I Concurso Literário Benfazeja

Contos Fantásticos: A morte



Pequena antologia de Contos Fantásticos, selecionados por Liliana Novais

Olá a todos. Esta é a minha primeira edição da secção fantástica da revista Benfazeja, foi com muito gosto que aceitei o convite para me juntar à equipa desta revista. O tema deste mês era “a morte”, recebemos muitas participações e agradecemos a todos os autores que enviaram os seus textos. Mas como em todo o lado, tivemos de escolher os que mais se enquadravam no tema e nesta secção. Aos que não foram selecionados, não desanimem, haverá mais oportunidades.

A literatura fantástica cresceu durante o século XX, atingindo o seu auge nestes últimos anos. O público para este estilo literário cresceu e a oferta acompanhou o mercado. Neste grande género temos a Ficção Científica, a Fantasia, o Gótico, o Horror e tantos outros subgéneros que estão tão em voga na actualidade.

Espero que gostem desta edição assim como de todos os contos selecionados.

Próximo tema: Natal.
Veja aqui como enviar o seu conto.



Dizem que quando a gente morre passa um filme
por Andréia Pires

Dizem que quando a gente morre passa um filme. Mentira. Pelo menos comigo não foi assim. Tive para mim duas sequências que se alternaram durante longo tempo, uma à noite, outra de dia. Não sei precisar o quanto nem quantas vezes cada uma repetiu. Dentro disso eu perdi a noção de quase tudo, desaprendi as horas, a fome, a resistência, o meu nome, boa parte das sensações. Ainda me sabia mulher e dona daquele sobrado por onde vaguei até cansar do cansaço. Cada recomeço de cena me trouxe um detalhe novo e eu fui ficando, aconchegada, nesse movimento de carrossel.

Fazia uma noite quente, com vento que mal, mal sacodia a cortina da janela aberta. Eu mesma bordei as barras do tecido branco, escolhi o varão que o suspendeu e os arremates dourados. Estou no quarto onde vivi com meu marido madrugadas de sono pesado, roncos e algum amor. Minha cama cuidadosamente estendida, os lençóis bem passados e os travesseiros arrumados do jeito que eu gosto. Tenho a impressão de que faz muito tempo que não se dorme aqui. Vejo-me sentada sobre o baú de madeira que pintei de branco. Herança da família. Pensei que trocando a cor daria à peça a chance de pertencer ao quarto do casal, combinando com o resto da mobília. Ajoelho-me em frente ao baú e tento abri-lo, mas não tenho a chave do cadeado que o encerra. Quero ter meus livros nas mãos, rever meus recortes, botar meu perfume preferido, olhar as fotos do meu filho. Em vão. Chego a chorar e bater com os punhos sobre a tampa, peço ajuda, socorro, e ninguém vem. Sou apenas eu diante do baú no meio da noite.

Então muda e faz um entardecer alaranjado. Caminho devagar nos corredores do andar térreo. Na sala, o piano de cauda está no lugar onde deixei. Aproximo-me e toco as teclas, ensaio uma sonata, mas não produzo nenhum som. Não desisto. Circulo entre as poltronas e avisto nas paredes alguns retratos. Somos nós em quatro quadros: o clã ao redor do macho provedor, meu filho em seu terceiro aniversário, meu filho no colo dos avós, e eu, rosto e ombros. Gosto do meu penteado assim, em coque no alto da cabeça e a risca dividindo a cabeleira ao meio. Os brincos de ouro são meus preferidos. De repente passa rente às minhas pernas uma menina de uns dois anos, como se me atravessasse. Atrás dela uma jovem que não conheço solicitando disciplina e calma à criança. O que fazem essas pessoas na minha casa, me pergunto. Não demora, entra pela porta telada da cozinha um rapaz de calça caqui e camisa azul, carregando uma pasta marrom. Reconheço os cabelos lisos e castanhos muito escuros como os meus. Meu filho cresceu. Sinto um misto de orgulho e tristeza, quero me fazer presente e não consigo. Posso, no máximo, deslizar entre eles, observá-los de perto, esperar.

Um dia, a mulher ruiva interrompeu a sequência. Apareceu pela primeira vez de visita, com uma conversa mole sobre vida e satisfação pessoal, cigarro entre os dedos, meu filho atento, a jovem também, sentados ao redor da mesa da cozinha. Ela me percebeu. Me viu e passou a falar coisas olhando bem na minha direção. Fiquei irritada, mandei sair da minha casa. Somente ela ouviu. E ignorou. Voltou outras vezes até que conversamos diretamente. Perguntou se eu já tinha visto o jardim naquele dia. Que dia? - perguntei. Agora, já. Aproximou-se tanto que foi como se ocupássemos o mesmo lugar na cozinha. Ela e eu caminhamos, misturadas, até a porta telada. Ela disse que eu merecia cruzar a linha, vencer o limite. Abriu a porta, disse vai, e eu corri feito criança até a grama. Senti o capim sob os pés e o sol. O sol. Parece terrível assim, a repetição da repetição sem fim. E é. Mas o depois foi pior. Quando cessaram as sequências me ficou o nada. Eu fadada a ser ninguém na claridade.

Biografia
Andréia Pires é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.



Memórias póstumas De Joaquim Maria
por Edweine Loureiro


― Não aceitei a Deus. E agora? – pergunta-se o criador de Dom Casmurro, enquanto vaga pela casa, observando o próprio velório.
Em um canto da sala, três companheiros de Academia conversam em voz baixa. Machado de Assis, aproximando-se, escuta:
― É… lá se foi o mulato... – lamenta Euclides da Cunha.
― Uma grande perda para as letras… – observa Graça Aranha, para logo em seguida, pigarreando, completar: – Se bem que em Esaú e Jacó ele começava a demonstrar um certo desgaste. O ilustre amigo concorda?
― Desgaste eu não diria; mas uma certa repetição no tom da narrativa. Por exemplo, aquela ironia já estava se tornando maçante – responde Olavo Bilac.
O espírito – ou sei lá o quê! como queira o leitor chamar ao estado pós-morte! – ri-se do comentário:
+
― Maçante? Sim… Tens razão, papa-defuntos.

E voa (literalmente) para outro grupo – agora composto por Joaquim Nabuco, Mário de Alencar e Rodrigo Otávio; os quais, em meio a café e bolinhos, discutem uma das obras mais célebres do finado. Primeiro, escuta-se a voz de Alencar:

― Tudo imaginação do Bentinho.

― Não, senhor: a Capitu o traiu! – discorda Rodrigo Otávio.

E o outro imortal, ao lado:

― Concordo com Rodrigo. Foi traição – arremata Joaquim Nabuco.

Mas uma quarta figura intervém:

― Nada de conclusões precipitadas, senhores. Lembrem-se de que o nosso querido Machado adorava discorrer sobre a contradição humana – e, tossindo, Ruy Barbosa acende mais um charuto.

O espectro (voilà, caro leitor!) resolve deixar de lado aquela discussão e vai até o féretro, para examinar – agora mais atentamente – o cadáver. Por alguns segundos, olha fixamente para a máscara da morte no corpo que outrora habitara, para em seguida, suspirando, concluir:

― É, Quincas… realmente: ao vencedor, as batatas.

Biografia
EDWEINE LOUREIRO nasceu em 20 de Setembro de 1975. É advogado, professor de Literatura e Idiomas, e reside no Japão desde 2001. Premiado em diversos concursos literários no Brasil, Portugal e Japão, é autor dos livros: Sonhador Sim Senhor! (Ed. Litteris, 2000), Clandestinos [e outras crônicas] (Clube de Autores, 2011) e Em Curto Espaço (Ed. Multifoco, Selo 3x4, 2012). É membro-correspondente da Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências (RJ).




A primeira vez de Reury
por Frank Bacurau

Ainda que ninguém confesse, a maioria das pessoas recebe a morte alheia com alívio. É comum que entre os que se encontram na presença do defunto alguém lamente: “pobre coitado(a)! Mas em seu íntimo o suposto piedoso quase sempre comemora: “graças a Deus que não foi comigo!” É um alívio tolo, pois a qualquer vivente me farei conhecer e, cedo ou tarde, cada um será tocado. Não poderia ser diferente já que uma das leis fundamentais da criação é que nada deve estar livre de mim!

Engana-se, contudo, quem pensa que meu trabalho é simples; na verdade, nem mesmo a mim é dado conhecer o momento exato do fim de um homem; não até que tal momento chegue! Não há destino, nada está escrito! Sou auxiliada apenas por um insight de que a hora se aproxima. E, quando uma sensação irresistível me domina, é o instante final.

Na hipótese improvável de o toque não ocorrer no momento exato, a vítima estaria livre de minha influência uma vez que cada vida tem apenas uma oportunidade de ser tocada. Embora a probabilidade seja ínfima, a ocasião na qual um homem tem mais chance de escapar de mim é aquela em que o evento causador da fatalidade dá-se pela primeira vez. Quando não sei como determinada situação destruirá o organismo de um ser tornando sua vida insustentável, devo confiar cegamento no já mencionado insight para cumprir minha tarefa.

Por tudo isso, devo confessar um segredo: toda vez que um ser experimenta o que se poderia chamar de “um novo tipo de morte” temo que a pessoa escape de mim por não conseguir tocá-la no instante específico. Então, a fim de evitar que aberrações incapazes de morrer venham a existir, tenho o hábito de criar regras: nessas ocasiões inéditas tomo nota de todas as características do evento e, assim que um segundo humano tiver de passar pela mesma experiência, passo a contar com, além de meu insight, informações preciosas.

Graças a essa coleta de informações tenho me tornado mais e mais experiente ao longo da História humana. No início da Pré-história, basicamente, morria-se por lesões induzidas por armas de pedra, ataque de animais ou das infecções decorrentes de tudo isso; não havia novidades. Mas a curiosidade humana levou a novas maneiras de matar e morrer. Comecei a ter trabalho aprendendo como instrumentos de bronze ou ferro exterminam uma vida.

Como se pode ver, nunca tive motivos para gostar da curiosidade humana, contudo, minha tranquilidade passou a ser particularmente ameaçada depois que a Ciência tornou-se o modelo para explicar o mundo. Eis que fui obrigada a entender sobre a letalidade de milhares de coisas novas como armas de fogo e dos acidentes aéreos. Muito embora os humanos possam justificar sua busca por conhecimentos como uma tentativa de melhorar sua qualidade de vida, tudo não passa de um desejo inconsciente de escapar aos designíos da criação. Nada mais que aprender para brincarem de gato e rato comigo…

Mas por que lhe conto tudo isso? Deve ser ansiedade, afinal, me parece que hoje é um dos dias tensos: meu insight me trouxe a um lugar que não conheço. Pelo que ouvi, os humanos o chamam de emissora de TV. Alguém irá morrer hoje aqui; sinto que é um jovem e ele está próximo. Ah, ei-lo de frente àquele estranho instrumento o qual me lembra as primeiras máquinas fotográficas. Alguém grita para ele “em 30 segundos você entra, assim que acabar o trecho que já gravamos”. Não sei o que isso significa e não me interessa, preciso apenas estar atento, pois algo inédito oriundo deste local deve comprometer de modo irreversível o corpo de meu alvo.

Sem aviso, o escolhido surgiu dentro do instrumento estranho para o qual estava de frente. Espere, o insight está se intensificando; será em segundos! O mesmo humano que havia gritado volta a dizer “vamos entrar, veja seu microfone”. Eis que a sensação torna-se insuportável! Será agora. Meu alvo toca o objeto chamado microfone e recebe uma descarga elétrica letal que lhe paralisa o coração e queima outros tecidos internos.

A eletricidade não me é estranha; já levei centenas de pessoas por causa dela. Sei exatamente como tocar alguém atingido por essa forma de energia! Não seria um evento inédito? Espere, enquanto um corpo jaz danificado logo ali, o homem continua falando dentro do aparelho!!! Talvez o instrumento parecido com uma máquina fotográfica tenha permitido à eletricidade dividir o homem em dois! Esse deve ser o evento desconhecido! Mas qual dos dois homens deve tocar?

Na infinitesimal existência de minha dúvida acontece o impensado: o momento do toque passa! Pouco depois, a metade do homem que falava na máquina sumiu ao mesmo tempo que a atingida pelo choque mortal levantou-se para o espanto dos presentes.

Foi a primeira vez que alguém a ser tocado deveria estar de frente para aquela estranha máquina e acabei cometendo um erro. Agora que percebi como ela funciona, guardando fotografias animadas das pessoas, é tarde demais. Não importa! Os humanos terão sua paga por me induzirem ao erro. Aquele que acaba de escapar de mim, experimentará nos braços da eternidade a dor de não poder mais ter relações duradouras. Já os que ousarem deixar imagens gravadas depois de serem tocados por mim, sofrerão enquanto os vivos puderem vê-los como se ainda estivem caminhando nesse mundo. Para estes, a eterna jornada espiritual só continuará quando todas as gravações tiverem sido destruídas, até lá eu os deixarei no meio do caminho entre essa etapa e a próxima.

Biografia
Não tenho livros publicados que não sejam na área de Educação Física/Nutrição


Créditos da imagem: Olhares.pt
A morte da rosa, por gilbertolima

2 comentários:

  1. Muito feliz e honrado com a selecao. Obrigado aos colegas de Contos Fantasticos, em especial a Liliana Novais: parabens pela estreia. Abracos do colega no Japao.

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  2. Só agora fui conhecedor do meu conto publicado, mas por distração minha. Como toda alegria pode tardar, mas, sempre vem,ainda foi tempo deste sabor de conquista vir aos meus lábios.
    Agradeço de coração à revista BENFAZEJA e em especial à Liliana Novais pela seleção.

    É uma honra estar com todos vocês colegas e cordenadores.

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