I Concurso Literário Benfazeja

Entre o antigo e o novo: a re-escritura literária



Artigo para a seção Escrita Criativa, por Carolina Bernardes





Os leitores podem perceber que os artigos publicados nesta coluna de Escrita Criativa, ao mesmo tempo em que lançam propostas para o exercício de escritor, deixam ecoando diversas perguntas para a reflexão sobre o mesmo fazer artístico. A pergunta de hoje foi pronunciada no artigo anterior – Encruzilhadas da Escrita Criativa – e é a partir dela que proponho este novo desafio: “Deve-se escrever conforme as características do momento cultural ou seguir a antiqüíssima tradição literária?”

Estamos, portanto, diante de mais uma encruzilhada da escrita. Um dos caminhos que se apresentam é a necessidade de romper com o passado literário, com os autores de outrora, ainda que sejamos seus leitores e admiradores, em busca de atender aos impulsos do presente ou, até mesmo, de fundar uma nova literatura. Em letras grandes, lê-se na placa deste caminho: “Make it new”. E o outro caminho? O outro leva o autor à riquíssima tradição, aos autores do cânone, aos temas e gêneros da história literária. No compasso dessa encruzilhada, lanço outra questão: “é possível escrever seguindo apenas os traços do momento histórico atual?”

Entre o novo e o antigo, é necessário entender o sentido de história que T. S. Eliot discute em seu importante ensaio “Tradição e Talento Individual”:

O sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. (ELIOT, 1989, p.38-39)


O antigo ou o velho não se estratifica como uma língua morta e superada, como se fosse possível criar o novo tomando o nada como ponto de partida. Em sua produção poética, Eliot estabelece o vínculo com a tradição e, ao mesmo tempo, se separa dela, ao recorrer aos recursos da paródia, do pastiche, das citações e alusões. Tais recursos utilizados e dispostos de maneira fragmentária, procuravam nesta inter-relação sugerir a unidade temporal e, ainda, o declínio da história. A percepção verdadeiramente histórica, que não procura eliminar do presente as marcas da tradição, mas por meio delas orientar o presente, assim como modificar o passado, promove no autor a compreensão aguda de sua contemporaneidade.





estamos diante da clara conformidade entre a técnica do mosaico, que cola os estilhaços do tempo na tela branca do panorama presente, e o momento histórico da amplitude de escolhas, todas elas entrelaçadas num imenso calidoscópio. A prática do palimpsesto tornou-se a técnica de vários autores do modernismo, conscientes de que o impulso de escrever nasce de uma experiência literária prévia, preexistente a qualquer poema que se vanglorie como “novo”; nas expressões consideradas novas se encontram as forças matriciais de antigas culturas literárias e filosóficas. Portanto, escrever é sempre reescrever, um processo duplo que vai da revisão da escritura para a visão do novo.

Os autores atuais não devem intentar produzir desinteressados da história, numa atitude desvinculada e livre de todo o processo que culmina no momento atual, com suas características específicas. Ao contrário, observa-se uma necessidade de debate com o cânone e o passado, não para assumir e prolongar os elementos da tradição considerados gastos, mas para reoperá-los na instância problemática do presente, buscando neles o impulso para a renovação e a análise crítica.

Não se trata, pois, de reassumir a tradição em sua totalidade, ou a completude narrativa da história em sua sucessão cronológica, o que seria a expressão da incoerência no período da fragmentação e multiplicidade, mas a possibilidade de fazer emergir uma outra história, composta de interrupções e rupturas, essas sim criações do presente. Como se pode notar, mais uma vez, não é a opção por um dos lados da encruzilhada que está em jogo, pois nenhum desses caminhos levaria o autor à conformação com o seu tempo ou com a tradição. A escrita literária está no caminho do meio, na terceira margem do rio, no palimpsesto, na renovação.



Bibliografia:

BERNARDES, Carolina D. “Morte da epopeia e sua paradoxal reabilitação”. In: A Odisseia de Nikos Kazantzakis: epopeia moderna do heroísmo trágico. Tese de doutorado. UNESP: São José do Rio Preto, 2010.

ELIOT, T. S. “Tradição e Talento Individual”. In: Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989.


Crédito da primeira imagem: Roberto Bergamo

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