I Concurso Literário Benfazeja

A Aparição



Por  Giselle Jacques


Ela entra no bar com o andar tão leve quanto o vento. A fumaça do ambiente formava sombras dançarinas que surgiam e sumiam mais rápido do que os olhos podiam acompanhar. Mas os olhos dela veem tudo. Cada sombra, cada brasa semi-apagada de cigarro, cada rosto, cada alma. Percebem, detalhe a detalhe, todos os movimentos, toda a pulsação.



À frente, num balcão arranhado, cheio de manchas de bebida derramada, dez ou quinze homens sentados, idades variadas, mergulhavam em copos sujos de uísque. Alcoolizados, embriagados por suas vidas vazias, seus problemas comuns. Nas mesas redondas de madeira escura, casais, trios, grupos inteiros de seres infelizes, rindo a toa de tudo o que conseguissem lembrar. Garçonetes com fisionomias cansadas circulavam entre damas da noite e seus clientes em potencial. Todos se moviam em câmara lenta. Arrastavam-se diante dos olhos castanhos à espreita. Pessoas arrasadas, punindo a si mesmas pelos desprazeres de uma vida sem valor. Homens e mulheres vivendo sem vontade. Humanos. Mortais!

Sem ser notada, ela observa a multidão. Capta detalhadamente todas as formas, cores e sons. Consegue ver a música. O embalo dos corpos à medida que tentam obter um momento a mais de diversão. O barman, um ruivo roliço, com um inevitável cigarro pendendo do canto esquerdo da boca, ergue os olhos para a figura parada à porta. Por um breve segundo, o homem prende a respiração. A mão que esfregava um pano sujo sobre o balcão para no ato. Inerte, com o suor manchando ainda mais a camiseta surrada e imunda, ele sente o coração disparar. Engole em seco, enquanto seus olhos verdes esforçam-se em guardar cada centímetro daquela visão. Botas de couro preto. Saltos altíssimos. Pernas envoltas por meias finas. Um vestido curto e ousado, também em couro negro, sem alças. O decote generoso deixa transparecer seios volumosos. Cabelos curtos e escuros, poucos centímetros abaixo do queixo. Um rosto sereno, de sobrancelhas arqueadas, boca vermelha e olhos castanhos ferinos, compõe o conjunto. Pendendo do pescoço, um crucifixo de prata. Descendo dos ombros, uma capa elegante em preto e vermelho. Uma alucinação!

Súbito, os olhos dela encontram os dele. O homem sente o sangue gelar. Tenta desviar-se, mas é tarde. Está preso, hipnotizado. Ela se detém no rosto suado não mais que uma fração de segundo, voltando sua atenção para o interior do bar. Lentamente, estende a perna direita à frente e dá um passo. O barman, ainda hipnotizado, deixa escapar um soluço de espanto, fazendo cair o cigarro dos lábios, quando a vê parada diante do balcão. Sem saber por quê, não ousava pensar que ela se aproximaria. Talvez, até mesmo descartasse a idéia de que ela fosse real. Ali, sentada a sua frente, não parecia ter mais que vinte anos. Pequenina e delicada. A pele alva. Uma menina apenas. Mas, os olhos castanhos que voltaram a encontrar os seus não eram os de uma criança.

“Vinho Tinto.” Ele obedece a ordem sem saber se realmente ouvira as palavras ou se aquela voz rouca apenas ecoara em sua mente. Enche uma taça com seu melhor vinho e tenta não tremer ao colocá-la sobre o balcão. Como um gato espreguiçando-se depois de um cochilo no telhado, ela estende a mão para apanhar seu drinque, revelando longas unhas pintadas de negro. Girando no banco alto e cruzando as pernas, volta-se para a multidão. Encostando a taça transparente nos lábios, não chega a provar o líquido. Ainda procurava por alguém.

Aos poucos, as pessoas ao redor foram tomando conhecimento de sua presença, como se ela fosse um ímã para todos os olhos. Alguns apenas piscavam sem dar importância, outros agiam como se a moça os incomodasse e desviavam-se depressa. Todavia, uns poucos pareciam tomados pelo mesmo encantamento que se apossara tão intensamente do barman, seduzidos por aquela pequenina beldade desconhecida. Ninguém, entretanto, ousava aproximar-se dela.

Foi então que os olhos da moça pousaram sobre uma figura solitária, arriada numa mesa de canto. Um homem de terno escuro, grisalho, com as mãos na cabeça em posição de definitiva derrota. Sobre a mesa, um copo ainda cheio de bebida. A própria sombra da morte.

Depois de alguns momentos, ela se desfaz da taça intocada e põe-se de pé. Graciosa e ereta, segue na direção do estranho cabisbaixo. Não chegou a falar com ele ou tocá-lo. Nem mesmo aproximou-se muito, mas o homem ouviu seu chamado e voltou-se para encontrá-la ainda a observá-lo. Sob a vigilância atenta do homem atrás do balcão, ficaram assim, fitando um ao outro, imóveis. Era como um transe, um controle absoluto de mente sobre mente. Quem estaria dominando quem? A resposta era óbvia.

Sem qualquer aviso, ela lança um último olhar ao barman estático, ruma para a porta e deixa o bar. Não demora para que o homem de terno siga pelo mesmo caminho, saindo afoito pela noite fria ao encontro dela.

Num piscar de olhos, tudo voltou ao normal. Contudo, durante as muitas horas que se seguiram à aparição, o barman perguntou-se se aquela mulher realmente estivera ali. Chegou a duvidar da própria sanidade, pois a imagem daqueles olhos castanhos não o abandonara por um só momento. O que havia acontecido, afinal? Quem era ela? De onde vinha? Voltaria? E, num súbito instante de terror, ele estremeceu. E se ela resolvesse mesmo voltar?...


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Créditos da imagem:
Nassau's top nightspots - Divulgação

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