I Concurso Literário Benfazeja

Tem-que




Crônica, por Mariana Collares.



A ditadura do “tem-que” invade as almas e as põem em apuros. Não é de hoje que o ser humano contabiliza como felicidades os ganhos exteriores, ou meramente as vitórias prosaicas do que chama “homem médio em busca da ascensão social”. “Tem que” estudar, “tem que” passar de ano, “tem que” ter notas boas, “tem que” ser magro, “tem que” ser bonito, tem que ter dinheiro...

Ontem uma amiga estourou, literalmente, na mesa de bar em que estávamos e bradou sua justa perplexidade diante dos “tem-que” impostos pela sociedade do consumo. Consomem-se pessoas, objetos, status, viagens. Consome-se, hoje, tudo! Desde que esteja fora, na aparência, ou possa ser facilmente percebido por um olhar pouco minucioso que vaga um determinado fenótipo em busca de sinais ostensivos de opulência.

– Que saco! – dizia ela! – A gente tem que ser bonita, tem que ser magra, tem que ser legal, tem que ser gostosa! Tem que fazer exercício, tem que comer menos, tem que comer certo, tem que gostar de salada! Tem que viajar, tem que ter roupas legais, tem que ter dinheiro, emprego, salário fixo, futuro promissor. Tem que ter marido, tem que ter filhos, tem que ter viagens contabilizadas na memória pra ser interessante. Tem que falar várias línguas, tem que subir na carreira, tem que passar em concurso, ter faculdade, pós, mestrado e doutorado em ciências divinas! Liga-se a TV e lá está a propaganda te dizendo que tu TENS QUE estar naquele lugar paradisíaco ou totalmente “in” da moda, entre homens e mulheres lindos e esculpidos, pra ser feliz! E se não tens tudo isso ou pelo menos 97% de tudo o que “tem-que” ter, “tem-que” ir pro psicólogo, psiquiatra, terapeutas alternativos, tomar remédios e anti-depressivos pra tentar curar a droga da doença que tu causaste por não conseguir ter tudo!

A filosofia do “tem-que” está nos transformando em seres paranóicos. Mais, em seres ansiosos, porque não há como ter tudo! Muito menos, e para a maioria, o mínimo necessário para ser digno do posto vitorioso dos que têm.

O mais interessante é que se olhamos a vida de quem tá do lado, normalmente nos parece tão mais emocionante do que a nossa própria. Principalmente porque todo mundo aparenta tanto o “ter tudo” que torna-se impossível competir. Sim, eu disse exatamente isso: competir. Porque todo mundo, hoje, anda numa competição desvairada contra si mesmo, contra o passado do que se foi, contra o pouco que se teve, ou para manter ou multiplicar o valor familiar exprimindo-se em papel-moeda.

Tá feliz? Tens que beber álcool porque no comercial nos dizem que quem bebe cerveja, Martini, wisky e blablablá com os amigos é necessariamente feliz. Porque no comercial de cigarro, nos mostram que temos que fumar para nos sentirmos “saudáveis” entre potros selvagens em algum paraíso texano. Porque nos dizem nos comerciais que temos que beber coca-cola, e viajar com cartões de crédito, e emagrecer e ficar exatamente igual às anoréxicas das revistas femininas ou àqueles bonitões sarados das revistas gays. Ou então temos que parecer felizes saltando sem pára-quedas de penhascos distantes e muito altos, porque quem é radical é que tá ganhando... alguma coisa, nem que seja mais endorfina.

Fácil entender o tanto de angústia que anda por aí, travestida de aparente felicidade. Corra pra ser feliz! Literalmente falando. Por dentro não importa. Podemos ser um saco oco de programas inúteis de TV, ou jogos eletrônicos, ou comida gordurosa ou até bem saudável. Podemos ser um saco cheio de anti-depressivos e anti-hipnóticos, porque o que importa pra esse mundo são as tais competições ganhas. As muitas medalhas metafóricas do que se conquistou em termos de ganho exterior. E então poderemos gozar o resto da eternidade como um defunto belo e magro num sarcófago de ouro. E teremos que construir novas pirâmides para podermos levar tudo o que “temos” para o outro lado do mundo. Porque é pra lá que estamos indo. Justamente a dimensão para a qual todos os “tem-que” não valem absolutamente nada.

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Créditos da imagem: Olhares.com
Manequim de Vitrine, por Tadeu Gomes

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