I Concurso Literário Benfazeja

O demônio do redemoinho





Conto de Willian Delarte.

Naquela noite o Sr. X não tomaria a rua que lhe é de costume, mas sim um atalho a que sempre se negou por achar demasiado escuro.

Tinha trabalhado até mais tarde, exausto de serviços não terminados, desses que sempre se estendem para o dia seguinte, prazos, problemas não solucionados, enfim, dia comum, com a exceção do desejo imenso de chegar o quanto antes em casa e experimentar aquele feijãozinho grosso com o qual a sua mulher havia lhe tentado momentos antes ao telefone. Com essa pressa, com a fome que parecia triturar-lhe o estômago, virou à esquerda.

A viela parecia extensa. Por ambos os lados muros e paredes se afunilavam. Com cuidadosas passadas, como se não quisesse despertar um bebê recém-ninado, o Sr. X sentia no estômago um leve desconforto, idéias sombrias, e estranhos pressentimentos que brutalmente se recalcavam.

À medida que se distanciava do seu ponto inicial, aquele beco ia engolindo as luzes da cidade, guardando para si só um clarear de lua quase cheia e faróis de carros que, ao passarem entre tempos, formavam na distante saída uma espécie de pisca-pisca no fim do túnel... A mulher, o feijão, a cama, todos esses pensamentos o distraíam. Embora tentasse, difícil era não atentar à visão ofuscada e distorcida que se tem ao andar em penumbras, ao frio que sempre nos toma o desconhecido; ali, sacos de lixo são cães, pedras viram ratos, ratos viram pedras, e o Sr. X não é mais que um vulto entre vultos - um vulto retraído, pisando em ovos.

Podia estar delirando, mas o fim do beco lhe parecia estático, como se não houvesse avançado sequer um passo. Delírio. Claro que é delírio! Os seus pensamentos se perdiam e se encontravam naquele ar negro, voltando para si e àquela trilha sombria que já não parecia ter fim.

Do outro lado, os carros cessavam por vez. A percepção se limitava a um ou dois metros. Nenhum som externo, além dos próprios passos, surgia na noite. Internamente o barulho era crescente: respiração, pulsação, gole de saliva... Uma neblina surgia acima e à sua frente, impossibilitando a sensação de qualquer horizonte, fazendo com que a lua não fosse mais que um farol fosco e distante.

Já não sabia há quanto tempo adentrara aquele beco nem se avançara. Na tentativa de quebrar aquele claustrofóbico silêncio, pôs-se a estralar os dedos, a batucar lentamente a coxa com a palma da mão. Tentou imaginar um samba, mas a trilha que inundava seu espírito era fúnebre.

Parou, movido por algum presságio ou pela paralisia do medo. Não conseguia identificar mais nada ao redor. Sentia que gases gélidos adentravam a espinha e subiam da barriga à garganta, a essa altura fervorosamente seca. Tentava dar mais um passo, quando um estrondo brusco fremiu nos seus ouvidos, tilintando por dentro, arrebatando pêlos e intestinos: algo havia caído atrás de si!

O instinto de defesa, mais forte que qualquer paralisia, fê-lo virar instantaneamente. A surpresa de nada encontrar fora mais terrível que os seus piores pressentimentos... Quando, recomposto, tentou continuar os passos, a sensação de um vulto à frente, como que a sombra de um animal gigante, o paralisou de vez. Sentia os pés fincados no chão, como que perfurasse a superfície e petrificasse no concreto: era o medo, como jamais havia experimentado.

Por trás do vulto, um motor ressoou na avenida. O farol se aproximava. A sombra se destituía em contornos cada vez mais nítidos quando, subitamente, um estranho demônio o remeteu direto à infância...

- É só enfiar a agulha assim, no redemoinho, que o demônio aparece, dizia para um grupo de crianças que formavam um círculo à sua volta.

- Ah, vai, não tem coragem!

- Eu duvide-o-dó!

- Minha vó disse que não pode brincar com essas coisas...

- Rá rá rá, que medrosos! Eu é que não sou, vou fazer aparecer esse demônio e vou é mesmo acabar com ele!


Em verdade, nunca teve coragem o suficiente para fazer a tal experiência. Como havia de impressionar a molecada, tratou de construir em sua imaginação uma grande aventura de terror e coragem e, claro, um demônio cruel e medonho... Mas era demônio com imaginação de criança: cara de cobra, tetas de mulher, pés de pato, chifre de unicórnio e tronco de galinha - e exatamente essa figura, esdrúxula e exótica, era quem agora aparecia de relance, nua e crua, à sua frente.

- O que há? Não me reconheces?, disse o Demônio numa voz aguda e ponderada. Acalme-se, filho, ainda não é aqui que terminas com a grande desgraça que um dia fora a tua vida, bem o mereces, mas tens sorte de me encontrar... A ti, concedo três pedidos.

Confuso, como não poderia deixar de ser, o Sr. X desacreditava de tudo o que estava acontecendo, afinal, o Demônio era criação sua, só podia ser coisa da sua imaginação aflorada pelo medo... Porém, essa certeza se dissipou assim que, por instantes, passou e estacionou outro carro no fim do túnel, dando completo holofote à Besta. Pôde atentar-se a todos os traços, o que, ao invés de acentuar o medo, fê-lo aflorar uma mórbida veia cômica.

- Não quero ser inconveniente, mas o Senhor é o gênio mais estranho que eu já vi... E sem lâmpada!, o que é mais surpreendente, disse o Sr. X numa mistura de alívio e desespero. Não se conteve, riu na cara do Diabo.

- Filho, minhas formas são infinitas, vão até onde for a imaginação humana! Pareço engraçado? Ri de tua própria imaginação? Pois ria... Ria dos sonhos, ria de tua vida, ria de tudo o que puder! Ah, negro humor, sempre a única saída... Mas te asseguro: o futuro não tem graça e a Graça de teu Deus é uma grande piada.

O Sr. X engoliu um riso forçado, estampado até então, e se pôs a escutar, silencioso. Sentiu suar as mãos.

- Serei direto. Já pecaste muito nesta vida. Mais um pecado e você estará condenado, eternamente, a lavar os chãos lodosos e borbulhantes do Inferno! Essa é a sua chance de redenção; não a teria, caso não adentrasse nesse atalho torto que é a morada de todos os demônios.

- Mais essa! Ora, não sabia que se tinha limite para pecar!

- Vocês não sabem da missa um terço... e, acredite, essa é a maior bênção. Se quiser, poderá usar os pedidos para subtração dos pecados. Neste caso, cada pedido vale por um pecado, ou qualquer outro que quiser... Mas cuidado: estreita é a linha entre o desejo e o pecado.

O tom com que o Demônio professava tais palavras não deixava dúvidas: falava sério. Para o Sr. X as coisas pareciam bem claras: poderia usar os três pedidos para a redenção de três pecados, tendo assim uma margem ao seu favor de três pecados aceitáveis até o fim da vida e passagem livre pelo Paraíso. Entretanto, isso seria muito arriscado, pois causaria um autopoliciamento intermitente em todos os seus atos e pensamentos. Sendo assim, tanto faz se lhe falta um ou quatro pecados, a própria vida seria um inferno nessas condições, logo, poderia usar os três pedidos para outros benefícios... Carros, viagens, casa na praia, todas essas imagens surgiam e iam facilmente, assim que constatado o advento da luxúria. Abolir de vez o trabalho, cairia direto na preguiça; picanha na mesa todo dia - gula. Remoia aqui e ali e não encontrava nada que pudesse saltar o campo do pecado. Como não poderia ser imprudente, visto que mais um culminaria - de vez! - na abertura dos Portões do Inferno, gastou o primeiro pedido com redenção.

- Concedido, disse o Demônio.

Com essa folga poderia pensar melhor... Contudo, compreendia aos poucos a impossibilidade de fugir do pecado com desejos no âmbito pessoal. Pensou que poderia, ao menos, pedir a felicidade do mundo, mas logo percebeu que, se o fizesse, seria, em essência, mais pelo bônus e vaidade de ser um “Salvador” que por bondade descompromissada, sem contar que ele próprio faria parte desse mundo, o que caracterizaria o uso do pedido em benefício próprio indireto, culminando em alguns empecilhos de ordem moral. Constatando em sua alma cristã a irreversibilidade dessa situação, a triste condição existencial que faz de todos nós meros condenados, desejou, do fundo do peito, jamais ter encontrado aquela Criatura dos Infernos!, quando um estrondo, logo atrás, fê-lo virar de imediato...


... Era um gato vira-lata que, ao mexer na lata de lixo aberta, derrubara um velho cadeado sobre a tampa de metal. Recuperou-se do susto. Virou-se e continuou a caminhar. Podia até sentir o cheiro daquele feijãozinho.



* Conto premiado pelo II Festival de Literatura da Faculdade de Letras-USP (FFLCH) e originalmente publicado no livro deste festival. Compõe o projeto de contos do autor intitulado "Enovelado Molho de Cadeados", com publicação prevista para o ano de 2013)

* Ilustração por Tiago Costa - conheça seus trabalhos no blog:

http://tiagocostailustra.blogspot.com.br/

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