I Concurso Literário Benfazeja

Recordações da Casa Amarela

Relâmpago, nº 3, 1998, pp. 37-57

RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA
A Poesia de Ana Luísa Amaral (i)

Por Osvaldo Silvestre



Há alguns anos atrás lamentava-se Adília Lopes, com a sua candura à prova de bala, por não ter tido ainda uma recensão de Joaquim Manuel Magalhães. Sendo a sua poesia o que é, e oferecendo-se cada vez mais como albergue espanhol de contos infantis em releitura politicamente incorrecta, é de crer que Adília continuará a ter razões para se lamentar na próxima década.

Não tendo tido ainda direito à atenção crítica de Joaquim Manuel Magalhães, Ana Luísa Amaral, diversamente de Adília, foi contudo anunciada ao pequeno mundo das letras lusas. Fê-lo Maria Irene Ramalho de Sousa Santos num número da Via Latina de 1990 . O que Irene Ramalho anunciou, nesse texto, foi em boa verdade o advento do poeta (ou da poeta: tal era parte substancial da matéria em pauta nesse artigo) por que o feminismo português há tanto ansiava, após o caso, mais anedótico do que outra coisa, de Florbela (refiro-me ao facto de a reivindicação de um seu potencial emancipador se ater quase em exclusivo ao seu exemplo - isto é, à sua biografia - dispensando a obra, que hoje aliás conhece um devir entre o adolescente e o kitsch; o mesmo, no que toca ao percurso de exemplo, é válido, mutatis mutandis, para Natália Correia).

Sendo Ana Luísa e Adília as duas maiores revelações da poesia portuguesa na corrente década, este tão diverso processo de canonização é bem emblemático das opções estéticas e axiológicas que as suas obras corporizam. Adília é a nossa autora mais «representativa» (o conceito quadra-lhe demasiado bem) da fase pós-pop (digamos que ela é a um tempo a nossa pop e o seu esgotamento - e daí a sensação de que recentes «revelações» pop como Tiago Gomes no fundo venham antes da Adília que os seus poemas pressupõem e que a estes executa): os seus textos são ostensivos objectos nulos que se não distinguem nem pela arte de que (supostamente) se não constroem, nem pela linguagem, que não anda longe do português das Amoreiras ou do Colombo. E no entanto, a menina prendada que nesses poemas ocupa o lugar vazio de um enunciador arquetípico - e recorrente em quase todos os seus textos, ainda que dado a mistificações de identidade e travestimentos -, é bem uma menina precocemente desprovida de ilusões e para quem o jogo textual é jogado com a perversidade balthusiana de quem nunca perde o controle de si, do texto e maximamente do leitor (ii). Um operador tão estratégico e poderoso como o kitsch desempenha na sua obra - e desde logo nos títulos, cuja arte domina como ninguém - a função, entre outras, de tudo reduzir a histórias nada exemplares da pequena burguesia universal recodificada localmente (se não mesmo paroquialmente) entre as tias Genovevas de Júlio Dinis e as Senhoras Rosas dos Pátios das Cantigas do lusitano salazarismo eterno.

Esta poesia magra ou emagrecida - de Poético, de Temas ou de Valores - não parece de facto disponível para suportar um discurso emancipador, seja ele o do modernismo ou o do feminismo. Não que ela recuse a «condição feminina», que aliás aborda, ao seu modo hiper-realista, em detalhes de intimidade suja, como sujo ou integralmente dessublimado é este universo surpreendentemente festivo; mas porque precisamente um dos seus temas, se não o seu tema, é a «condição feminina» (sintagma hoje razoavelmente kitsch, como aprendemos em Adília) enquanto rasura total do épico ou sequer do nobilitado pelo longo passado de discriminação (no que interioriza, digamos, essa não-distinção do feminino na História). E no entanto, esta poesia em que o sexo é uma armadilhada psicanálise em bruto, é também uma poesia com género: feminino, muito obviamente. Mas também, diga-se, muito cinicamente. É-o, em todo o caso, de um modo excessivo para que uma narrativa da emancipação como a feminista, entre nós ainda em fase de construção, e por isso alimentada a proselitismo, a possa facilmente admitir ao seu convívio.

2

Tal não é de todo o caso de Ana Luísa Amaral. A sua ascendência tem um perfil canónico reconhecível, de Blake a Dickinson ou a Dylan Thomas e à lição crítica do modernismo anglo-americano ou do declinado em português, esta última contudo entre as aspas de quem presta uma reverência inevitável e, por isso, largamente nominal. Acrescente-se uma genealogia feminina e feminista que, além de Dickinson, pode incluir Adrienne Rich, ou, mais recentemente, Luíza Neto Jorge (ii) . Ao contrário de Adília Lopes, cujos poemas se desejam análogos de produtos de linha de montagem (uma linha que montasse, não automóveis como a Christine de Carpenter/King, mas antes Trabants: ou melhor, uma Christine que se volvesse instantaneamente Trabant, como no conto de fadas a carruagem em abóbora), a poesia de Ana Luísa Amaral não esconde - pelo contrário: acentua - ser artesanato doméstico. Chamemos-lhe tecnologia pobre, anacrónica, mas (ponto decisivo) não ultrapassada. Como no primeiro poema de Às Vezes o Paraíso, a cena da escrita é reencantada em permanência por uma crítica do fetichismo da técnica (qualifiquemo-lo de moderno) que realça a dimensão de traste velho dos instrumentos e, por arrastamento metonímico, do ofício: «Um romance de amor por esta noite / em lua nevoenta - e uma máquina velha / de escrever» (p. 9, itálico meu) (iii).

Eis talvez uma via rápida de acesso à obra de Ana Luísa, por meio da qual poderemos ser conduzidos até ao poema «Técnica vs Artesanato», do seu primeiro e notável livro, Minha Senhora de Quê (1990). Aí, a oposição estabelece-se entre o computador, «segura e galopante técnica» (p. 38), e a escrita caligráfica, «o papiro, o pergaminho», o «tempo parado», enfim, «a poesia conquistada / a vício» (id.). Artesanal e, como se verá, doméstica, a cena da escrita é contudo na poeta recodificada em sentido não, anti ou em rigor pós / modernista, desde logo porque a metafísica moderna, ou pós-mallarmeana, da página em branco e da poesia como ressalva órfica do mundo sofre nos seus textos uma acentuada rasura. Essa rasura é tão mais significativa quanto a cena da escrita é um dos temas queridos desta obra, que assim se filia, de modo tão ostensivo quanto elusivo, na dignidade canónica do tema moderno por excelência. Poderia dizer-se que nesses momentos esta obra se não esquece da «ansiedade da influência» que aprendeu nos livros de texto da Faculdade de Letras. Não fora o caso de a cena da escrita, em que pese a tudo o que deve a uma tópica do poético na modernidade, surgir na obra de Ana Luísa (i) assaz desprovida de ansiedade, ou pelo menos bastante desdramatizada em relação aos founding fathers, e (ii), por via do peso repressivo destes últimos, ser antes de mais reencenação feminina e feminista da produção e do texto.

Do primeiro ponto, proponham-se dois exemplos. De Minha Senhora de Quê o poema «Entre (Dois) Fogos» em que a poeta ensonada («faz de conta que o sono / é de nós todos: noite caneta / mão e piscar de olho» (p. 25)) vai devaneando um mundo imaginário no borrão das letras:











E do lado de lá: elefante
sombrio, pássaro azul
a passear pelo poema fora,
caneta em rodopio ou bailarina (id.)


Até que por fim, baixada a guarda da vigilância poética («faz de conta que o olho / adormeceu»), o poema se presta a todas as apropriações:











Neste navio: o palco de silêncio
abertas escotilhas, as velas des-
fraldadas. E a mão é de pirata, meio-
-ladrão, abordagens a meio, seduções
meio minhas (p. 26)


Ao contrário do que possam sugerir as aparências, estamos bem longe da diet/ética do silêncio imposta à poesia novecentista pelo magistério mallarmeano (e stevensiano, para recorrermos a uma referência do universo cultural americano de que a autora é íntima). De facto, em Ana Luísa essa dietética distende-se numa desdramatização que nos propõe o poema como um «palco de silêncio» não agónico. O poema não é nela um bibelot de inanidade sonora, mas antes um dispositivo celebratório da ficção, não absoluta, como quereria um Stevens, mas sempre relativa (coisa de pirataria e meio-ladra), que é a contrafacção artística. Em vez de uma explicação órfica do mundo, no «palco de silêncio» que o poema se disporia a ser, a epoché irónica dessa alta demanda, entre o sono e o sonho. Esta refutação da ontologia negativa conatural à concepção modernista do texto e sua produção surge tropada como forma incontida no palco cerrado do Livro-Mundo: «abertas escotilhas, as velas des- / fraldadas» (atente-se no poder de sugestão, rítmico e semântico, do enjambement que, quebrando palavra e verso, reforça essa ruptura das fronteiras do texto).

Eis, pois, uma voz que nos fala de entre-son(h)o, fazendo-o como quem desiste da tão moderna mística beata do texto; tal desistência, porém, não segue o rumo de uma radicalização dessa negatividade elocutória, como é possível encontrar no último Carlos de Oliveira ou no primeiro António Franco Alexandre. Pelo contrário, o texto é agora re-saturado de entidades - elefante, pássaro, bailarina - que, na sua referência «infantil», parecem ansiar por uma regressão a um estádio propriamente efabulatório. Esclareça-se, entretanto, que a autora é lida o bastante para saber que tudo é «imitações / de nada» («Minha Senhora a Nada», em Epopeias, p. 43). A sua escrita, todavia, resiste à nadificação secularizando de forma drástica a teologia modernista do texto sem reverso: e assim, a erótica mística de um Mallarmé passa agora a uma erótica profana que recusa as virtudes da ética modernista da nudez: «Seduzir o papel: uma lente / melhor do que a de vidro / é esta de cerrar a meio os olhos» (MSQ, p. 25). Do mesmo modo, a ascese do mundo na letra magra e recortada contra o vazio branco é agora substituída pela espessura borratada do texto: «As letras tão bonitas: borrão / que a pouco e pouco ganha forma» (id.). Refira-se, enfim, que este texto gerado entre o torpor e o sono não ultrapassa em rigor a fase do borrão, pois o mundo do texto ganha forma na razão directa do afrouxamento da vigilância do poeta, criatura «entre (dois) fogos», profissional de contrabando. Entre-dois, esta poeta sabe que nem o parti-pris da referência, nem a histeria da sua rasura são posições habitáveis: e responde com a calculada indiferença de quem adormece sobre o assunto.

3

Da secularização à dessacralização (se não mesmo à profanação) vai um passo para o qual esta poesia se mostra em extremo disponível. Tomemos o exemplo do texto «Poses do Desconforto», de Epopeias. Trata-se agora de esvaziar a negatividade da cena modernista da escrita, reforçando parodicamente os laços entre as materialidades gémeas da escrita e do corpo:











É ridículo eu estar aqui
sentada,
o papel branco em frente,
caneta nem sequer
em frenesi:

faz mal à vista,
faz mal aos nervos,
faz mal aos rins. (p. 21)


Será isto writing (and) the body? Digamos que nesta encenação, pelo menos, o corpo é quem paga a metafísica verbicêntrica da modernidade, pois torna-se aqui bem clara a dimensão patológica da (fisiologia da) escrita, de que tanto texto moderno é a um tempo produto e sintoma. O intuito (auto)derrogatório do texto torna-se evidente precisamente pela pormenorização, em regime de realismo «baixo», dessa fisiologia «arruinada» ou triturada por uma Razão meta/textual que dir-se-ia pedir, da enunciadora, a explicitação das suas marcas femininas de género:











E ridícula, embora,
agonizo-me
assim,
a folha escura:

arruinando
rim remanescente,
enchendo-me de nervos
e miopia. (id.)


Esta dessacralização, pela via crucis do corpo, das concepções poéticas do Alto Modernismo, é a meu ver premissa e/ou efeito de uma concepção feminina e feminista do poético, que muito ultrapassa em Ana Luísa a questão da marcação linguística do gender. Gostaria pois de aproximar a sua obra das posições de uma autora como Jane Marcus, na sua reivindicação do potencial crítico do mito de Penélope: trata-se de enfatizar a produção textual como parte integrante de uma tradição do fazer do objecto, enraizado na experiência de um quotidiano dominantemente doméstico. E não diria despropositado propor-se a sua obra como uma ginopoética que, em todas as suas dimensões, questiona o impacto do gender nas modalidades, possibilidades e limites da representação literária.

Falando de Penélope, comecemos pelo tricot: «Mais uma volta no tricot do verso / e outra malha que cai» («Utensílios», de MSQ, p. 54). A metáfora é aliás recorrente e podemos encontrá-la ainda em «Narrações (ou nem tanto)», de Epopeias («Onde o verso, cansado / de regurgitar, / engolisse as laçadas / do bordado / em pontos de rimar», p. 30), texto em que os buracos negros do sentido surgem descritos como «buracos no tricot» (p. 31). Ou ainda, no mesmo livro, o poema «Quase de Tecelagem»: «As coisas de tear à minha frente, / bordado por fingir» (p. 33) (iv) .

Procedimento análogo ocorre com um campo semântico contíguo, nos termos da política sexual mais tradicional: o da culinária. Tomemos um dos textos mais tecnicamente exuberantes do primeiro livro de Ana Luísa, «Ritmos», cujo fundo cantabile poderia provir do popular «A apanhar o trevo / o trevo do chão»: «E descascar ervilhas ao ritmo de um verso: / a prosódia da mão, a ervilha dançando / em redondilha» (p. 48). Ou, de Epopeias, o caso maior de «Artes Perdidas», em que a enunciadora receia «Perder o jeito / das claras em castelo / pelo verso» (p. 47), ou











Deixar tombar o êxtase
da cebola a fritar
angustiante
e em vez: montar
arranha-céus de linhas
com encavalgamento
(certo)


É este aliás um texto decisivo para o entendimento quer da poética quer da política sexual da autora. O percurso autobiográfico, da arte culinária à arte poética, pode ser obviamente lido como uma típica narrativa de emancipação feminista, na medida em que, enquanto conquista da literacia, ele contém em si a filogénese da mulher no Ocidente. No entanto, não só é nítida a consciência da perda acarretada pelo esquecimento da arte culinária, como esta arte é objecto de um investimento que a dignifica ontologicamente: êxtase e angústia, atributos do ser no mundo, são agora deslocados para o universo in-digno da culinária (e há-de reparar-se que este fritar de cebola é bem uma versão paródica da operação modernista de esvaziamento da referência). Inversa, ou reversivamente, a poesia pode ser caracterizada como arriscada arte culinária: «faca lançada / ao ar em golpe culinário / mais nascente; / prestidigitador de perigos / mil» (p. 48).

É talvez altura de, por razões de ordem profiláctica, citar um famoso juízo sexista do new critic R. P. Blackmur sobre Emily Dickinson: «não era um poeta profissional, nem um amador; era um poeta doméstico que escrevia infatigavelmente, como algumas mulheres cozinham ou tricotam» (v) . A obra de Ana Luísa Amaral é, digamos, a ilustração literal deste enunciado: uma poeta doméstica (embora não apenas) que escreve como mulheres cozinham ou tricotam. Curiosamente, ou talvez não, é isso que dela faz uma obra desviada na correnteza contemporânea da nossa poesia, recheada de poetas sabedores de arte poética o suficiente para saberem não só o que é a poesia, como ainda e sobretudo o que ela não é. Ora, ao contrário de uma persistente e muito difundida ilusão crítica, o poético vem sofrendo entre nós um drástico estreitamento dos seus atributos, definindo-se numa esquálida banda central do registo literário, a que se acolhem aí uns 90% da comunidade actual de poetas. Nem Adília Lopes nem Ana Luísa Amaral têm lugar nessa faixa (embora Ana Luísa, nos seus momentos menos interessantes, que são os do registo lírico mais puro e menos medi(t)ado, pudesse nela caber). E não deixa de ser revelador que poetas grandes como Sophia ou Fiama possam sofrer hoje do efeito de atracção desse buraco negro feito do cruzamento de um tardo-modernismo volvido puro tecnicismo («tensão formal») com um pós-modernismo entendido como retorno ao útero da forma clássica, ainda que em regime debilitado - e que Ana Luísa venha ferir a nota estridente da «vulgaridade» doméstica (ou de uma estética assumidamente feminina) neste concerto consensual do poético. De facto, quem diria que a encenação de uma condição de mãe poderia ter a tal ponto um valor de perturbação das representações do poético e do feminino? Decerto, falta-lhe a capacidade de sublimação que numa Fiama faz do concreto uma reverberação de arquétipos. Mas é sem dúvida esclarecedor, quanto ao devir débil e timorato do feminismo entre nós, que esta obra seja ou desmerecida por feminina (tricot e cozinha) ou elogiada naquilo que tem de menos individuador, qual seja a subtileza com que encena a sua escrita, que é precisamente menos interessante quando, despojada da sua prática de writing by gender, mima a koiné contemporânea na sua reencenação de uma tópica definível como mallarmeana (embora numa versão esteticista desprovida da ressonância agónica característica do patriarca). E ademais, porque não admitir que a Fiama (ou a Sophia) falta a capacidade de Ana Luísa para enraizar o texto na sua mundanidade?


4


Regressando à questão em pauta, conviria abordar um ponto que muito contribui para o perfil singular desta obra: a reivindicação de «um espaço que seja seu» e aquilo a que chamarei o devir-fêmea do espaço (doméstico) e da poesia. Que a questão é central, evidencia-o o facto de o primeiro poema do primeiro livro se intitular justamente «Terra de Ninguém» (título que se diria evocar, em regime «privado», o da obra No Man's Land de Sandra Gilbert e Susan Gubar, sem o pun que a tradução elimina). Na esteira do texto fundador de Virginia Woolf, a poeta encena desde o início a reivindicação de «um quarto que seja seu», aqui ainda indeterminado topograficamente: «Digo: espaço / ou uma receita qualquer / que seja em vez» (p. 7). O gender desta poesia declina-se porém de forma mais nítida no seu Orfeu volvido «receita». O poeta é aqui manifestamente fêmea: Orfeu é antes Cinderela com varinha de condão, integrando as suas poções uma arte que diríamos culinária - uma arte de receitas.

Eis-nos perante a ambiguidade mais marcante de uma política feminista do espaço: o quarto ou despensa duramente conquistados reproduzem afinal a estrutura patriarcal da economia política familiar. Nesse sentido, geram uma ambígua mais-valia, já que são sempre limitativos ou insuficientes e marcados por um desejo de atopia (uma terra-de-ninguém):











Um espaço a sério
ou terra de ninguém
que não me chega
o conquistado à custa
de silêncios, armários
e cebolas perturbantes (id.)


O reduto construído «A síncopes de mim» (admirável imagem, que exprime o essencial da arte versificatória da autora) não chega: «nele definham / borboletas e sonhos / e as mesmas cebolas em vício / se repetem» (id.). A atopia que viria substituir essa topografia patriarcal seria um texto que se dispensasse do seu enunciador e, com ele, do seu contexto penalizante:











Digo espaço
ou receita qualquer
em vez de mim (id.)


Este sonho de um texto suficiente porque terra de ninguém é uma paradoxal, se não aporética, proposta do espaço do poema como neutralização do jogo de diferenças de género. A sua estrutura aporética reside em que tal neutralização só é realizável, como o próprio poema evidencia desde o título, numa terra de ninguém. O enunciador, que rasura as marcas linguísticas do seu género, não cessa entretanto de exibir os signos topográfico-culturais desse mesmo género, no exacto momento em que os declara limitativos e aspira à sua superação no espaço atópico do poema. Ora, este enunciador que propõe a sua substituição por um texto «terra de ninguém» sabe, de uma ciência mínima do discurso, que nunca a sua «desaparição elocutória» pode ser levada ao seu termo; pois em rigor uma tal desaparição não dispensa um enunciador que a dite. E assim, a desdramatização que o espaço-outro do poema traria à dramatização de um espaço marcado a ferro e fogo pelo género, não tem onde verdadeiramente sustentar-se, já que esta terra supostamente de ninguém que é a linguagem poética (suposição muito tipicamente modernista) não deixa de prestar reverência a esse Pai invisível e omnipresente a que damos o nome de Gramática (e nada mais gramaticalizado, i.e., sonhando-se reduzido a gramática, do que a modernista «terra de ninguém»). Logo, esta «receita qualquer» é sobretudo receita cega, lugar da revelação de um bloqueio situado entre o género e o neutro, o qual nos devolve à materialidade abstrusa de um espaço textual incapaz de suspender as condições «genológicas» da sua enunciação.

Posto isto, passemos ao quarto, lugar «histórico» do devir feminino (e feminista) do espaço. Podemos citar do segundo poema de Minha Senhora de Quê, significativamente intitulado «Espaços»: «As nuvens não se rasgaram / nem o sol: só a porta / do meu quarto» (p. 8). O poema poderia intitular-se «Às Vezes o Paraíso», título do último livro, no qual a última secção, «A Leste do Paraíso», é um momento mais do revisionismo que a autora vem lançando sobre as representações bíblicas da criação. Nada do furor divino representado maximamente por Miguel Ângelo na Capela Sistina: apenas uma porta abrindo-se sobre outras portas. Ou seja: o sublime parodiado pelo doméstico (e, de facto, qual deles mais domesticável?) nesta cosmogonia compactada e profana. Noutra perspectiva, um mundo à escala dos seus habitantes, no qual todos os dias se franqueia a porta do Paraíso.

O «mundo profano» da poeta regressa num dos seus textos emblemáticos, «Metamorfoses», ainda do seu primeiro livro. Trata-se agora desse lugar grávido ente todos na topografia da casa, a despensa:











Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa.

As outras dividiam-se
por sótãos,
eu movo-me em despensa
com presunto e arroz,
livros e detergentes. (p. 31)


Vai sendo tempo de assinalar o quanto é esta a topografia canónica da teoria feminista contemporânea, entre armários, quartos, despensas e sótãos onde «as outras» (as recenseadas por Gilbert e Gubar no clássico The Madwoman in the Attic) ocultavam a sua prática de escrita. O poema deve ser lido na sequência do anterior «Espaços», pois onde aquele sabotava o sublime das representações pictóricas da Criação, este recupera o Fiat bíblico, começando por secularizá-lo em electricidade. À luz eléctrica da teoria crítica feminista, a despensa é o lugar onde apreendemos o devir-fêmea do espaço: é espaço materno e sobredeterminação maternal da escrita de uma mulher que é poeta e mãe, como vários poemas seus nos lembram (iv) . Recordemos aqui a afirmação de Irigaray segundo a qual ser mulher é também, e inextricavelmente, ser mãe. O que este poema nos sugere é, pois, a dimensão maternante da poesia e da poeta.

Estas «Metamorfoses» são contudo uma nova revisão de Orfeu em clave de magia. Pois Cinderela regressa no final, reencantando o universo dessublimado da despensa:











Que a luz penetre
no meu sótão
mental
do espaço curto

E as folhas de papel
que embalo docemente
transformem o presunto
em carruagem! (id.)


Este Orfeu-Cinderela, entretanto, é já o poeta reconfigurado maternalmente, escrevendo como quem «embal[a] docemente» um filho. Não só toda a mulher é mãe como o poeta (que, lembrava-nos em tempos Barbara Johnson, pode escrever da posição materna independentemente do seu género), ou, neste caso, a poeta, é mulher por isso que é mãe (dá à luz folhas de papel), e não ao invés.

Rematemos este ponto com o poema «Diferenças (ou os Pequenos Brilhos)», de Às Vezes o Paraíso. Trata-se agora de imaginar a morte da poeta e suas consequências, sendo a principal, neste contexto, a esterilização do devir-fêmea do espaço doméstico no lugar mesmo do seu desdobramento maternal:

(…) Quando eu partir,
as coisas ficarão como devem ficar.
Perder-se-á, é certo, da cozinha
o seu nível onírico e de inspiração:
nunca mais o fogão a dizer versos,
nunca mais o fogão: sem ser, sendo, fogão. (p. 83)


5

Do espaço doméstico ao espaço textual, o devir-fêmea opera metapoeticamente em dois textos centrais na obra de Ana Luísa Amaral, ambos construídos por meio do recurso à figura materna da casa: «Era uma Casa Branca (Variações)», de Minha Senhora de Quê e «Exercício (em Amarelo) de Texto e Reescrita», de Às Vezes o Paraíso. A poeta escreve a casa branca do texto, determinando-a indeterminada o suficiente para ser ela habitada variamente:











Era uma casa branca,
Que me chegue: no centro de pinheiros
Que me chegue que ela seja sem ser
À sua forma e no seu tempo (…) (p. 9)


Ser sem ser, a casa branca é «Figurativo corpo ausente / só figuras de dentro ao gosto de quem ler» (id.). Ainda assim, esta oferta ao leitor segue o regime dúplice do imperativo da obra aberta, a qual exige ao leitor uma leitura exigente, configurando-o previamente. Eis, pois, o imperativo categórico da não-categorização:











(Só não categorizem: não façam dela o centro
a luxúria maior da nostalgia
Válido assim: era uma casa branca.
E tudo o que lá for reencontrado:
Sintaxes e sentidos. E magias) (p. 10)


Mais uma vez, a metafísica moderna do texto é descentrada, no mesmo gesto com que se recusa a reificação do espaço nos termos da geopolítica sexual nele cristalizada. A casa branca é antes de mais casa em branco, texto disponível para todos os investimentos, dos passionais aos críticos, ambos operando sobre essa disponibilidade memorial que define a própria antropologia da casa:











Terá depois, se se quiser, um sótão
onde tudo é possível:
desde gaiolas finas como rendas
até linhas cruzadas de filmes de terror
alguns livros manchados:
Ulisses pela água cor de vinho
Virginia Woolf e as ondas de há cem anos (p. 10)


Este poema surge-nos «reescrito» no último livro da autora, agora intitulado «Exercício (em Amarelo) de Texto e Reescrita». A casa foi entretanto pintada de amarelo e é mais habitável do que a primeira, cujo destino aliás fora o fogo: «[uma casa branca] com anjos e demónios no centro dos pinheiros / cor de fogo / dançando em roda cinzas que eram / brancas» (p. 11) (vii). Na casa amarela, o drama modernista da produção textual tornou-se uma recordação de tempos idos. Os pinheiros que, esguios e austeros, emolduravam a casa branca, foram substituídos por «uma acácia muito bela desconjuntando o terreno, / invadindo o corpo todo dos seus jardins junto ao mar» (AVP, p 57). E a sintaxe elíptica e o verso cortado abruptamente foram substituídos pela discursividade do verso longo e encadeado em harmonia musical. A casa amarela, dir-se-ia, é uma construção contra a natura da poeta, deixando-a por isso mesmo perplexa. Resta porém saber em qual das casas mora o recalcado que assim retorna:

E tão anti-Régio e eu, tão anti-rima e balada, [a casa amarela]
e tão contra o mais antigo que assim renasce outra vez:
de quando há anos falei de uma casa muito branca
rodeada de pinheiros, quase thor em demasia,
re de quando reli por ler a toada mais toada
que me dera que fazer, muito mais que a tabuada
que me custou a aprender, que me custou a saber
muito mais que a casa branca. (id.)

«Por isso», diz-nos o enunciador, «a casa amarela, / coitada, é o que se pode, nestes tempos mais modernos [leia-se pós-modernos], / em que o verso foge e ruge, e range e teima em fugir» (pp. 57-58; admirável verso, diga-se, e não tão despiciendo, como seria supostamente próprio de um tempo de casas amarelas).

Como descrever então a casa amarela? Lendo talvez a conclusão do poema, em que se enuncia perplexidade e desejo: «Se a casa amarela fosse o que eu queria que ela fosse, / nem pretexto para o texto, nem tanto texto a rimar.» (p. 58). Ou seja: nem coisa modernista - pinheiro esguio, casa branca, terra de ninguém - nem pré-moderna toada de embalar. Antes «uma casa povoada de gente, louças e tempo»: um poema que, como na arquitectura pós-moderna, renuncie à exaltação da «pobreza» e pureza dos materiais, aceitando a contingência do ser no tempo e as impurezas da mundanidade.

A perturbação introduzida pelo elemento cromático na casa branca da poética modernista surge já em Minha Senhora de Quê, num texto que é forçoso apreciar. Intitula-se ele «Incómodos» e proponho que se leia tendo em mente categorias modernistas como «forma espacial» ou «urna bem trabalhada»:











Enfeito a folha toda com duplos cabrestantes:
marítima ela me sobra e ondulante.
Já não sei se de um lógico sentido,
se de moderna arte: a cor,
a sugestão mais importante.

Transformo a folha toda num vulgar lençol:
a dobra reduzida que me foge.
As mãos como raízes e a sugestão
ainda mais ingrata que um quadro
realista: os pés de fora. (p. 70)


A meu conhecimento de leitor, esta é talvez a mais poderosa derrogação da poética moderna na nossa poesia contemporânea. O primado do decorativo (o enfeite) e do cromático, já de si significativo, reforça-se aqui de uma analogia entre escrita e corpo, a qual arrasta uma mundanização do texto, transformado em «vulgar lençol». Como a acácia que, na casa amarela, desconjunta o terreno e invade os jardins, também aqui o corpo desconjunta o texto, violando os seus limites e rachando a urna bem trabalhada da tradição moderna. Isso nos dizem esses «pés de fora» que criticam a concepção autotélica do texto, sugerindo o corpo como resto não reciclável por qualquer ontologia ou epistemologia do texto. Que a autora aceite, como quem aceita as regras do jogo, a forma espacial em «versão lençol», eis o que demonstra não só as superiores virtudes críticas da aceitação (homeopática) sobre a refutação, mas ainda o quanto esta obra é mais consequente (ou de consequências mais devastadoras) quando se assume como ginopoética.

Estes «pés de fora» articulam-se com aquilo que em Ana Luísa é uma crescente reivindicação de um paradigma barroco. Tal reivindicação encontra-se já no jogo cultista do poema «Sério Achado (em Barroco)», de Minha Senhora de Quê, ou no exercício de estilo «Barrocas Comparações», de E Muitos os Caminhos, encontrando a sua formulação mais notável, e ainda reivindicativa, em «O Excesso Mais Perfeito», do recente Às Vezes o Paraíso. Contra a «casa branca» modernista, aqui reforçada no alotropo do «arbusto esguio», a poeta reclama uma diferença que é não só de género como de sexo:

Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas. (pp. 61-62)

O mais notável deste texto creio ser a forma como o modernismo, «casa branca» onde se acolhem figuras paternas, e em geral assexuadas, é assassinado por um devir-fêmea do texto, o qual exulta na angústia de quem descobre a sua diferença sexual, que é como quem diz, a menstruação. Estes rododendros suponho-os, aliás, uma releitura (ou melhor: transleitura, para usar termo recorrente na autora e que permite dar guarida à diferença de género implicada no processo) daqueles cravos e figos que, no grande poema de Herberto Helder, sangravam, como as raparigas, na neve, «quando na cidade passava» a menstruação (viii) . E não menos notável é este Ulisses que, ao invés da fábula homérica, e renunciando enfim à dialéctica do Iluminismo, se entrega, deslumbrado e sem lágrimas, ao cântico das sereias.

Some-se-lhe a reivindicação, para o poema, de um paradigma rubensiano do belo, «sem pudor», «e um anjinho de cima, / no seu pequeno nicho feito nuvem, / a resguardá-lo, doce» (p. 61) - e teremos aquilo que a poeta, num verso que enuncia o que a conclusão do poema sobre a casa amarela ainda apenas sugeria por exclusão de partes, chama «Uma contra-reforma do silêncio» (p. 62).

Não se me afigura necessário relevar a maturidade desta poética, nem sequer o seu grau de exigência. A esse respeito, e se preciso fosse, Às Vezes o Paraíso, última obra em data da autora, é inteiramente esclarecedora, no que toca ao domínio, entre outras coisas, da arte versificatória.

O «reino» de Ana Luísa é, a propósito dessa arte, o da sintaxe, ou melhor, das «sintaxes trocadas» anunciadas já no poema que dá título ao seu primeiro livro. Nada aliás como citar a primeira estrofe desse poema para percebermos o essencial da sua arte sintáctica:







Dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas                           deslumbrantes folhas
nem eu me projectei (p. 59)



O espacejamento do texto reproduz, com grande felicidade, essa justaposição imagética que nunca funciona sem um pequeno (ou grande) salto associativo, fazendo desta poesia um discurso que progride por síncope (o que se articula com um outro rumo da sua poesia, mais próximo de uma discursividade «lisa», de contornos mais sugestivamente infantis). É aqui - nesta arte da elipse - que provavelmente a lição de Dickinson mais se nota, fazendo-o sobretudo no último livro, em torno de uma ressemantização da pontuação (a qual fora ensaiada e, digamos, suspensa depois do livro de estreia). Sucede isso nos casos em que o poema acaba sem querer concluir, denunciando o travessão final essa indeterminação semântica: «Se eu fosse um dia agora / essa maneira / de ao desviar ser centro - » («As Danças no Telhado», p. 11); «Vivendo a meio o mundo e os ouvidos, / morrer-me neste inferno de ternura - » («O Mundo a Meio», p. 14); «Ligado em culpa, o fio. Pequena pata / nem de cotovia. // Solta - » («"Minha Filha ou a Cores": o Outro Lado do Espelho», p. 54); «A sua mão erguida rumo ao céu, carregada / de nada - » («O Excesso Mais Perfeito», p. 62).

Tal ressemantização opera ainda sobre os dois pontos, sincopando decididamente o discurso e criando um efeito de parataxe que, no excerto que escolho, responde fielmente ao imperativo de «transler», o mesmo é dizer, de suspender os nexos da gramática do mundo herdada:

[transler: a maldição de ser
assim: sempre presente
a outra culpa: direito a nostalgia
de Natal: (a morte, a fome,
o frio): um privilégio]
(AVP, p. 36)

E refiram-se dois poemas do mesmo livro último, que proponho como textos de uma oficina poética em idade maior: «Das Ruas do Avesso» e «"Minha Filha ou a Cores"»: o Outro Lado do Espelho», este último o texto terrífico que a «experiência» do aborto - «tricot de sangue» - finalmente produziu entre nós: «E a outra que não tenho, mas podia: / grito de cotovia junto à morte» (p. 54).

6

Termino, regressando ao paralelo inicial. Em Adília Lopes, a crítica da poética modernista segue ainda a via, propugnada por esta até aos seus desenvolvimentos mais tardios, de uma dessensibilização dos materiais, que nos seus textos atinge a própria definição do estatuto poemático. De facto, os poemas de Adília são-no em muitos casos por um efeito de co-texto ou por um diktat que lhes apõe nominalisticamente o poético que eles criticam, quer pela sua opção narrativa tão frequente quer pela sua banalidade discursiva e sobretudo semântica, não ressalvável por um modelo interpretativo de tipo gnómico ou mesmo metonímico. Os seus textos não são, enfim, fragmentos que um paradigma funcionando para além deles no espaço macro-textual do livro pudesse reintegrar na forma tensional herdada da tradição moderna. Eles são, assumidamente, os resíduos ou detritos dessa tradição que não desconhecem mas cujos imperativos epistémicos e éticos fazem por ignorar. Nenhuma racionalidade partilhável sustenta o seu universo, a não ser um grau zero do discurso que o dispõe a todas as apropriações e a todos os equívocos: a sua poesia poderia ser, por essa razão, o ponto de encontro (o mínimo denominador comum) dos jogos de linguagem incomensuráveis de que se tece hoje o devir em diferendo das sociedades tardo-capitalistas. O curioso - e sintomático dos nossos perturbados fusos horários - é que o faça em Portugal e recuperando os namoros de costureiras de que se alimentou, sem solução de continuidade, o imaginário pequeno-burguês nacional do salazarismo ao cavaquismo, propondo-se assim como arqueologia social de alcance tão crítico quanto críptico.

Ana Luísa Amaral, pelo contrário, busca ressensibilizar os materiais poéticos, situando-se, desse ponto de vista, numa linhagem anterior ao modernismo (Blake ou Dickinson), ainda que prestando as homenagens indispensáveis aos patriarcas da hermenêutica da suspeita. É nesse sentido que a questão do seu rumo ginopoético não é facilmente descartável, já que é na prática de um devir-fêmea do texto que radica o essencial dessa estratégia de ressensibilização. A «casa amarela» dos seus versos - acácia desbordante, rododendro cor de sangue, musa rubensiana - é, ao contrário do sucedido com Adília, casa partilhável, pois este é um universo religado por uma racionalidade edificada a partir do seu género enunciativo. O ser tal racionalidade, por isso, parcelar, não a faz parcial e muito menos coisa privada. Pois o que ela à partida contesta é a representação androcêntrica da Razão, do Texto e do Poético, enquanto «transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, se impõem a cada agente como transcendentes» (ix) . Pelo contrário, enraizando a produção textual no devir maternante da escrita, Ana Luísa lança entre nós a proposta de um entendimento feminino, feminista ou «simplesmente» fêmea da racionalidade poética, a qual é não menos generalizável em doxa do que o seu entendimento androcêntrico. E assim recupera «gente, louças e tempo» para a casa amarela de um texto reconfigurado em «contra-reforma do silêncio», corroendo o radicalismo da negatividade anti-territorial e anti-fundacional da poética modernista e propondo antes as identidades como espaços discursivamente negociáveis.

Uma tal proposta, que parte da rejeição do «arbusto esguio» da poética moderna, dir-se-ia aproximar-se daquele revisionismo aplicado por Adélia Prado, no seu inicial Bagagem, ao exílio jansenista do poeta modernista no mundo, tematizado aforisticamente por Drummond («Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida»), em memoráveis versos: «Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou» (x).

Pese embora o que as distingue, e que não é pouco, algo aproxima Ana Luísa de Adília, afastando-as do mesmo passo de uma certa doxa poético-crítica coeva que por isso mesmo se vê na necessidade de as ignorar no que têm de mais específico e perturbador: a sua flagrante ausência de melancolia, que pelo que se vai vendo é bem coisa androcêntrica, aliás explicável em Freud. De facto, quer a dicção desalmada ou «transcendental» de Adília, quer o reencantamento propiciatório do mínimo doméstico ou a recuperação da sensorialidade barroca em Ana Luísa, pouco têm a dizer à famigerada stimmung saturniana da nossa poesia finissecular.

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço? A alguns, certamente. Mas não, como é manifesto, a algumas.



** NOTAS DO AUTOR
(i) Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, «O Sexo dos Poetas. A Propósito de Uma Nova Voz na Poesia Portuguesa», Via Latina, 1990, pp. 122-124.

(ii) Luíza Neto Jorge surge pela primeira vez associada a Ana Luísa Amaral na recensão de Américo Lindeza Diogo a Às Vezes o Paraíso, («Poesia e Justificação») publicada no nº 3 de Ciberkiosk (http://alf.ci.uc.pt/ciberkiosk).

(iii) Ana Luísa Amaral é neste momento autora de cinco livros de poesia: Minha Senhora de Quê (Coimbra, Fora do Texto, 1990), Coisas de Partir (Coimbra, Fora do Texto, 1993), Epopeias (Coimbra, Fora do Texto, 1994), E Muitos os Caminhos (Porto, Poetas de Letras, 1995), e Às Vezes o Paraíso (Lisboa, Quetzal, 1998). Quando necessário, recorrer-se-á às seguintes iniciais: MSQ, CP, E, MC, AVP, respectivamente.

(iv) Refira-se ainda, a este propósito, a analogia entre a arte verbal e a da decoração, no poema «Discreta Arte», de Minha Senhora de Quê: «Discretamente. Cultivar a palavra. / Arte de dispor flores por longa mesa» (p. 24).

(v) Cito da Introdução de Jorge de Sena à sua tradução de Dickinson (80 Poemas de Emily Dickinson, Tradução e Apresentação de Jorge de Sena, Lisboa, Edições 70, 1978, p. 32).

(vi) Refiram-se alguns desses poemas, quase sempre conseguidos, em que Ana Luísa encena de modo vário a sua condição de mãe, associando-a estreitamente em muitos casos à condição de poeta que a maternidade questiona ou relativiza: «Músicas» e «A Verdade Histórica», em Minha Senhora de Quê; «Leite-Crème», em Epopeias; «Minha Filha ou a Cores» e «Visitações, ou Poema Que se Diz Manso», em Às Vezes o Paraíso. Esta atitude de reivindicação da maternidade como tema poemático encontra o seu homólogo masculino na poesia «familiar» de Vasco Graça Moura, aí reforçada por uma ostensiva ausência de má consciência no que toca à recuperação da cena doméstica burguesa. O autor, como se sabe pelo próprio, é notoriamente um bom burguês.

(vii) A este propósito, refira-se que no mesmo livro de estreia um poema como «Auto-de-Fé» nos apresenta, desde o título, uma versão paródica do drama da produção textual. A poeta queima «uma folha escrita» num cinzeiro: «Quando o auto-de-fé / se concluiu / sobrava ainda / um resto incandescente: // aí / acendi / um cigarro» (p. 55). Esta dessacralização do processo de edificação da casa branca não deixa de se propor como reencantamento, na medida em que são os seus «resto[s] incandescente[s]» que permitem as pequenas epifanias do quotidiano.

(viii) «A menstruação, quando na cidade passava», in Herberto Helder, Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, pp. 325-328.

(ix) Cito do último livro de Pierre Bourdieu, La domination masculine, Paris, Seuil, collection Liber, 1998, p. 39.

(x)«Com Licença Poética», in Adélia Prado, Poesia Reunida, São Paulo, Edições Siciliano, 1991, p. 11.



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