I Concurso Literário Benfazeja

Barulhos





O solado estava precisando de reparos fazia tempo, mas o assunto era sempre esquecido até a próxima vez em que tirava os sapatos do armário, poucos minutos antes da aula, e ia preparar a sala e a música para receber a turma. Recriminava-se pelo desleixo com o material de trabalho, mas os dias caóticos de tanta atividade sufocavam suas chances de organizar-se. Seria assim enquanto não aprendesse a responder negativamente as tantas solicitações que excediam suas responsabilidades contratuais no trabalho e o desprendimento razoável de se ter com familiares e conhecidos.

A escola, costumeiramente um antídoto para os estragos causados pelo tumulto do trânsito e pela hostilidade da vizinhança não bastava para garantir o sustento, mas compensava a desalegria de enfrentar a rotina no atendimento bancário. Hoje, porém, o elixir não funcionou. Madalena se atrasou e foi sacudida pela insistência do telefone assim que entrou na recepção, antes mesmo de tomar fôlego e dar boa noite às alunas aglomeradas junto ao mural. No posto da secretária, ninguém, então, sem alternativa, teve de atender, informar horários e preços, e convidar para a aula experimental das sextas.

Demorou-se com a ligação o bastante para não conseguir chegar à sala antes das alunas e isso parece ter piorado o efeito das condições do solado sobre seu desempenho. A moça de saia roxa e a outra de sapatos vermelhos comentaram o comportamento da professora em tom de fofoca no vestiário, mas aquilo perderia importância para todas assim que guardassem seus pertences e retomassem seus itinerários habituais. Para ela, entretanto, o incidente acentuava o gosto amargo da própria saliva e anunciava mais insônia para a madrugada.

Não sabia por que diabos a secretária teria faltado, mas desejou que fosse uma gripe feroz ou um luto sincero, tamanha raiva lhe causava ter de assumir mais tarefas alheias num dia tão tumultuado como aquele. Sendo a última professora a sair, ela mesma tinha de fechar o prédio e isso a faria perder o ônibus. O descompasso iniciado com o telefonema parecia não se esgotar, mesmo agora já colocando o cadeado na porta principal da escola, sentia-se como quem inicia uma maratona sabendo não ter o preparo físico necessário para chegar ao final e sente o abdômen contraído de fadiga antes da metade da prova.

O dinheiro separado para consertar o sapato iria para o táxi, que não planejava ter de usar. E ainda precisou ouvir o taxista resmungar ao saber do endereço – um colega seu já havia sido assaltado naquele bairro, disse. Ela não respondeu, instalando-se com seu desconforto no banco traseiro e baixando o vidro para não correr o risco de sufocar na vontade de choro e de agredir o motorista ou qualquer outra pessoa que lhe dirigisse o olhar.

O estofamento cheirava a cigarro e o rádio perturbava sua determinação de manter-se ausente. Deixou o olhar perder-se de si para se grudar às cenas que se dissolviam rapidamente com o deslocamento do carro. Viu os luminosos dos bingos e das casas noturnas, o camburão passeando devagar sem se envolver com as flagrantes ilegalidades que desfilavam ao largo. O motorista alertou rispidamente sobre o perigo de deixar os vidros abertos, falou de bala perdida, dos cafetões e traficantes que controlavam aquela zona da cidade, mas nada disso ela ouviu. Coletava as imagens de travestis muito maquiadas, meninos com olhares acelerados e bares enfumaçados cheios de figuras lembrando personagens de filmes violentos. Passava pelo mesmo caminho todo o dia, mas no ônibus sentia-se mais protegida ou então mergulhava na leitura de qualquer revista trazida na bolsa, mas agora os sons da calçada e dos bares fundiam-se com o horário eleitoral gratuito dentro do táxi e com estouros que Madalena não sabia se vinham das ruelas escuras que seriam citadas nas colunas policiais do dia seguinte ou se eram comemorações do futebol. Agressões demais aos seus sentidos, fechou o vidro a tempo de não ouvir os palavrões gritados pela prostituta ao bêbado que lhe batera em plena rua. Não fosse estarem perto de seu endereço o próximo barulho seria sua explosão, quase transbordando da garganta.

Já no apartamento, ainda remoendo a falta de gentileza do motorista, o gasto não previsto, e toda a barbárie latejando na noite, pensou em dar-se a todas as lágrimas acumuladas, mas quando se atirou na rede, os olhos estavam secos e alertas. O pensamento saltitava pela superfície dos seus muitos objetos, pelas almofadas de todas as cores, pelas xícaras deixadas sobre a mesa quando saiu pela manhã. Ali deteve o olhar: quem encontrasse a cena poderia imaginar o café da manhã de um casal, conversas sonolentas recortadas por fragmentos das notícias do jornal e não o resultado da sua preguiça de recolher a louça na noite anterior, fazendo acumularem-se os utensílios e duas refeições. Deixou as raivas subirem como maré ditada pelos ciclos da lua e encarou a mesa desordenada como o insulto que ela tantas vezes substituíra pelo agradecimento cordial aos clientes desaforados do banco. Oferecia aquela rispidez a si mesma, porém.

As xícaras sujas e os farelos de pão sobre a toalha (e se ela olhasse o tecido mais de perto, veria pingos de café manchando a estampa floral) contrastavam com a perfeita ordem da casa – nenhuma poeira sobre os móveis, os porta-retratos harmoniosamente acomodados sobre o aparador, as almofadas de crochê nas poltronas que foram de sua avó. O contraste agudo fez náusea e o choro adiado converterem-se noutra onda de raiva, prestes a produzir avalanche, capaz de arrastar com a força só de sua respiração os atrasos, o solado descolando, os vizinhos de cara amarrada e as malditas xícaras sujas usadas somente por ela e mais ninguém. Arremessou-as à parede e antes que a senhora aposentada do apartamento ao lado pensasse em reclamar porque queria ouvir sua novela, calçou um par de sapatos ainda mais roto do que os guardados na escola e ligou o som num volume inédito para aquela casa. Camarón de La Isla intercalado com golpes vigorosos dos tacones sobre o piso de madeira laminada não bastava para sufocar o som de louças espatifando-se pelas paredes todas. Cansada e espantada com a falta de reação dos vizinhos, mas ainda tomada de uma força insuspeita, Madalena só conseguia pensar que não haveria mais nenhuma xícara para denunciar sua solidão e pensando isso sentiu coragem bastante para não programar o despertador, decidida a não ser vista no banco no dia seguinte, e a misturar-se aos ruídos noturnos daquelas ruas percorridas há pouco tempo.


Créditos da imagem:
Sapatos de bailaora, por jorge paolin

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