I Concurso Literário Benfazeja

Claude: A Guerra e a Música




Conto de Alex Azevedo Dias


Entre as folhas de um grande carvalho, a lua, vacilante, minguava. O verde balouçava na copa da majestosa árvore, traduzindo em assovio, o sopro dos ventos. Embora a Belle Epoque chegasse ao fim, com a burguesia francesa encerrando seu período áureo, a Gare du Nord estava em ebulição. Muitos se acotovelaram para recepcionar festivamente um notório compositor que ali desembarcara.

Era maio de 1914. E antes de estremecer com os primeiros bombardeios, Paris sentia apenas a vibração de notas musicais. Música inebriante que levara às lágrimas os corações mais rígidos. A atmosfera europeia não estava numa fase favorável. A ameaça da invasão alemã comprometera a vida artística parisiense. As luzes empalideceram, e o brilho, tornou-se opaco.



Mas aquela música injetara ânimos renovados. O medo pôde, momentaneamente, ser substituído pelo flutuar dos dedos nas teclas do piano. A melodia elevava a alma de quem passava. Em Bois de Boulogne, num teatro a céu aberto, o compositor extraía uma música que não deixava ninguém indiferente. Ao reverberar através de galhos, folhas, frutos e flores do bosque, ondulando a pequena lagoa, enchia de esperanças aqueles que já sentiam as primeiras dores da morte anunciada.

Sob inflamados aplausos, Claude agradece, curvando-se em reverência ao público. Abaixa a proteção das teclas do piano, cumprimenta uns poucos e segue para seus aposentos. O fantasma da tentativa de suicídio de sua ex-mulher ainda o atormentava. A antiga vida boêmia tivera um saldo negativo, apesar de ter conhecido sua atual esposa em tal desregrada circunstância. Um câncer já consumia quase todas as suas forças, menos o amor pela música. No quarto da hospedaria, sua esposa Emma repousava. Estivera no concerto, prestigiando a apresentação do marido, mas uma leve indisposição a fez sair um pouco mais cedo.

- Oi, querida. Não ficou para me cumprimentar? – Disse Claude, com um sorrisinho de canto de boca.

- Eu que seria cumprimentada por ter um marido brilhante. Se não fiquei, é porque realmente não estou bem.

- O que houve?

- Só um leve mal-estar. Nada de mais.

- E Chouchou, por onde anda?

- Ela está passeando no jardim. Quis ver a lua.

- Mas ela só tem nove anos...

- Ai, Claude. Não sou irresponsável. Nossa governanta foi com ela. Venha, deite-se. Você está cansado.

- Sim. Cada vez fica mais difícil permanecer por tanto tempo sentado à frente do piano. Só à base de analgésicos. Mas eu só percebo o quanto meu corpo sofre após terminar o concerto. Durante, a música faz desaparecer toda a dor, como num passe de mágica.

- Venha, querido. Descanse ao meu lado. E não se preocupe, Chouchou está em boas mãos.

Claude se trocou, deitou-se e se conchegou ao lado de Emma. Por algum tempo, sob os afagos da mulher, ele adormeceu. Estava exausto. A viagem de volta à Paris fora cansativa. E no dia seguinte teria que novamente embarcar para uma turnê num povoado a cerca de oitenta quilômetros do sul de Paris. Não seria um deslocamento significativo, mas ainda não tinha se refeito da viagem Londres/Paris. O descanso de Claude e Emma só se interrompera pela chegada tumultuada de Chouchou, contando, entusiasmada, o que vira no jardim. Ela descrevera menos o formato da lua do que as roupas das madames parisienses.

Dois meses depois, novamente em Paris para uma nova turnê, a guerra eclodiu. A ascensão industrial misturada à ambição territorial levou as potências europeias a uma disputa sangrenta. Claude, que não se deixara vencer pelas agonias do câncer, desafinara seu instrumento amado. O dedilhado harmonioso, seus belos acordes que antes ecoavam, arrebanhando ouvidos embriagados pelo calor de sua música, viu a alegria escoar pelo ralo da saudade.

Não havia mais motivos para tocar. A música arrebatadora cedeu lugar à matadora ofensiva alemã. Durante um ano a tristeza o afastou da música. Emma e Chouchou tentaram em vão animá-lo. Claude se divertia com a veia artística de Chouchou, representando personalidades famosas para o pai, num tom cômico. Mas nada daquilo fazia Claude readquirir seu encantamento musical.

- A cidade está sendo devastada, Emma. Eu só ouço o grito da morte. Barulho de tiro, bombardeios, lares destroçados. Não sobrou nada, minha querida. Não há mais lugar para a música. O som do coração perdeu-se nos gemidos da morte.

- Meu amor, talvez seja o contrário. Talvez este seja o melhor momento para que você volte a tocar, meu querido. A música é a única forma de manter a paz. Você precisa devolver aos ouvidos poluídos pelos selvagens gritos de dor, a suavidade do amor. Devolver às pessoas a capacidade de amar, a capacidade de ainda haver esperança em uma vida de paz e alegria.

- Mas como? É impossível. A maioria das pessoas sofre pelo massacre em suas vidas, suas famílias, seus ideais. As pessoas de bem estão condenadas ao horror da guerra. Eu estou surdo. As explosões me roubaram a doçura. Não posso mais compor, não posso mais exaltar a vida. A vida virou morte.

- Mas você ainda me escuta. Sei que quando eu falo, esse coraçãozinho repleto de notas musicais me ouve e ainda pode se apaixonar e abençoar o mundo castigado, com a sua música.

Claude ouviu Emma em silêncio. Pouco tempo depois, declarou publicamente que estaria de volta. Com obstinação, assimilou as palavras da esposa e fez da música a ferramenta máxima de beleza e inspiração para lutar contra a fúria e a feiura do ódio.

Claude sentia que estava predestinado a amenizar o barbarismo da guerra.
Compôs obras-primas, levando a esperança para cada cantinho de sua querida França. Entoou exaltações à paz e à alegria, plantando a esperança em muitos corações. Em 1918, apresentou um belíssimo concerto na cidade litorânea Saint-Jean-de-Luz, seu último concerto.

O homem que transmitira o virtuosismo da esperança e o afeto do luar padecera de câncer durante o último bombardeio da Alemanha em Paris. Morrera às vésperas da tão sonhada paz. Mas os que ele deixou declararam que naquele dia, pela primeira vez, a beleza da vida abafou os barulhos da morte.

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