I Concurso Literário Benfazeja

Nosso admirável mundo paralelo






Elas estão dominando o mundo. Na “Idade da Pedra” da Internet democrática eram o Orkut, a febre, e uma e outra comunidade não tão conhecida. Esse tal de Orkut abriu uma fresta, mas o Facebook – que não por acaso criou o homem mais rico do mundo – deu um chutão na porta. Na porta que divide a vida privada da vida social, a realidade da fantasia. Aí tem Google +, Instagram, Twitter, Linkedin, Badoo, Yahoo! Answers, Ask.fm, YouTube, Four Square, Pinterest, e mesmo o Whats App parece um tipo de chat aprimorado que se tornou uma rede social – mais privada, mas ainda bem sociável e ampla. A cada dia aparecem novas delas, as redes sociais, e de vez em quando algumas morrem tragicamente. Como o saudoso Orkut. No corredor da morte por um bom tempo, foi oficialmente executado com requintes de crueldade deixando milhões ou talvez bilhões de órfãos. Ele foi um tipo de “pai”.

Seja como for, é fácil ver que estamos cada vez mais nos agrupando. Virtualmente, saliente-se. Atrás de nossas telas. Procuramos interagir com pessoas que muitas vezes não podem nos ver – ao menos no dia a dia – ou até que nunca nos viram pessoalmente. Alguns desses que nunca foram contemplados por nós em carne e osso acabam se tornando grandes amigos, confidentes, até namorados/as, um dia quem sabe noivos/as, maridos e esposas, parceiros de trabalho. Os riscos de exposição existem, ouvimos histórias ameaçadoras por aí, mas e daí? As pessoas colocam fotos e fotos e informações incessantes de suas vidas. Detalhe: as fotos e informações que elas querem colocar. Que elas acham que devem mostrar.

As redes sociais acabam sendo um tipo de filtro da nossa vida. Sem querer, ou por pura intenção mesmo, deixamos transparecer aquilo que gostaríamos. Outros aspectos podem ser omitidos ou até deturpados. Buscamos, no fundo, popularidade. E também compreensão. Ei, eu estou aqui! Essa é minha vida. É assim que eu penso. Alguém mais pensa como eu? Mais curtidas, mais seguidores, mais visualizações, queremos, a maioria de nós, não 15 minutos de fama mas uma vida interessante e até invejável – virtual. Acaba que as pessoas às vezes nem sabem quem é o personagem das telas e quem é o cara do dia a dia. Isso não vale pra todo mundo, é claro. Tem gente que preza muito pela privacidade e, digamos, a “vida analógica”. Além dos celulares, tablets, das câmeras, das redes sociais onipresentes.

E aonde tudo isso me leva? A ponderar o quanto somos vítimas de mal-entendidos por causa das redes sociais. E também de coisas criadas com muita intenção – nem sempre reais – a fim de atingir determinados objetivos. Os abalos nos relacionamentos amorosos são só uma ponta bem visível do iceberg. E as ideias que formamos das pessoas, apenas por vermos suas postagens, suas fotos, suas festas e viagens? Seus pensamentos políticos. Filosóficos. “Essa é uma pessoa muito retrógrada.” “Essa é uma pessoa liberal.” “Essa é uma pessoa culta.” É verdade que nossas opiniões, inclusive virtuais, nos dizem bastante de quem somos. Mas o quanto nossas opiniões e imagens sobre certos assuntos, em um território selvático e errático como o da Internet, onde quase tudo pode e onde tudo o que parece é, nos falam sobre nós? E nossas fotos de momentos cuidadosamente escolhidos? (Tem aquelas fotos feias ou indesejáveis nas quais alguns amigos ousam nos marcar; mas geralmente as pessoas se combinam antes mesmo de postar, um tipo de divulgação coletiva da vida, vamos documentar o churrasco e a praia, vai bombar no Instagram). O negócio é que a gente já faz as coisas pensando em “como vai ficar na foto” e “o que escrever no Facebook”!

Mas eu falava de mal-entendidos na rede. Aquela pessoa que pensamos ser uma chata em uma rede social, pode ser maravilhosa “lá fora”, com muitas ideias, uma vida tão agitada e colorida que não lhe dê nem tempo de postar sobre ela. Dos que parecem ter uma vida onde só há festas e sorrisos, a rede está cheia: em fotos e comentários, uma vida repleta de agitação e segurança, e até luxo, mas no fundo as cerca um mundo solitário de ilusões passageiras; a Internet é sua tentativa de autossabotagem ou de engano deliberado dos outros. Uma pessoa que parece extrovertida na web, postando várias coisas e tendo posicionamento firme, “lá fora” pode ser alguém meio “fora do ninho”, um estranho, um quase mudo ou então simplesmente um idiota. E as pessoas mais interessantes? Aquelas que são tão interessantes que sabem que não cabem em uma rede social. Eu e uma amiga – que é interessantíssima e foge das redes sociais – temos uma teoria de que as pessoas mais interessantes não têm nem tempo e nem meios para mostrar quem são e a vida que levam através das redes sociais. Elas simplesmente não se preocupam com isso: o que vão pensar delas quem mal as conhece, o quanto precisam mostrar que estão vivendo e estão bem. Essas são pessoas interessantes, mesmo. Elas conseguem fugir do que todo mundo faz e da tentação da admiração infindável.

Vivemos uma febre de mostrar quem somos e o que fazemos. Já há tratamentos para vício em redes sociais – vício em mostrar –, até uma campanha patrocinada pela Coca-Cola, que é viciante também. Guy Debord, um filósofo francês, chamou nossa era – na época dele, o comecinho da Internet, ele perdeu o melhor – de “era do espetáculo”, na qual qualquer mínima coisa da vida privada tende a se tornar um show para uma plateia. A imagem de uma pessoa se afogando que, em vez de ser ajudada, é cercada por cliques de celulares e câmeras, é uma figura bem irônica disso: todo mundo quer “colocar nas redes sociais”, mas e o mundo lá fora? Muitas vezes fica, sim, esquecido. Aqueles que passam os dias conosco, aqueles que mais amamos, que realmente nos conhecem e que nos lembram quem de fato somos. Aqueles que estão lá quando a gente realmente precisa, sabe?

Não temos controle sobre o que vão pensar de nós, ainda mais nas vagas e mutantes redes sociais. Isso é bobagem. Mas que estejamos atentos para a possibilidade de que o que vemos nas redes sociais esteja muito, mas muito distante do que algumas pessoas realmente sejam – para melhor ou para pior, ou apenas para algo diferente. Isso vale para nós também. Afinal nós temos sido, há milênios, muito mais que imagens e palavras. Somos almas.



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"Geração Redes-sociais", por Pedro Mendes Photo

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