I Concurso Literário Benfazeja

cura




Conto de Renato Essenfelder.

Cortei o dedo logo ao abrir a carta. Não com o papel, mas com uma farpa.

Três minutos olhando o nome do remetente, destinatário, certificando-me de um possível engano. Aquela caligrafia. Dela. Esperei solucionar-me com a data: envelope perdido no pó, selo amarelado, resquício de um tempo em que não eram precisas arqueologia, escavações, expedições perigosíssimas ao analista para descobrir, afinal, o que sinto. Nada era preciso.

O nome dela continuava o mesmo, e isso para mim, naquela idade avançada, era já uma surpresa. As três sílabas que espocavam na boca, espaçosas e cítricas.

Mas enfim eu sinto. Devia ter dito que a amava. Devia? A inveja maior que tudo –importa que a amasse, insuportável manter aquela rotina? A caligrafia linda, exótica, afiada. Sempre a primeira da classe.

Não lembrava mais de seu rosto, contudo, com todos os seus detalhes delicados.

A memória avançou como um percevejo; a ponta do seu dedo pressionando o meu queixo, as mãos pequeníssimas, os braços sem pelos, o ombro tatuado, o pescoço pálido, o queixo anguloso... Encontrei uma velha ocorrência de seus olhos de trêmulo poente na memória e tratei de reidratá-la gota a gota até que: ressurreta num estado de semiviço, entre a morte e a florada. A última vez em que chorei. A última lembrança que eu tinha dela: suas costas e deixapralá, meu olho roto lavando o olho morto da porta enquanto se esvaía no corredor a sua imagem, sua última imagem definitiva.

E ali estava eu, no entanto [o que já diria algo dos méritos da minha estratégia nos últimos anos], trêmulo como seus olhos dela. Eu tinha um sexto sentido, a premonição. Um déjà vu metálico, que como um saca-rolhas oscilante avançava e recuava diante dos meus olhos, esfarelando a cortiça de minhas retinas após toda uma vida de movimentos involuntários. Um sexto sentido sem, a rigor, sentido algum, como sem sentido passar três minutos olhandotateandocheirandoauscultando [passando entrelábios] um pedaço sujo de papel. Auscultando o seu coraçãozinho de papel, enquanto o meu relinchava sobre chamas.

Não ouvia nada mais, mas. [aqueles relinchos distantes, enquanto o cavalo de tez púrpura se desmanchava em minhas fantasias matutinas.]

Uma carta.

Certamente uma relíquia da antiguidade, reforcei, do tempo em que não esfumava meus dias fazendo fogueirinhas enquanto pelas costas as sombras avançavam. Perdida nos Correios por um década, uma relíquia. Certamente uma relíquia de dez anos atrás, entregue por descuido, entregue por descaso.

Mas então a data. Dois dias.

Impulsos: rasgo [e me arrependo, quase tento remendá-la; mas é tarde]. O fresco fantasma latejante de marinagoradesconhecida avança sobre mim, empunhando sua navalha afiada por verbo e substantivo; derruba-me e domina, lacera meus dedos no caminho da lâmina ao meu peito, abre-me até o sexo minha cabeça lateja com o impacto contra o azulejo do chão e o cheiro e a ânsia meu deus tudo nela fede ferrugem e sangue e pó caos terrOR.

Entre entranhas vejo a farpa amarelada, uma confissão, um convite?, [provocação?] a sua letra perfeitamente afiada. Cravada no que mal reconheço, palpita. Sou eu? Abafa a minha voz.

Pode ser a morte eu penso

pode ser a cura



Créditos da imagem: olhares.pt
GOT MAIL, por gonçalo martins

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