I Concurso Literário Benfazeja

Em torno da poética do brasileiro Salgado Maranhão



Artigo de Iracy de Souza.

Publicado originalmente no Jornal Angolano de Artes e Letras 'Cultura' n° 13

[ Palavras que sagram ideias ]


"Sigo a sangrar, do peito ao vão das unhas,/
os dardos do amor: o que há sido e o que há."

O nosso investimento cultural une gesto e interlocução entre a leitura e a poesia, e o seu desdobramento na ideia de valor estético conforme perceptível a partir da obra do poeta brasileiro Salgado Maranhão. Esse espaço poético ocupa, na poesia contemporânea, especial relevo, mesmo anteas experiências literárias mais originais, perturbadoras e apaixonantes. O poeta Salgado Maranhão é o poeta da acção, o poeta das linhas sem retoques, indiferente a qualquer tipo de passividade. A dimensão do grito que ressoa do seu labor estético é resultante de uma contradição harmoniosa interna entre os opostos, os seus versos ganham unidade dual dos contrários que se complementam, que nos fazem compreender o seu compromisso com os haveres humanos e sua aposta na imperfeição da realidade. Pois, o poeta extrai a sua expressão poética da autenticidade da vida e a sua voz ecoa como a totalidade de um calar verdadeiro.


[ Vida do poeta ]


"Naufragado ao vento de um cais sem mar
o que serei se alia ao que me opunha."

O poeta Salgado Maranhão, personagem fundamental na formação da poesia brasileira contemporânea, nasceu em Caxias do Maranhão, no povoado de Cana Brava das Moças em 1953, no nordeste brasileiro. A sua mãe era camponesa - Raimunda Salgado dos Santos- e o seu pai era o comerciante Moacyr dos Santos Costa. Durante quinze anos aprendeu “o milagre das sementes” . Quando a poesia, “foi se alojando aos poucos nos latifúndios do coração” , mudou-se para Teresinha, lugar onde apesar das parcas condições de vida social e intelectual soube com sensibilidade trabalhar questões e conflitos da sua terra, que reclama continuidade, e que, antes de significar simplificações, expressam de forma contundente o drama do homem que vive o impasse ante a dor e o silenciar da própria existência. Em 1973, mudou-se para o Rio de Janeiro, a “Cidade Maravilhosa”, onde concluiu os seus estudos e vive até hoje.


[ O mistério das palavras ]


"As farpas do desejo – esse tear
das aranhas da dor e sua alcunha"

vasta produção do poeta Salgado Maranhão é reconhecida por diversos prémios. Inicia-se com a edição de uma Antologia “Ebulição da escrivatura” (1978). Já encontraremos o espírito criador do poeta, disposto a reverenciar as ilusões do mundo que é o mistério da sua arte e se lançar por caminhos sinuosos, evidenciando o seu engajamento com o cotidiano vivido na dimensão, ao mesmo tempo escura e vibrante do corpo. Pois, o centro do seu interesse é o próprio ser, enquanto pensamento e linguagem. Encontraremos uma vinculação de um sujeito poético alicerçado numa relação de complementaridade entre as imagens colectadas pela memória advinda da experiência muda em tenra idade e as impressões alardeadas do presente. Vertentes que serão amadurecidas no decorrer da sua obra, mas que já se encontravam nos seus primeiros versos, ou seja, a sua poesia já dava mostra do que ambicionava: essência.

Posteriormente publicou os seguintes livros: “Punhos da serpente” (Achiamé, RJ, 1989); “Palávora” (7Letras, RJ, 1995 ); Em 1998, ganhou o prêmio “Ribeiro Couto”, da União Brasileira dos Escritores (UBE), com o livro “O beijo da fera”. (1996); a sua antologia “Mural de Ventos” foi o vencedor do Prêmio Jabuti em 1999; em 2002 publicou a antologia “Sol sanguíneo”.

Nessa antologia surge o que poderíamos denominar de um ser verbal, puro e simples que tende cada vez mais a encarnar-se. Nesse espaço poético há um pacto com a palavra que vai além da relação individual e das suas alternâncias imaginárias. Percebe-se uma realidade marcada pela experiência, o limiar do raso e do profundo, onde as coisas não somente têm significações, mas também têm existências.

Em seguida, publicou as antologias: “Solo de gaveta E Amorrágio” (2005). “Concerto a quatro vozes” (2006), “A pelagem da tigra” (2009) e “A Cor das Palavras”.( 2009). A sua antologia “Sol Salnguíneo” foi traduzida para o inglês por Alexis Levitin (2012) com o título: “Blood of the sun”.

Autor da canção tema da peça “Curral das Maravilhas”, de Jonas Bloch, encenada no teatro Glauce Rocha, em 1979 e do filme “Boi de Prata”, de Augusto
Ribeiro Junior, produção da Embrafilme, 1980.


[ A construção da proposta semântica ]


"– fazem da luz do dia uma calúnia,
cravam no azul da tarde o zen do azar."

O universo poético de Salgado Maranhão mostra-se como experimentação de processos estéticos que filtram a realidade sensível para expô-la em cenários re-construídos por imagens. A sua poesia é profundamente densa, porque, instala tensões dissonantes para dizer da grande inquietação provocada e expurga a segurança enganadora de sentidos ilusoriamente instalados. Os seus poemas se movem num âmbito em que as diferenças reais são suprimidas e onde tem lugar um múltiplo transmudar de uma coisa na outra.



[ A leitura de um fazer permanente ] 


"Tento amarrar o tempo e a corda é curta,
tento medir o nada e nada ajusta."

Se, até então, não os convenci da expressividade poética como um fazer permanente, um processo ante os olhos sensíveis à beleza e à poesia, façamos uma incursão na área do mistério, pela busca do indizível e deixemos que a afectividade sugerida pela música das palavras, acompanhada do seu poder invocador e imaginário, nos conduza pelo poema Clava. Vamos privilegiar na nossa leitura as operações significantes, procurando esfacelar o objecto estudado, decompondo-o, abrindo no seu interior um novo exterior, desligando-o de um ponto de vista central único e oferecendo então, possibilidades de percepções.




Clava
"o que será
que nos há
que ao nos haver
ver-nos-á
nus?

o que será
que nos ara
tem treva
em clava
em lida
em luz?

quão des/
havemos
além
do que vemos?
em qual fome
Deus nos chama
pelo nome?

II.

o que será,
far-se-á em nós
além da carne –
mesmo quando é sono
o sonho;

o que será,
ser-nos- á nas marcações
de um tempo não retrátil,
irrevogável.

as coisas se vão brotando
rumo a essa antimatéria
feita de amanhãs.

e não se nasce para ontem.



No poema Clava e II., o sujeito poético argui-se quanto ao grau das contradições na vida. Ele parece trilhar para o mais além do sentido, o lugar de emergência de sentido, ou seja, o que parece ser a falta de sentido é o puro sentido. Sem avesso e sem fundo as suas dúvidas simbolizam a manifestação do que é simultaneamente presente e ausente. Sugere que o homem está desde sempre perdido, pois entre ele e o mundo há a linguagem, e cada vez que o homem quer se aproximar do mundo submerge aos abismos da linguagem que o isola do mundo. As indagações apontam para o vazio anterior à existência do homem e à criação. O que procura o sujeito poético é uma singularidade radical, de tal ordem radical como se ele não fosse suficientemente singular para ser singular.

O sujeito poético, profundamente só, mas não parece perdido em suas indagações, parece que sua busca é um momento de epifania, de revelação, ou de prece: em qual fome/Deus nos chama/pelo nome?

Parece procurar restaurar um lugar que o sujeito ocupara quando ainda não o haviam limitado a um nome, pois, o símbolo o fez homem, através de uma língua materna, ou uma situação social, momento em que o homem não se diferenciava por um traço particular, momento de total liberdade. Ultrapassando esses limites, o sujeito é exatamente o nada e seu êxtase é o do não-senso radical que deslegitima o sentido dos sentidos.

Questionar é buscar saberes e o saber é também saber sem Outro, um saber solitário, saber de solidão. O sujeito poético parece estar num limiar que separa nitidamente o mundo simbólico e o mais além do simbólico – o real. Essa experiência poética fala da realidade como a antimatéria: “as coisas se vão brotando / rumo a essa antimatéria / feita de amanhãs”, e do simbólico quando ele menciona a linguagem, / não se nasce para o ontem. A sua linguagem, na sua vertente simbólica, revela um esforço, sempre precário, de fazer frente ao real.

Nós leitores somos arrastados no mesmo processo, somos solicitados pelo texto, não como receptor da mensagem do poema, mas sim, com a nossa pluralidade de significantes. As nossas vivências acabam por se integrar à leitura numa prática infinita e anónima, pois, o que se passa como sujeito poético o escapa como interlocutor.



[ O impacto das palavras que sagram ideias ]


"Meus nervos tocam para os inimigos
que chegam sob o som de uma mazurca."

A busca incessante do nosso poeta parece ser a de tentar escapar da prisão da significação, pois a sua poesia se funda precisamente numa ambiguidade. Ela parece depender da relação do significante ao significado, e podemos dizer, de certa maneira, que ela é imaginariamente
simbólica. Essa ambiguidade se instaura a partir de uma torção sobre aquilo que na língua pode ser entendido como o amadurecimento de algo que se cristaliza com o uso. O poeta procura resgatar aquela poiésis que se perdeu com toda essa carga de conotações adquirida com o tempo, revitalizando a energia originária do vocábulo e ao mesmo tempo explorando as diversas potencialidades da palavra poética, quando busca deslocar a palavra depurada da sua pluriestratificada significação semântica para dar um novo sentido e reavivar as suas antigas evocações, dessa forma recupera a economia musical do verso, o som e o ritmo perdidos constituindo uma palavra com duplo sentido.

"Resta a mó do destino – o desabrigo
– a devolver meu pão de volta ao trigo."

O universo poético de Salgado Maranhão desacomoda, surpreende e sugere sentidos, é singularmente harmonioso, atrela-se à memória viva, às inovações advindas das experiências. Tal harmonia advém da própria poesia, que nos torna ressonante e consonante, permanecendo
em nós, porque não nos é imposto, mas tão somente sugerido, os seus versos indicam o real para além de si mesmo, por percursos singulares, contradizendo o ser dos discursos correntes.

Deixemos cantar o soneto O azul e as farpas (epígrafes desse artigo), com o seu andamento tipicamente barroco:

[0 azul e as farpas (Beijo da fera)]

"Sigo a sangrar, do peito ao vão das unhas,
os dardos do amor: o que há sido e o que há.
Naufragado ao vento de um cais sem mar
o que serei se alia ao que me opunha.
As farpas do desejo – esse tear
das aranhas da dor e sua alcunha
– fazem da luz do dia uma calúnia,
cravam no azul da tarde o zen do azar.
Tento amarrar o tempo e a corda é curta,
tento medir o nada e nada ajusta.
(Meus nervos tocam para os inimigos
que chegam sob o som de uma mazurca.)
Resta a mó do destino – o desabrigo
– a devolver meu pão de volta ao trigo. (p.152)"


No soneto O azul e as farpas o desejo assombra as cavidades da palavra e demonstra imageticamente o seu resgate pela arte. As metáforas bailam, num andamento, tipicamente, barroco, as palavras criam e recriam sentidos e tecem as fibras da memória, numa tentativa sempre
falhada de ascender ao enigma, ao limite do impossível. Assim, as palavras que sangram ideias e imobilizam a vida, promovendo inquietações e impactando o leitor. Essas metáforas nos afiguram um mistério insondável, profundo ou fascinante, que se propõe como
uma estrutura determinada por detrás das palavras, o que nos parece ser inelutável e ter o caráter de necessidade, pois o soneto é antes de tudo uma necessidade. E essas imagens são dotadas de uma força compulsiva que nos faz repetir inflexivelmente no mesmo padrão vibratório que o espaço poético releva. O espaço da dor anunciada, da perda, do que havia como possibilidade, da falta do que nunca existiu nem existirá, porém liberta muito mais que escraviza. Porque se o desprezo e a exclusão parecem condenar o sujeito poético há anos de solidão, ao procurar caminhos fora das suas fronteiras e ao falar da mó do destino, desse desabrigo, de repensar a sua condição, que tem muito mais a somar do que a dividir, pois no acto da fala já está implícita uma ação. A linguagem retorna ao solo mais áspero, o soneto não termina, se entrega e, será reconhecido pelo nome do seu autor, assim como, as palavras finais desse artigo:

O poema é um espaço aberto onde nada existia. Onde havia uma necessidade interior inauferível e indeterminada. No entanto, uma vez que as palavras se transformam em poesia, não se pode mais prescindir desse agradável alimento do espírito. Algo se alarga no nosso universo perceptível. Não é que se tenha aprendido uma técnica de sobrevivência na selva ou em alto mar, apenas vivemos o clarão de uma experiência inexplicável. Uma ação que não nos deu nenhuma fórmula pronta para domar o mundo, mas abriu em nós uma página para o gratuito exercício de ser feliz. Esse é o imenso poder da linguagem poética, que não nos prometendo nada, nos devolve ao lado luminoso de nós mesmos. Poeta Salgado Maranhão

Um comentário:

  1. Realmente um poeta que navega o impreciso. Menos verdade e mais sentido.

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