I Concurso Literário Benfazeja

O poeta da rua augusta




Conto de Rogério Fernandes

Não me recordo bem como tudo aconteceu, sei que foi assim, e nunca consegui deixar de pensar que naquele momento uma flor morreu no jardim, lá de casa, entre as belas begônias aliteradas e as camisetas cor de rosa da balada secando (ode, ao longe, bacantes!), como bandeiras ao vento, lindas, cheias de estampas preciosas e palavras de dicionário que coleciono, também pudera, sou poeta.

Que lindo azul no fundo da mente! Sou poeta! Embora diariamente faça ponto no cartório, porque poesia é um estado, um quadro de frida kahlo na existência, um bigodinho ralo na cara, puro primor poético! Quando jovem, adorava observar as pessoas e suas amorosas relações de intrigada beleza, um samba de roda, uma coca cola, uma concretude de oriente que faz chorar, chorar...ondas de encontro na existência, puro brilho intenso! Quanto desdobrar de tristeza em uma relação que se acaba, um homem belo de misteriosa cultura, me apaixonei! Primeiro, pelos ombros, estátua mitológica de pele bronzeada e boina de comunista, como amei aquele homem! Por toda a quinzena de realizadores em cannes! Sim, porque poesia é esse comichão de vinis, ilustrado por um grafiteiro da zona leste, rodando no écran de uma cinemateca. Ah, doce lado de nós dois na cama...

Mas o amor, pequena fruta sem fruto, quis que tudo se fosse na correnteza da vida. puro mistério! Quando comecei a frequentar saraus, foi um claro instante que se abriu na clareira de minha coleção de hilda hist! o meu lábio semi aberto, o conjuntinho bem cortado, aquelas botas de brechó e meus iguais poetas velhos meninos de lugar marcado na praia da poesia! O lugar mais quente do inverno, o abandono mais lívido do verão, um beijo cerveja na nuca! Ah, sarau...parecia uma canção do Criolo!

Amei a todos, editamos algumas revistas, saímos para confraternizar, trocamos poemas estampas como cartões postais, todos juntos, bonito de ver! Ah, ver o poema publicado! Não admito a qualquer um, mas para você, que é também poeta, e agora, que todos estão dormindo...que belezura o meu nome impresso, que sede de ver isso sempre e as gentes, queridas celebrações, carinho demais por quem celebra comigo essas publicações. Ah! Vou abrir um vinho! Todos os deuses conspiram para a nossa lua cheia, especial dia e noite de poesia...só não tolero preconceitos! Aí eu desafino o piano, coisa mais sem sentido o respeito inverso, desnatureza freudiana!

Minha voz quer grafitar de amor e coisas boas e português perfeito toda a avenida paulista aos sábados e domingos e feriados e madrugadas. Broto da banheira como vitória régia! E no horário comercial, bato ponto, carimbo um documento, entrego um formulário e leio, adoro livros!! Mario Quintana, Caio Abreu, Os concretos...aí delicia!..Clarice, grande dama suicida...subo tudo no grupo de autores, e alguns experimentos poéticos de minha safra, é muito trabalho ser, mas quando me dou a ser, sou.

Foi quando? Não sei dizer, me encantei por ela, doce, grisalha, de mãos tão brancas, ventre e olhar de furacão, intensa e amedrontada, com sua voz de declamação e aula de filosofia. Estava indo a um encontro com alguns poetas do interior da bahia, camisas abertas, pegada mangue beat, sem dinheiro para a cerveja e alguns tíquetes do serviço público, trocamos por licor de anis e algum absinto, rimbaud não faria melhor! Tédio, horror e maravilha...ela estava com eles, como uma enorme iemanjá de óculos a atualizar a sua página no facebook. Primeiramente, não dei bola, mas não resisti à vendedora de flores e comprei uma rosa para ela, lembrei de chaplin naquele filme mudo bonito que nunca assisti, mas tenho guardado o cartaz no quarto, ah, eterno vagabundo, como me inspiras!

Ela pediu uma cachaça, pedi de volta um beijo, nos queremos sem ciúme, suas mãos não sabiam tocar, as minhas tremiam, anotei seu mapa astral no verso da conta, trocamos telefone e nos encontramos na casa das rosas. Ternura tenra natureza e cansaço, madrugada e poesia. Trocamos mensagens, pássaros cantavam e dormimos nas trocas de poemas, dançava tão bonito até que longe, longe de mim, tive que me ausentar. Meu pai havia morrido no interior, coisa grega essa de pai morrer, chorei baixinho no colo dela, anotei uns versos e me pus a atualizar o instagram com fotos de meu pai e das saudades de coisas que ele gostava que, acho intimamente, num momento poético de filme de Lee Chang-dong, ele de fato gostava! Um amigo poeta me homenageou com um belo poema concreto, cheio de finais em ã, como Caetano tanto gosta. Nunca quis parar aquele amor, você bem sabe, instituí o atlântico como nossa casa, o sol e o céu nossa casa. E ela ficou em Sampã, preenchendo formulários para editais e projetos culturais. Quase gozei.

Combinamos que na minha volta, nos encontraríamos no Ibotirama, e de lá, quem sabe? Ela chegou falando desmedidamente de coisas que não podia entender assim, sem um desenho de mãos na face do rosto. O vestidinho de flores estampadas e o chapéu de atriz francesa havia sido trocado por uma calça preta, blusa ocre de cetim e algumas pulseiras, os olhos, então tão belos e coloridos, exalavam uma cor preta e pequena, salpicando a miudeza de quem faz contas de cabeça. Tinha deixado a poesia. Despoetara. Sentou-se séria e me olhou nos olhos, perguntou porque gravata borboleta vermelha e sapatos de boliche se eu já tinha trinta e dois. Respondi que era poeta, e artista. Ela sorriu alto, as pessoas olhavam em volta. Ela parou de sorrir e me olhou de volta, com a cara da uma thurman:

- Eu sou poeta, você é apenas um desenho mal feito na palma da mão de um pintor de paredes, antes de se lavar para o almoço.

Segurei o choro. O que será que existe no abandono de alguns dias? Meus lábios se fecharam. Vazio, vazio, procurei uma mensagem no celular, nada. Atualizei minha página, nada. Nada respondia àquela mulher. "Poeta e mulher, poeta e mãe, teta e canção e lábios. Eu sou artista, você? Você é sozinho e finito." Ela repetia sem parar, poeta, mulher, mãe, teta, canção, lábios, artista. poeta, mulher, mãe, teta, canção, lábios.

Tirou uma nota de cinquenta e deixou na mesa. Me chamou de putinha fresca e afetada, depois perguntou do meu pai, disse que corri para ela. Ela sorriu sem felicidade, use seu pau para fazer um filho e torça para que ele esteja com você no dia de sua morte, é o único poema que, talvez, você seja capaz. A Augusta é capaz de cada crueldade, rabisquei um sol e um horizonte na nota que ela me dera, ela foi ao banheiro, na volta, passou por mim e sentou-se na mesa ao lado, dois homens barbudos, de camiseta e colares e cabelo escorrido, a esperavam. Saí.

Depois daquilo aluguei um apartamento na praça Roosevelt e decorei com os poemas dela e algumas fotos de Patty Smith, Laurie Anderson e Sula Miranda. Comecei um trabalho no mercado editorial, embora não tenha lido muito nessa vida. Gosto de desconstruir.

*
Créditos da imagem: Olhares.pt
bar de fantasmas, por Nuno Duarte

Nenhum comentário