixas?
- Se te deixar, posso ver-te e seguir-te. Posso voltar mais tarde…
- Não me causes mais desgostos.
Ela sorriu, engolindo uma lágrima pesada. Ele suspirou com dificuldade e enlaçou os dedos nos dela.
- Volto quando for mesmo a nossa hora.
- A nossa hora?
- Sim. Nesse dia quero-te só para mim.
Um beijo foi depositado nos lábios do homem e ele sentiu todo aquele frio do corpo desaparecer. Uma morna felicidade acomodava-se, agora, na sua barriga. O coração deixava de doer; finalmente tinha forças para abrir os olhos. Encarou o quarto branco e viu, sentada a um canto, no sofá, a figura cansada de uma mulher. Instintivamente, os olhares cruzaram-se.
- Meu amor, meu amor.
A mulher jogou o rosto para cima do seu homem e cheirou-o, beijou-o, lambeu-o: como toda a fêmea que ama e não quer perder; como toda a mulher que ama e precisa cuidar.
- Pensei que…
- Chiu… Estive quase a trocar-te pela outra.
- Outra?
- Sim, a Morte. Mas ela fez-me perceber que tu, minha Vida, vales muito mais.
E ela - a outra - fechou os olhos embaciados por dor e amor e despediu-se dele por 53 anos.
- Nada.
- Que procuras?
- A sombra. A paz. A garantia de fechar os olhos e não sentir nada. A leveza. A ternura do silêncio. A separação de mim, em mim, em vários ou num só. Encontrar-me, talvez.
- A morte?
- Para mim: a vida.
- Não posso dar-te a mão se não aceitares quem eu sou de verdade.
- Qual a importância disso?
- É fundamental que percebas que na morte não há vida.
- Mas na vida há morte…
Ela suspirou e sentou-se na cadeira. Às vezes era tão simples; noutras encontrava quem a duvidasse, quem a confundisse, quem a caracterizasse de um jeito que não era. Estava cansada de perguntas.
- Nunca pensei que fosses tão bonita.
Ela corou - pela primeira vez. Bateu as pestanas e olhou-o demoradamente: olhos escuros mas baços; boca atraente, embora com um certo esgar de tristeza; cabelos fortes e castanhos; pele trigueira pelo sol que abraça os pescadores; maçã-de-adão bem definida (como adorava esse detalhe); queixo estreito; barba rija que lhe escurecia a feição de macho.
- És o primeiro a dizer isso.
- Como é possível? És tão linda. Tão cheia de brilho.
- Estás louco.
- Por ti.
As palavras foram cortadas por um silêncio. Não havia constrangimentos; apenas chegavam, agora, àquele momento em que os lábios se selam e apenas os olhos falam: por legendas, por mímicas, por códigos. O homem tossiu. A mulher sentiu um aperto no peito ao vê-lo tão indefeso. Aproximou-se dele e colocou a mão sobre o seu rosto.
- Sofres?
- Demasiado. Leva-me contigo.
- Não posso.
-Porquê?
- Estou apaixonada por ti. Se te levo, perco-te.
- Não entendo.
- Eu sou apenas a transição; a mensageira; o transporte.
- E se me deixas?
- Se te deixar, posso ver-te e seguir-te. Posso voltar mais tarde…
- Não me causes mais desgostos.
Ela sorriu, engolindo uma lágrima pesada. Ele suspirou com dificuldade e enlaçou os dedos nos dela.
- Volto quando for mesmo a nossa hora.
- A nossa hora?
- Sim. Nesse dia quero-te só para mim.
Um beijo foi depositado nos lábios do homem e ele sentiu todo aquele frio do corpo desaparecer. Uma morna felicidade acomodava-se, agora, na sua barriga. O coração deixava de doer; finalmente tinha forças para abrir os olhos. Encarou o quarto branco e viu, sentada a um canto, no sofá, a figura cansada de uma mulher. Instintivamente, os olhares cruzaram-se.
- Meu amor, meu amor.
A mulher jogou o rosto para cima do seu homem e cheirou-o, beijou-o, lambeu-o: como toda a fêmea que ama e não quer perder; como toda a mulher que ama e precisa cuidar.
- Pensei que…
- Chiu… Estive quase a trocar-te pela outra.
- Outra?
- Sim, a Morte. Mas ela fez-me perceber que tu, minha Vida, vales muito mais.
E ela - a outra - fechou os olhos embaciados por dor e amor e despediu-se dele por 53 anos.
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Créditos da imagem: Site olhares - fotografia online
Castanho, por Rui Pedro Teixeira Vieira.
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