I Concurso Literário Benfazeja

Por minha culpa



Conto, por Valentina Silva Ferreira

Havia na lentidão daquele sorriso um misto de surpresa e saudade e adeus. Matilde, cabelos ao vento e óculos de sol, acenava com a mão direita enluvada, metida num vestido colorido e esvoaçante. À medida que o barco rasgava as águas tranquilas da baía, Rogério amargurava-se, batendo no peito com a mão invisível do remorso e lutando contra as lágrimas quentes e grossas que lhe lambiam a cara até ao bigode espesso. Por minha culpa, por minha grande culpa. Repetia para si, enquanto via a sua menina perder-se no horizonte, com o desgosto esculpido no semblante, as maças do rosto toscas e duras, embrutecendo aquela carinha de anjo que tanto sorrira em tempos de esperança e felicidade. Rogério abandonou o cais e entrou no carro velho e cambaleante, enxugando as bochechas e suspirando com dor, como se engolisse um ar carregado de pregos. Em casa, acomodou-se ao silêncio que o vazio da paternidade carregava e deixou-se ficar por horas e dias e semanas sentado na poltrona de cabedal gasto, em frente aos porta-retratos de Matilde, ao lado do telefone que nunca tocava. Por minha culpa, por minha grande culpa. Repetia de cada vez que o relógio avisava mais uma hora e o toque do telefone teimava em não cantar. Por fim, num dia de pouco sol e muito frio, o ringue fez-se ouvir uma vez e Rogério, como que desperto de um coma induzido, pegou no auscultador e fungou. Pai, pai, ajuda-me. Disse Matilde, num choro fininho, trazendo na voz uma angústia desoladora, que marcava e fazia doer; uma voz pisada por maus tratos, por uma vida gasta; uma voz que se queimava por uma febre de padecimentos que não sarava. Minha filha, que se passa? E ela caiu num choro profundo: Ele bate-me, pai, não tenho liberdade, não posso sair, vivo presa neste inferno, pai, não aguento mais, eu queria aguentar, pai, por ti e por mim, porque sei que não tens como nos sustentar, e porque sei que aí, nessa cidadezinha pobre, não há trabalho para raparigas como eu a não ser no bordel da Luzita, mas nem eu nem tu queremos essa vergonha para a família nem para a minha mãe, que em paz descanse, mas pai, eu não suporto nem mais um soco, não aguento este casamento comprado que me dá vestidos e luxos, mas me tira a alforria de ser pessoa, pai, nem que eu viva de água e ar, nem que eu limpe as retretes da tasca, deixa-me voltar para a nossa casa, pai, não sou capaz de olhar para ele outra vez. Durante as lamúrias de Matilde, os olhos de Rogério incharam de ódio e os pêlos do bigode eriçaram-se como o pêlo de um gato bravo. Ele ouviu, guardando dentro de si, uma raiva espessa, que fazia o sangue borbulhar e as veias saltarem por debaixo da pele. Filha, vou-te buscar. Rogério meteu-se no carro e estacionou no porto. Comprou um bilhete, sem dirigir palavras de maior significado a ninguém, fazendo com que as gentes estranhassem a palidez inusual daquele velho pescador de pele trigueira, e os olhos invulgarmente mergulhados num fogo ácido que ardiam na carne com um simples olhar. Rogério embarcou, roupa e mãos vazias, repetindo por minha culpa, por minha grande culpa, até chegar ao destino. Meteu-se numa carroça de entregas e chegou à fazendo pela noite, já as galinhas dormiam e o fogo da lenha aquecia água para o chá da ceia. Deu três palmas e esperou pela criada que, prontamente, abriu a porta. Matilde, venho buscar a Matilde. A negra mulher não respondeu e, do cimo das escadas, desceu um grito que cortava, retalhava, esmiuçava e tesourava qualquer coração de pai. Rogério voou, louco, pelas escadas de madeira e encontrou a filha, a sua Matilde, debruçada na cama, semi-despida, com as costas nuas e vergastadas por riscas de sangue escuro, que explodia da carne e manchava os lençóis claros. Por minha culpa, por minha grande culpa. O marido ajeitava o cinto às calças com um riso irónico e os olhos besuntados de prazer. Quando viu o sogro, engoliu em seco. Quando viu a arma, gemeu. E gemeu quando levou o tiro a meio das pernas, no coração e na cabeça. Rogério lavou as feridas à filha e meteu-a na carroça que o esperava na rua. Deixou um bilhete em cima do corpo do morto, e partiram juntos. Por minha culpa, por minha grande culpa. Dizia o bilhete. Matilde morreu na viagem, consumida por dores e infecções. Rogério foi preso e, na hora da confissão, soltou um sonoro por minha culpa, por minha grande culpa. Então está arrependido?, perguntou o juiz. Estou arrependido por ter vendido a minha filha, que me morreu nos braços, por minha culpa. De resto, faria tudo igual. E Rogério foi condenado à morte e descansou em paz.


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Créditos da imagem: Site olharees - fotografia online
Dedo com Sangue, por Miguel Kastro.

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