I Concurso Literário Benfazeja

Eu sou





Essa sou eu. Um bebê sorridente e de olhar triste e amendoado, algo brilhante. Cachos proeminentes, tão ralos que têm de ser sustentados com sabonete líquido no alto da cabecinha recém-nascida, um ano apenas, vindo ao mundo para dizer a que veio. Essa sou eu. Nascida no quarto 221E da Beneficência Portuguesa de Pelotas, com 47 centímetros, 32 de cabeça e 31 de tórax, pesando 2.500 gramas, de apresentação cefálica, cor rósea e de movimentos respiratórios espontâneos. Essa sou eu, no dia do aniversário de um ano, muito pacata no colo de adultos, balão e bolo, vela acesa e retratos, vestido branco com bordas rosadas. Eu sou um bebê. Essa sou eu. Aventalzinho xadrez preto e branco com bordados em vermelho e camisetinha branca no estúdio do retratista, em três posições diferentes para não deixar dúvidas - três sorrisos – de que era feliz. Essa sou eu. A foto amarelecida com pai e mãe e irmãos recém-nascidos, de cachos já abundantes enquanto sorria para o nada, pai e mãe ao lado, tão presentes, um sol de soslaio para dar a hora da tarde, as bochechas vermelhas refletidas na camisetinha de listras horizontais. Eu sou a irmã mais velha. Essa sou eu. Vestido de prenda azul e branco, tranças negras amarradas com laço de fita vermelho, flor de tecido presa acima da orelha por um grampo escondido, sorriso franco e envergonhado, a faixa de ‘Prenda-80’ ostentando uma vaidade que ainda não tinha, ao lado da menina mais bonita do colégio, tão diferente de mim, que sonhava em ser se nascesse de novo algum dia. Eu sou tímida. Essa sou eu. À porta da puberdade, os cabelos levemente revoltos e de um negro nítido, escancaradamente sorridente ao lado da avó e dos irmãos e primos mais novos, bolsa de náilon branca a tira-colo acima do ombro esquerdo, o blusão vermelho e branco com corações arrematado por um colar de pérolas, braço estendido por sobre o ombro da avó e do primo de meses enquanto o outro apenas enlaça a prima pequena, de pé diante de mim. Eu sou toda amor. Essa sou eu. Festa de quinze anos cheia de desconhecidos, ao redor das poucas amigas hoje desconhecidas, vestido de cetim azul com ombreiras largas e babados soltos à roda, os primeiros saltos altos, batom rosa ultrafixante levemente desbotado, o irmão abraçado a mim enquanto rio da minha pouca firmeza, as amigas levemente incomodadas, a festa que nunca acabou na memória, Legião Urbana tocando no três em um para dançar até meia-noite. Eu sou pura. Essa sou eu. Moça sorridente na foto de fundo azul falso, a cabeça levemente recostada para o lado direito, parecendo assentir para o fotógrafo, colar de pérolas pequeninas enroscado ao redor do pescoço, blusa negra de ombros caídos e cabelos cacheados caindo por cima dos ombros, olhos brilhantes encimados com rímel e lápis negro. Eu sou solitária. Essa sou eu. Mulher de lábios carnudos e olhos tristes sentada na chaise vermelho-carne de veludo, vestido preto e meias pretas de náilon, as pernas levemente dobradas denunciando o comprimento da anágua, as mãos pousadas sobre o colo, a direita sobre a esquerda, os dedos soltos, denunciando leveza. Eu sou adulta. Essa sou eu. Mulher madura de cabelos levemente esbranquiçados, a pele rebocada pela base de fina camada, a boca natural semi-aberta, óculos de grau de armação marrom escuro à frente dos olhos, o moletom de ginástica com as iniciais da faculdade da Califórnia, calça de abrigo azul escura e meias soquete cinza sentada à frente do computador, pernas dobradas em x, olhos fixos na tela branca, os dedos trêmulos digitando estas linhas, no dia em que pela primeira vez refletiu o que sempre fora, e que tudo o que fora passou inevitavelmente por seu filtro conceitual: eu sou isso, eu sou aquilo. Eu não sou o que você vê. Eu sou aquela que escreve desde os seis anos de idade. Eu sou aquela que se derrama pela caneta, e pelo papel pardo, e pela tela do computador, e pelo blog, e pelo livro publicado, e por todos os que ainda não estão, e pelas letras de um português parco que teimo em sustentar. Eu sou aquilo que fala e lê, e mostra e escreve, e escreve e tantas vezes escreve até que um dia todo o planeta finalmente entenda que eu sou aquilo que é, antes e acima de qualquer reconhecimento do outro, e apesar de toda a falta de coragem que eu possa um dia ter esboçado, e todo o meu mau-jeito de ser. Eu sou aquela que escreve. Eu sou escritora. Eu sou escritora. Eu sou escritora.

Essa sou eu.
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Créditos da imagem:
Quadro Mariana, de Frida Kalo 

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