I Concurso Literário Benfazeja

Sobre demônios e anjos interiores




Poemas de Marcelo Sousa.


DAS UNHEIMLICH

O oposto do que me é familiar
é o que nasce quando meu silêncio quer cantar
ou quando chorar é o que mais preciso
e contudo meu rosto ergue o mais belo sorriso.

Meu íntimo-estranho,
o quanto menos te quero aprisionar, mais te ganho.
Sinto-te passear por dentro de minhas veias lentamente
enquanto gozo ao sentir tua estranheza inquietante.

É tudo tão apreciável que chega a dar medo:
sou criança que receia tomarem-me o brinquedo!
Mas sei que é pelos caminhos mais perigosos
que chegarei aos jardins mais lindos, às frutas mais gostosas.

Ó escuridão! Sabes o quanto tenho medo de ti!
Mas com as luzes acesas não poderei dormir.
E dormir é condição imperiosa para poder sonhar.
As luzes ficarão acesas, mas meus olhos com força irão fechar!

Tão familiar é esta estranheza
de encontrar no oposto tanta beleza
que ao fugir de todos e querer ficar sozinho
meus pés dizem-me que estou pisando os mesmos caminhos.

Vejo criaturas estranhas e caio perante elas de joelhos
mas perplexo descubro-me seu irmão ao olhar-me no espelho.
O que fazer? Para onde ir? Sinto que o tempo aperta o laço!
Resta-me beijar a boca do Destino, e deixar-me descansar em seus braços!



EXISTIR É APENAS UM 'POR ENQUANTO'


Esse é o tempo de deixar escorrer entre os dedos
os segundos, os minutos, as horas, os medos porque o tempo dentro de mim é muito precário
uma vez que conto ele sempre ao contrário!

O quanto me falta pra nascer de novo
se o melhor é adivinhar o que há dentro do ovo?
E se eu cair, quem estará lá para aparar o tombo?
Eu salto abismos sem paraquedas só para experimentar o assombro!

Ser assim não me revolta,
pois já me acostumei ás alturas e á queda.
Nem mesmo o amor faz-me tanta falta:
compra-se disso hoje por aí com apenas algumas moedas.

Mas se eu olhar debaixo das minhas saias
e descobrir que aquela metade não sou eu?
E se de repente me volta o tal Messias
cantando um samba pra me levar pro céu?

Será que eu vou querer partir desse mundo
podendo-querendo-sabendo, eu poeta,
roubar dele, com papel e caneta,
mais um segundo?

Viver um segundo, de repente
nos braços de quem nos quer bem
é melhor que passar uma eternidade como crente
sozinho, sentado em uma nuvem, dizendo amém!

Todos me julgam como tendo um juízo muito precário
mas eu prefiro ser assim mesmo, melhor que ser esperto ao contrário.
Não vou contar o tempo que me falta pra nascer de novo
porque pra mim esse corpo, essa existência, é só a casca do ovo!



MUITA CALMA NESSA HORA


Ao chegar em casa e afrouxar o nó da gravata nesta sexta-feira
em que todos os corpos querem se chocar como bólidos desgovernados,
tua única saída é voltar sozinho e desolado ao teu obscuro apartamento
como se voltasses para dentro de ti mesmo, balbuciando uma cantiga, um lamento,
para abrir aquele Carmenére que esperou três anos pela tua boca triste.
Terás que ter calma ao tocar teu próprio corpo inteiramente feito de vontades
e terás que saber lidar com singela cumplicidade com tuas próprias falhas
e procurar afazeres comezinhos para esquecer os carinhos que não virão hoje.
Esta noite não é tua, as mulheres nuas que se apresentam na telinha brilhante
são flores de plástico, são falsos diamantes, são versos encomendados, artificiais.
Nada mais te perceberá como és, nada mais te sentirá, mas tu sentirás tanto!
Sentirás demais essa falta de algo que não te pertence! E deixarás correr o pranto.
Mas esse choro no escuro não te vale, esse choro já nasce seco, sem sal.
Esses detalhes te farão muito mal, mas tu quererás cada vez mais e mais!
Mesmo sabendo-se cada vez mais velho, pensarás em ti como um pobre rapaz!
A verdade é que nenhuma rima te salvará, nenhum poeta será teu redentor,
e cada célula do teu corpo vai ignorar as roupas de lã e o teu preferido cobertor.
Sentirás frio e saudade. E saudade e frio. E, sobretudo vontades indizíveis.
Sentirás que te faltam seios nas tuas mãos feitas em concha espalmando o vazio.
Sentirás que o agridoce de uma vulva te falta e tua língua lambe o nada; o nada!
Saberás que tens partes eretas e partes discretas, e és parte vilão e parte poeta!
As palmas das tuas mãos estarão frias, mas mesmo assim irão suar e tremer.
Muita calma nesta hora, pois se o juízo for-se embora, nada mais te segura!
Sairás pelas ruas como um cão danado, como um lobo à procura da sua caça!
Sairás sem pudor, e nem a divina graça do nosso Senhor te valerá: irás embora
deixando para trás tua delicadeza, tua educação, tua fina estampa de ser humano
para buscar o que há debaixo dos panos de qualquer criatura que se dê o desfrute.
Amigo, mil demônios te assombrarão e será preciso que tu lutes!
Será preciso que a alma refute e não escute o que teu corpo implora!
Meu irmão que me olha tenso no espelho, dou-te apenas um conselho:
muita calma nessa hora!

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