I Concurso Literário Benfazeja

Em qual tempo verbal escrever?




Para escrever uma história é necessário escolher o tempo verbal que indicará se os fatos narrados já aconteceram, se acontecem em sincronia com a narrativa ou até mesmo se o que está sendo contado ainda vai acontecer.

Muitos escritores podem escolher o seu tempo verbal sem sequer se dar conta disso e é legal quando a história flui dessa maneira. No entanto, em outras vezes o tempo verbal não se mostra tão claramente. Ele é um detalhe muito importante para dar o tom da história (lembrança, recordações, mistério...) e por isso é necessário pensar qual é o ideal.

Definir o tempo verbal é uma maneira de manter a coerência da sua história. É claro que durante a escrita eles irão variar, por exemplo, em uma história que acontece no presente um dos personagens pode se lembrar de algo do seu passado e assim o texto começa a usar verbos no passado, mas isso não interfere na linha do tempo da história principal e funciona como um parêntese no quadro geral.

Para simplificar o assunto, esse texto irá se concentrar apenas no Modo indicativo, pois ele é o que diz respeito ao narrador. Assim veremos as definições e alguns exemplos.

Presente do indicativo: o fato é narrado no momento em que acontece. Provoca sensação de suspense, pois o leitor se concentra no processo das ações e subentende-se que ninguém, nem mesmo o narrador, sabe o que vai acontecer. Também é usado em situações de presente histórico, quando algum acontecimento passado real e de saber comum é mencionado no presente. Por exemplo: Em 1945 termina a Segunda Guerra Mundial.

Amanhece.Cheiro de mel e leite de cabra. A imagem do menino passa por mim mais ligeira do que uma sombra. Cabelos escuros. Túnica branca. Sigo atrás pelo caminho que já conheço através de um furo no tempo, olho por esse furo e vejo grandes árvores. Um rio pardacento. O menino mergulha nessas águas. Ouço com alegria o ruído vigoroso das minhas braçadas, estou nu na correnteza.
Trecho de As horas Nuas – Lygia Fagundes Telles



Pretérito perfeito do indicativo: A narrativa utiliza verbos como fez, andou, falou, olhou que são conjugações para indicar que uma ação aconteceu e terminou no passado. É importante lembrar que isso não quer dizer que a história aconteceu num passado distante, ela pode ter acabado de acontecer e por isso é uma narração do presente.


Olhou o relógio e coçou a cabeça, irresoluto: o diabo é que eles tinham razão, ainda era mesmo cedo para a missa. Foi caminhando pela praia e insensivelmente tomou o rumo do bar, o mesmo bar de onde Joubert o arrancara. Fez dois quarteirões num passo irregular e obstinado: a sede o consumia. Da esquina surgiu uma mulher, que o chamou sem cerimônia.
Trecho de O Encontro Marcado – Fernando Sabino


Pretérito imperfeito: O fato se iniciou no passado, mas no momento da narração ele ainda não tinha acabado. Dá um tom de lembrança e nostalgia na narrativa e também é usado para sugerir que uma atitude que se repetia em alguém.

Tudo isso era apenas um pano de fundo para Sally. Ficava junto à lareira falando, naquela linda voz que fazia tudo o que ela dizia soar como uma carícia, com papai, que começava a se sentir atraído por ela, um tanto a contragosto (...)
Trecho de Mrs Dalloway – Virginia Woolf



Pretérito mais que perfeito: Pode ser traduzido como o passado do passado, uma ação passada em relação a outra também passada.

(...) Porém o que dominara seus contornos e os atraíra para um centro, o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo.
Trecho de O Lustre – Clarice Lispector


Futuro do presente: Narra um fato que ainda vai acontecer depois do momento em que se fala. Cria expectativa no leitor, em parte por se tratar de um fato que ainda não aconteceu e, portanto, está sujeito a imprevistos.

D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa (...)
Trecho de Memorial do Convento – José Saramago


Futuro do pretérito: Indica uma ação que ia acontecer, mas não vai mais. Também pode sugerir uma hipótese de algo que poderia acontecer. Esse tempo verbal também é característico de devaneios e indagações.

(...) por exemplo, se eu estivesse serena sairia com a máscara da serenidade, leve, pequenas pinceladas, um meio sorriso, todos os que estivessem serenos usariam a mesma máscara, máscaras de ódio, de não disponibilidade, máscaras de luto, máscaras do não pacto, não seria preciso perguntar vai bem como vai etc., tudo estaria na cara (...)
Trecho de A Obscena Senhora D. - Hilda Hilst



Brincando com o tempo

Alguns autores não se preocupam em esconder a “fluência do tempo” em suas histórias e isso se trata de uma questão de estilo. A cronologia também é um fator totalmente flexível atualmente e o escritor pode optar por seguir a ordem dos fatos, a ordem inversa, intercalar fatos e qualquer outra alteração imaginável.

Em O Grande Mentecapto, Fernando Sabino narra os fatos de maneira cronológica, mas antes de cada capítulo ele enumera os fatos que serão abordados, oferecendo uma prévia do que o leitor irá encontrar: Capítulo 1 – De como Geraldo Viramundo, tendo nascido em Rio Acima, foi parar no seminário de Mariana, depois de virar homem, levado por um padre que um dia passou por lá.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador-personagem coloca o seu dilema em relação à cronologia narrativa (Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte...). E termina por concluir que irá narrar suas memórias iniciando pela sua morte. E assim ele subverte não só a ordem cronológica, mas também a ideia de personagem literário, que se revela como um defunto-autor.

Agora é a sua vez. Treine sua escrita em diferentes tempos verbais, conte um acontecimento, escreva devaneios, recorde suas memórias, utilize diferentes tempos verbais e veja se conseguiu deixar o texto coerente.



Créditos da imagem:
Past, Present and Future, por ANVRecife

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