I Concurso Literário Benfazeja

Faça-se o verbo!



Conto de Deanna Ribeiro.

Há alguma coisa por aqui me rondando: sussurros quase silenciosos, que não me deixam compreendê-los. O sopro que o vento traz e vibra na janela, provocando urros lupinos. O barulho do trânsito lá fora na larga avenida sempre difícil de atravessar. Idiomas desconhecidos, talvez já extintos, línguas de tribos africanas: não sei. A compreensão só alcança o existir, mas não o determina nem classifica.

Pode ser também que venha de dentro e queira explodir. Um nó na garganta, uma boca aberta no momento do grunhido que ainda não se fez verbo, o pensamento fervente repleto de difusas imagens indizíveis. O que quer que isso seja, de onde quer que venha, me provoca, me inquieta.

Sentado diante da tela em branco, como muitas vezes antes, e – como muitas vezes antes – a coisa não se traduz em palavras. Ela não se mostra, não se materializa. Por isso deixaria de estar no mundo? Estar aqui dentro ou depositar-se desde lá de fora já não seria suficiente? Sei que ela existe, sim, ela existe, ela é. Sinto sua incômoda presença pedindo que eu seja aquele que a deve interpretar. Mas como? Tenho apenas mãos, dedos e olhos para executar aquilo que não sei.

E o que posso dizer é do que me surpreende ao encarar a luz azul da tela branca. E desse sentimento de impotência diante do desconhecido que não se mostra. Diante da coisa bruta, sem palavras que tornem possível sua categorização.

A coisa me desafia a dizê-la, olha no mais profundo de mim, não sem deixar escapar os dentes pelos lábios entreabertos, num riso de lado. Talvez ela saiba da total impossibilidade de materializar-se, ou queira me levar a conhecer o plano em que o saber e o sensível se condensam e formam um só corpo inseparável. Pode ser que ali sejam um só, e a coisa esteja buscando uma companhia para deixar de ser metade. E eu, o elo para o outro lado onde habita a palavra.

Acontece que não sei chegar até lá. Minha ponte tem falhas. Alguns caminhos, porém, intactos. Mas esse, justamente esse entre a coisa e o saber, tem falhas. Buracos enormes, em que, uma vez se cai, mergulha-se no vazio completo. Breu de confundir a alma. Labirinto sem novelo. Cegueira de nascença.


Inútil dizer a ela que não consigo. Ela insiste, vem e me desperta até que, vencido, esteja aqui, de frente à tela sem saber. Ainda que seja madrugada, ainda que me doam as costas, ainda que: ela quer corporificar-se; ou fazer tortura psicológica usando meu sono e minha saúde.


Existir não basta, ela quer o concreto saber-se no mundo mesmo que custe minha sanidade.

*

2 comentários:

  1. Gostei,gostei demais do conto.Bem escrito,bem fluente,e com sedução no conteúdo.O tema é pano de fundo até o desencadear final,teve o tempo certo de iniciar,e de terminar,sem afetação do argumento,perfeito...

    ResponderExcluir
  2. Obrigada pelas palavras, Mario. Seja sempre bem-vindo por aqui. Abraço.

    ResponderExcluir