I Concurso Literário Benfazeja

A casa cinza




Na casa amarela da esquina, uma criança de nove anos morrera atropelada quando passeava com seu avô – que sobrevivera ao incidente tendo ficado em uma cadeira de rodas. Na casa azul, na metade da quadra, a filha nascera com paralisia infantil. Na casa verde ao lado, atrás da cerquinha branca vivera uma viúva de três maridos. A casa rosa, do outro lado da rua, pegara fogo um dia e, reconstruída, abrigara uma velha que não se sabia de onde vinha; o incêndio ceifara a vida de uma família inteira; a velha, por fim, acabara morta por outro incêndio. E, por fim, na casa cinza, no fim da ruazinha, três irmãos haviam se suicidado e, desde a morte dos pais, a casa ficara ao-deus-dará. Mendigos e gatos dormiam ali, era a mais ameaçadora de todas as casinhas: os pais, diziam, haviam sido encontrados sem vida juntos na sala de estar, sobre um suntuoso e fofo tapete vermelho, com facadas no peito. Nunca se soubera o que sucedera. Diziam que era tudo coisa de um ritual satânico, e a casa era mal-assombrada.

A Rua das Tragédias.

Era assim que a chamavam. Seus moradores habitavam ali desde muito tempo. Velhos moradores, visto que poucos tinham coragem de desafiar os prognósticos da Rua das Tragédias, uma bonita alameda em um bairro bucólico da capital. Perto do mar, perto do Cristo Redentor, perto de tantas saudades e solidões. As casas, ali, até eram alugadas e vendidas a preços mais em conta. Tudo por causa da fama da rua: cinco casinhas aterrorizantes.


Mas alguns ainda tinham a audácia – ou o desprendimento – de querer morar ali. Atraídos, em grande parte, pelos preços acessíveis e também pelo visual agradável e até mesmo parcimonioso da ruazinha. Como se ela mesma não tivesse culpa das histórias que carregava, em cada pedra da rua, em cada pedaço de concreto, em cada árvore, em cada flor na calçada, em cada porta muda e janela cerrada.

O ápice da rua era, sem dúvida, a Casa Cinza.

A casa cinza no fim da rua era realmente a mais apavorante de todas as casas. Não apenas por sua história, mas sua arquitetura em si era intrigante, em estilo vitoriano, em um bairro bucólico do Rio de Janeiro. Diziam que fora construída por volta de 1880 – ah, mas diziam tanta coisa. E que fora erigida por um general das Forças Armadas, que ali residia com sua esposa e seus filhos. Morrera envenenado, assim como a esposa, era o que diziam à boca miúda.

E, depois, muitos anos depois, três filhos haviam se suicidado ali e os pais, poucos dias após, esfaqueados no peito no tapete vermelho da grande sala, em frente à lareira.

A casa cinza nunca havia sido um lar para ninguém após a maldição da família Brunati – a família morta. Dizia-se que tinham habitado ali no início do século XX. Quem tivera a ousadia de lá pisar dizia que dava arrepios só de passar pela soleira da porta. E que a casa tinha um odor estranho, repelente. E barulhos perturbadores. Havia uma saleta lá no fundo onde, diziam, ficava um antigo consultório dentário que havia pertencido ao homem esfaqueado. Os boatos eram de que ele, um imigrante italiano, arrancava os dentes de suas vítimas, sem anestesia, e os torturava, para depois matá-los por misericórdia. Dizia-se que os enterrava embaixo do piso de madeira do consultório, na terra, e havia vários corpos ali, onde nunca ninguém escavara.

Seria o odor da casa resultado daquelas atrocidades? Alguns, céticos, alegavam que devia ser apenas o abandono da casa, que se decompunha lentamente. E o doutor Brunati não passaria de uma lenda. A lenda do dentista assassino. Mais uma lenda da Rua das Tragédias.

O doutor Brunati, diziam, tinha um altar de adoração ao demônio em sua casa. Parece que havia aberto um túnel embaixo da residência, onde fizera um tipo de cripta. Remanescia, supostamente, atrás de uma parede de concreto que ele selara pouco antes de morrer com sua esposa. Uns diziam que era a parede lateral direita da casa, outros, a parede perto da piscina que descia até o primeiro andar. O doutor Brunati, que dizia-se ter vivido ali por décadas, para todos os efeitos havia mandado fazer uma grande piscina que se tornara só um buraco coberto de musgos, moscas e sujeira.

E diziam que até os gatos ficavam arrepiados quando vagavam pela casa. Os cachorros nem entravam, uivavam e recuavam como se vissem fantasmas. Havia discordância quanto ao paradeiro da temida “cadeira de torturas” do doutor Brunati – que arrancava os dentes dos pacientes com alicate, um por um, e depois os matava e sacrificava em seus rituais satânicos. Por fim, enterrava seus restos sob as tábuas de madeira, na terra.

E era comentado que poderia haver mais de dez corpos ali embaixo. Por que a polícia não fazia uma busca? É só imaginação do povo, dizia a polícia, com medo. A casa cinza só era triste e assustadora porque era vazia.

Hoje um garoto muito curioso resolveu se arriscar a entrar na casa, abandonada há mais de duas décadas. Não morava na Rua das Tragédias, não sabia de suas histórias; mas conhecia a história do dentista assassino. Um homenzarrão que dava gargalhadas enquanto decepava lentamente suas vítimas. Que eram, em sua maioria, crianças.

O garoto, com seu amigo, foi tapando o nariz para não sentir aquele odor fétido até alcançar uma saleta anexa à casa, nos fundos da moradia. A sala do dentista. Só podia ser. Minha mãe disse que é tudo mentira, pra assustar as crianças.

Apenas uma saleta sem nada dentro.

É, pura mentira.

– Ai!

– O que foi, Carlinhos?? – O grito do amigo fez o coração de Bento pular e o despertou de seus pensamentos sobre sua mãe e as mentiras que as pessoas inventavam.

– Pisei em alguma coisa pontuda...

– Isso que dá andar descalço! Minha mãe nunca deixa eu andar assim. Deve tá cheio de pedrinhas aqui.

Carlinhos, o garoto ferido, assentiu. É, pedrinhas malditas...

– Grudou no meu pé. – Carlinhos levantou a sola para retirar o objeto pontiagudo.

– Viu, eu falei... mamãe tava certa, era tudo lenda... – Bento se sentou na escadinha que dava acesso à saleta, de porta de ferro escancarada recoberta de musgos. Sentiu-se confiante. Um garoto corajoso. Nem todos os garotos fariam aquilo.

Carlinhos se sentou ao lado do amigo. Seus olhos estavam arregalados. Ele parecia tremer. Tinha a palma da mão aberta e olhava fixamente para ela.

– Um dente!!! – exclamou Bento, fazendo Carlinhos deixar cair a “pedrinha branca” que ferira seu pé.

Sem pensar, saíram correndo deixando dente, escada, portas, janelas, gatos e moscas para trás.

Nunca mais eles ultrapassarão o portão de ferro da casa cinza. Na verdade, nunca mais a verão.

E no pé de Carlinhos ficou um sulco de dente molar. Um dente molar de criança.

*

Créditos da imagem:

casa assombrada, por João Miranda

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