I Concurso Literário Benfazeja

Livro da memória inventada (parte 1)



conto de rogério fernandes

gostava de escrever ficção. não. gostava de imaginar as coisas. uma cidade, uma rua, uma velha senhora enjeitada pelos netos, um rapaz colecionador de garrafas de leite, sete filhos nostálgicos dos pais que nunca conheceram. um amor perdido pelos papéis no escritório, duas mulheres loucas no marrocos, números de loteria. uma enorme fuligem cobrindo a copa das casas em uma cidade do interior.

não amava a rotina. tampouco gostava do caos posto a mesa, centralizado no enorme castelo de livros de sua sala. odiava poesia e desprezava os amantes saídos dos bancos escolares. morava só, e escrevia com a caneta azul que ganhara. era um enorme outono de ruelas encharcadas de adeus. assim começara o seu romance. não esperava agora uma vida diferente, mas ela surgiu com os dedos das mãos pintados de azul e o cabelo jogado no ombro, nova demais para ser esquecida e suficientemente velha para superar o desprezo fingido das tardes conjuntas. ele esperava a morte enquanto ela falava ao telefone com o agente de viagens. ele escrevia ao acaso, ela se arrumava para o jantar. ele resmungava um filme e esboçava uma renúncia, ela aprendia mais um truque de cartas. ele se tatuava, querendo desistir da velhice, ela arrumava os livros em ordem de gosto. ela sorria. ele andava pelo quarteirão rumo ao restaurante chinês. ela lia camus.

"A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. com seu aspecto tranqüilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas. Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno."

pensou que nem mesmo o inverno era bonito aquele ano, e que a torrente de ratos subiria a serra, vindos de um mar escuro e sujo, e tomaria de repente as ruas e bulevares, as cantinas e bancas de jornal, a padaria e o barbeiro. todos tomados pelo farfalhar das patas dos pequenos demônios dos esgotos. ela ria quando ele dizia coisas assim, e pinçava outro livro, não de poesia, não de teatro, não de história, mas um belo romance cheio de perspectivas e alegorias, como a estória do menino que não enxergava e aprendeu a ver de outro jeito ou a da filha que acompanhou a mãe ao manicômio. era um inverno em que se conheceram, enquanto ele imaginava ficções. e escrevia na parede do quarto, na blusa suja de molho de tomate e nas coxas de uma amiga. ela o entendeu, cheia de reciprocidade, sem nem mesmo ter vivido aquilo. o inverno não seria então uma coisa triste, era mentira dele, inventada, o inverno não era assim.

mas ele achava - e fazia com que fosse - ressentia não ter tido filhos, imaginava uma caravela de flores naufragada na soleira da casa, queria amar, mas não podia. e ela, sentimental demais, catava as imagens tristes que ele jogava no  chão da sala. confiava em seu ritmo dissoluto e beijava devagar seu rosto grande, com curvas redondas e mãos de dedos finos. o inverno eram dois, ele e ela. embora ele pensasse que não houvesse tantos assim no mundo.

mas se não houvesse, o que existiria ali? o que era aquela coisa disforme, vaga, repleta, anunciadora de desejo e som? caminhavam de olhos vendados, juntos, ou ela seguia esperando um despertar que nunca viria? ele seguia escrevendo sua própria rotina, embaraçando os cabelos dela noites a fio, desfiando na manhã seguinte a história que teceram sonâmbulos. o chão do quarto refeito de roupas coloridas, camadas de camisetas, meias, colares, brincos e bolsa aberta jorrando identidade e creme para as mãos.

que espelho de mundo era aquele? seu coração estava colado ao dele, menino velho, escurecido de tanta coisa que vira, descoberto numa tarde de lua encrustada, acalentada num copo de cerveja. ela sorriu, ele não, ela o ouviu, naquela torrente de verbos que os homens muito calados soltam de tempos em tempos para impressionar, madrugada se foi, paz inventada. sabia de tudo, foi em busca de anunciação quando ele a beijou disperso.

foi quando soube que nada daquilo era verdade. sua dispersão, seu olhar vazio, sua casa, seus quadros, seu trabalho. apenas a escrita existia, indefinida, um cordão de carnaval que seguia todos os dias do ano. beijava e escrevia, chupava e escrevia, ia ao cinema e escrevia, comia frutas e escrevia. num papel de cartão de débito, encostado na penteadeira, nas vasilhas de água que trouxera da bahia, pedia, implorava, adulava por uma caneta, não como aqueles que tinham fome, desesperados, mas com a dissimulação dos passistas, entregues ao quase começar da avenida. não falava de nada, dava indícios do passado, mas mesmo esses indícios eram inventados.

morei com uma mulher que criava galos no apartamento. e viveu muito tempo? o tempo de uma graduação, ela me acolheu quando estive preso. andava léguas, todo o dia, para levar o almoço de meu pai. aonde? numa época em que morei na fronteira do brasil com a colômbia, fiz esta tatuagem em uma laje no interior de são paulo. você nunca falou dessa cicatriz. foi quando caí num poço. sabe o que eu mais gosto? de lembrar do beijo de infância, em frente a igreja, numa sexta feira de banho tomado. o som das ondas me dão sono, meu primeiro beijo contigo está errado, deveria ser em frente ao mar.

ele soubera de cara, como quem sabe da natureza das comunhões forçadas, que aquelas perguntas eram a tentativa de saber-se ela no mundo. ela insistia no que ele gostava. qual o nome de seu pai? qual a estação mais bonita de paris? quem mais é feliz no cinema americano? o samba de paulinho da viola, canta de novo? queria desvendar aquela caneca envelhecida na prateleira, o tom de azul preservado no explícito do papel de poema, a origem da tatuagem no braço, o porque de termos de evitar a praça nas manhãs de sábado.
e ele tinha o tempo todo do mundo. ela voltava toda a noite, com pedaços de frango empanado, uma receita de comida indiana, algumas páginas para traduzir e aquele verão nos lábios. e ele era só outono.



Créditos da imagem: olhares.pt
tatuagem 2, por Sandra Cid

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