I Concurso Literário Benfazeja

As bananeiras têm olhos



Crônica de Karen Alvares.

Tem coisas que só vendo para acreditar. E tem coisas que a gente nem vendo acredita.

Minha avó contava histórias quando eu era criança. Histórias de bichos, de objetos perdidos, de comidas queimadas, histórias de coisas que ela tinha visto com aqueles olhos que a terra havia de comer.

A preferida da minha avó era de quando ela tinha visto o Saci. Sim, você pensou direito, o Saci-Pererê, o menino negrinho, travesso, de uma perna só e gorro vermelho.

Minha mãe não acreditava. Meu pai dizia que era bobagem. Mas minha avó contava tão séria, com os olhos tão arregalados, que para nós, crianças, era difícil não acreditar.

E claro, não ficar com medo.

Ela sempre começava a história dizendo que tinha sido em uma tarde preguiçosa e quente de uma terça-feira de verão. Ela brincava no quintal cheio de bananeiras que seu pai plantava e colhia. Minha avó adorava brincar com suas bonecas de pano. Ela tinha uma boneca favorita, Margarida, que era loira cor de amarelo maduro como a flor. Como as bananas.

E naquele dia Margarida sumiu.

Minha avó chorou muito. Chorou de soluçar, de doer o coração. Chorou até ouvir um assovio muito agudo, muito alto, que vinha das bananeiras.

E minha avó escutou quietinha, até que viu Margarida balançando no ar, como se controlada por fios invisíveis, em cima de um cacho bem grande de bananas maduras.

Ela não ligou para o aviso de sua mãe para que não brincasse entre as bananeiras. Ela queria Margarida de volta. Ela estava em perigo.

Correu, correu até que parou, pisando em uma poça escura, sujando suas meias de água barrenta.

Estava sozinha. E perdida.

Foi quando ouviu uma risada. Alta, aguda. Estava rindo dela.

Ela se virou e viu dois olhos escuros no meio da mata. Olhos malvados. E um menino mais escuro ainda, com um gorro vermelho, um cachimbo fedorento, uma perna só. E quando o menino pulou na sua direção, rindo mais alto, minha avó se esqueceu da Margarida, esqueceu o mundo, e correu como se corre da morte, chorando e gritando pela mãe, pelo pai, por Deus nos acuda.

Ela dormiu na mata aquela noite, sozinha, no escuro, com fome, com medo e sem uma boneca para se agarrar.

Seus pais só a encontraram na manhã seguinte. E minha avó não saiu de casa por semanas. Ela prometeu nunca mais brincar no meio das bananeiras.

- Isso não é verdade, vovó! – minha prima Elisa, que era mais velha e achava que era muito esperta, disse bem alto quando vovó terminou a história.

Minha avó sorriu e deu de ombros, com os óculos na ponta do nariz.

- Vocês acreditam se quiserem nas histórias de uma velha boba, seus pestinhas. Mas essa velha aqui pegou uma lembrança daquele danado. Quem sabe um dia eu mostre a vocês?

Eu era o primo menor. Nunca que ia admitir que estava morrendo de medo. Eu ri meio nervoso junto com meus primos quando eles começaram a rir da história. Mas precisava saber a verdade, não é mesmo?

Aquela noite eu entrei no quarto da minha avó. Ela roncava como uma locomotiva a vapor.

Só mais um passo, só mais outro um passo, sem fazer barulho.

Ouvi uma risadinha e pulei de susto, tapando a boca para não acordar minha avó. Vinha de uma caixinha de madeira, pintada à mão, com margaridas. Muito devagar, abri a caixa e ali tinha apenas uma garrafinha minúscula, de tubaína.

Dentro da caixinha, dois olhos muito pretos me olhavam, e riam.

Uma miniatura de menino, negrinho de uma perna só, batia no vidro, mostrando-me a língua. Forrando a caixa, um gorro vermelho.

Minha avó tinha sim voltado às bananeiras e apanhado uma lembrança.

E eu saí dali correndo.

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Escritora desde os 15 anos, já publicou fanfictions e agora trabalha em seus originais. No momento, tentando publicar o primeiro livro.

blog

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Créditos da imagem: Site olhares - fotografia online
Saci Pererê , por Teixeiraboc.

2 comentários:

  1. Me identifiquei com o conto, escutei de meus avós muitas histórias como esta, que acreditava piamente que era verdade. Mas será que não era verdade mesmo....quem poderá negar.... Pra ver, primeiro é necessário crer...
    Eu creio....porisso....

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  2. História de vó é sempre verdade... mesmo que a gente não volte pra abrir a caixa! Muito bom o conto, me lembrou histórias que minha vó me conta até hoje, de coisas estranhas que ela já viu por aí... Todo mundo devia ter uma lembrança dessa. ^^ Beijos!

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