I Concurso Literário Benfazeja

Pessoas grávidas de sofrimento



Crônica, por Beatriz Gil.

Há pessoas que caminham grávidas de sofrimento. Cruzamo-nos com elas na rua e antes de elas saberem que se cruzaram connosco já nós sabemos quase o tempo de gestação. Antes de nos verem já nós as vimos as elas, de barrigão e cair dos olhos, com hálito do vómito do enjoo matinal.

Elas não sabem de mim, não sabem de mim tanto quanto eu não sei delas, mas eu sinto por elas coisas que nunca hão-de adivinhar. Apaixono-me por elas quase, e elas sempre sem saber de mim, sem saber sequer da minha existência. A caminho de alguma coisa, sentados em salas de espera, em pé junto à repartição das finanças, não sonham, nem imaginam que me comovem tanto, não sabem, nem imaginam que o meu olhar se prende no delas e os fica a ver a desaparecer no meio da multidão, pesados do sofrimento que carregam às costas, nas pernas, nos ombros...

Há dias em que lhes invejo a honestidade de saírem à rua com aquele camadão de dor espelhado nos ossos que se movem como quem se esqueceu de existir, noutros em que à boca cheia sou capaz de os chamar de cobardes, de me irritar tanto por não os ver sair daquela negritude toda, de não os ver com forças para, ainda que seja mentira, fingirem o sorriso que todos querem ver, porque os sorrisos são mais fáceis que as lágrimas, e toda uma infinitude de ideias pré-concebidas que todos estamos carecas de saber. Nestes dias, nos últimos, sou má. Sou infinitamente má, e terrivelmente hipócrita. Não me orgulho disso. Não posso orgulhar-me disso. Envergonho-me tanto. Vai para me sair a palavra "cobardes" e eu coro, num passe de mágica tapo a boca com as mãos, quero esconder-me debaixo do banco do autocarro, convenço-me de que tudo aquilo em que penso me esta afixado na cara, qual placar de promoções dos supermercados, cheios de cores fluorescentes e letras gordas.

As pessoas grávidas de sofrimento são facilmente confundidas com parasitas, com vagabundos, com velhinhos cansados da idade que lhes parte a coluna, com os solitários que retiram prazer do silêncio. É sempre um risco tentar adivinhar quem realmente são as pessoas que se prenham da dor, é uma técnica que requer prática, "know-how" e toda uma parafernália de características que se podem "googlar" e encontrar em planos de negócios, junto aos pontos-chave a reter. A mais importante nunca ou raramente aparece, é certo, mas isso vem com a prática: empatia. Em boa verdade, e para se realmente reconhecer uma qualquer tribo, como esta e tantas outras, é preciso pertencer-lhe ou ter-se-lhe pertencido.

Não existem fórmulas mágicas, não existem doutoramentos ou diplomas, é uma aprendizagem que se faz vivendo, observando e sofrendo, e para isso basta que nos olhemos ao espelho e sejamos honestos com a imagem que vemos reflectida:
alguém que em algum momento, actual ou anterior, tenha estado ou esteja tão completamente, e a rebentar pelas costuras, grávido de sofrimento.


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Créditos da imagem: Site olhares - fotografia online
Sofrimento..., por Edgar Carvalho.

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