Psicanálise e Literatura: amor, desejo e gozo

Entrevista com Nadia Paulo Ferreira por William Amorim
William Amorim (WA), psicanalista, professor, mestre (DAL/IFMA), membro da Academia Itapecuruense de Ciencias Letras e Artes/AICLA.
Nadiá Paulo Ferreira (NPF), psicanalista (Corpo Freudiano Escola de Psicanálise sessão Rio de Janeiro), professora titular de Literatura Portuguesa, professora dos programas de Pós-graduação em Teoria e Clinica Psicanalítica (UERJ), com vários livros e artigos publicados.
Psicanálise e Literatura: amor, desejo e gozo
WA: Por que a psicanálise se interessa tanto pela literatura? Qual a relação entre esses dois campos?
NPF: Freud, a partir de sua clínica, descobre o inconsciente e funda a psicanálise, inaugurando um campo teórico que permite pensar o homem e o seu estar no mundo. Os escritores sempre souberam que o amor, o desejo e o gozo escapavam ao domínio da razão. E, justamente por isto, usaram a imaginação para escrever poesias e contar histórias, com as quais os leitores se identificavam, usufruindo intenso prazer com essa identificação. O brincar infantil e a criação poética, tal qual o sonho, são tecidos pela fantasia, que, para Freud, é a via pela qual se realiza o desejo. Os psicanalistas deveriam ler os grandes escritores, porque a literatura, como escrita tecida pela fantasia, encena o que se gostaria de ser, de dizer e de esquecer; as promessas de um sonho de amor; as tristezas de amores infelizes; os desejos adormecidos e inconfessados; os fantasmas que causam horror. Enfim, uma multiplicidade de facetas que marcam o limite trágico e cômico da existência do homem no mundo.
WA: Como a senhora definiria os lugares do leitor e do psicanalista na interpretação?
NPF: O leitor e o analisando se histericizam. Para Jacques Lacan, histericizar é sinônimo de começar a falar. O analisando fala qualquer coisa para que faça falar o seu sintoma. Se o leitor, afetado por um texto, falar o que lhe vier a cabeça, isto não é uma interpretação, mas um delírio. Diante de um texto, o leitor fala de sua tecedura com a palavra a partir do seu sintoma. O psicanalista, diferente do leitor e do analisando, em vez de falar, escuta. É preciso a suspensão do ser para ocupar o lugar de analista, o qual que é sustentado pela ética da psicanálise, que é o desejo do analista: desejo de que haja desejo, desejo de emergir a singularidade de um sujeito. Desse lugar nasce a interpretação, que tem como visada a desconstrução dos sentidos coagulados, a fim de que novas associações sejam produzidas, libertando os grilhões de uma fala amordaçada, o que faz com que caia o sintoma.
WA: A sua palestra na Academia Maranhense de Letras intitula-se O amor que ama o amor na poesia medieval. Qual a concepção de amor que sustentava a literatura desse período e o que mudou de lá para os dias atuais?
NPF: No sul da França, aproximadamente em fins do século XI, em língua D’oc, é inventado pelos trovadores o amor que ama o amor. Este amor nasceu de uma inspiração ordenada por um conjunto de regras, que constituíam as formas fixas de uma poesia (Cantiga de Amor) associada à música, ao canto e às Leys d' Amor. Quem não conseguiu compreender o fenômeno do amor cortês, considerou-o expressão de um fingimento ou de uma impostura. Independente do julgamento estético, não há dúvida de que o amor cortês se originou de uma construção, contendo tudo o que de artifício é necessário para a invenção de um objeto. Trata-se de um amor, que se inscreve no regime da privação: amar tem como condição sine qua non não ser amado, não alimentar nenhuma esperança, apenas sofrer e enlouquecer de dor. A Dama, como objeto inatingível, encarna uma crueldade desumana, já que Ela, em vez de sentir compaixão, se mostra absolutamente indiferente ao sofrimento do amante. Lacan, referindo-se ao amor cortês, no Seminário 20, Mais, ainda, afirma que o amor cortês foi inventado para vir em suplência ao impossível de dois se fazer Um.
WA: Como a crítica psicanalítica pode iluminar o texto literário? Dito de outro modo: qual a contribuição da psicanálise para a leitura do texto literário?
NPF: Os escritores sabem o que a psicanálise nos ensina: é impossível decifrar os enigmas do ser, da vida, da morte e dizer toda a verdade. Assim, quem ilumina a psicanálise é a literatura.
WA: Na programação do seu Seminário há uma referência a obra O Mestre, da escritora portuguesa contemporânea Ana Hatherly. Em que aspectos essa obra inscreve o amor de modo diferente nos romances do século XIX, por exemplo?
NPF: Em um clima de intolerância política e de falta de liberdade, imposta pela ditadura salazarista, Ana Hatherly estréia na literatura, com a publicação de três livros de poesia: Um Ritmo Perdido (1958), As Aparências (1959) e A Dama e o Cavaleiro (1960). No final dos anos sessenta, concomitante à carreira de escritora, lança-se como artista plástica, participando de uma série de exposições individuais e coletivas. A partir de 1970, realiza e produz uma série de filmes de curtas metragens e um vídeo. O Mestre (1960), único romance, é escrito, segundo depoimento dado pela autora no posfácio da terceira edição, em uma fase de mudança, levando-a ao corte com a sua produção anterior e à adesão ao Experimentalismo. Essa novela, como prefere chamar a autora, se inscreve de forma original na trajetória do mito do amor na literatura portuguesa. A conjugação entre amor e saber, coloca em cena o que Freud nomeou de amor de transferência. O saber, como condição do amor, é o caminho para a descoberta da Felicidade. É lógico que essa busca, que coloca em cena dois personagens, a Discípula e o Mestre, só pode resultar no trágico.
WA: Quais os livros, de sua autoria, estarão disponíveis para o público na noite de autógrafos? Obrigado pela entrevista.
NPF: Amor, ódio e ignorância, publicado pela Contra Capa e A teoria do amor, publicado pela Zahar.
Entrevista publicada em O Estado do Maranhão- São Luís, 10 de maio de 2013, sexta-feira, Caderno Alternativo, p. 5. a propósito da realização do Seminário Psicanálise e Literatura, realizado na Academia Maranhense de Letras, em parceria com a IFMA e com o Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção São Luís.
Créditos da imagem: Olhares.com
...desejo-te, por Carla Salgueiro
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