O último conto
Conto, por Marcelo Sousa.
O sol atravessava as cortinas do quarto como um visitante bruto e inesperado, queimando as pálpebras fechadas daquele homem que se confundia com os trapos jogados por toda a cama, a camisa exibindo uma mancha marrom escura e endurecida, com um cheiro agridoce que ele não conseguia identificar.
Seus olhos permaneceram semicerrados, como persianas pesadas, fitando aquela cena meio iluminada, meio acinzentada, meio alaranjada. Um ventilador de ferro estava no chão, caído em uma posição esdrúxula que não permitia exercer sua função de amenizar o calor, mas fazia um barulho claudicante e irritante demais.
Era o único barulho que se distinguia, em princípio. Depois o mundo foi acordando ao redor do quarto. No banheiro a torneira chorava um fio d’água, pelo basculante da cozinha alguns pardais piavam, chocavam-se contra o vidro como suicidas alados. Ainda com os olhos semicerrados ele passou a mão direita sobre o rosto e percebeu que sua barba estava maior que o habitual, uma barba mal feita de comunista de classe média.
Haviam cigarros apagados sobre o lençol, queimados até a metade. Imaginou que tivera sorte de não ter morrido em um incêndio tão idiota quanto o de um bêbado que dormira fumando cigarrilhas baratas e malcheirosas. Olhou as paredes, lembrou-se que elas foram brancas um dia. Que melancolia perceber aquelas manchas amareladas e esverdeadas por todos os lados. A porta do guarda-roupas estava aberta. Camisas fugiam como lesmas sujas, caindo pelo chão.
Sentou-se na cama, mas seus pés não tocaram o chão. Sentiu uma dor imensa no lado esquerdo do corpo. A mancha escura era uma carapaça em sua camisa. Tentou chamar seu cachorro, mas a voz não lhe veio inteligível. Gritou novamente, mas nada aconteceu. Parou, pensou. Estava afônico. E mesmo se pudesse falar, havia subitamente percebido que não lembrava o nome do seu cão. Na verdade nem mesmo tinha certeza se tinha mesmo um cão.
– Maldição! Que espécie de sonho é esse? E porque esse gosto horrível na minha boca? (…)
Silêncio. O quarto bagunçado era o seu mundo. O sol lhe queimava o rosto, e por mais que ele buscasse uma posição comfortável, não havia como fugir daquela luz que não pedia licença e que, naquele momento era a única prova concreta de que ele estava vivo, e talvez lúcido. Olhou-se por completo, vestia apenas a camiseta branca, manchada pelo caldo agridoce que permanecia ainda uma incógnita. Não vestia nada mais que aquilo, e a visão do seu membro flácido e de suas pernas finas e brancas, com as veias azuis aparecendo como fios de linha sob um tecido mal esticado deram-lhe uma enorme vergonha de si mesmo. Cobriu-se com um pano qualquer. Deitou-se. Precisava pensar.
Que dia da semana era aquele? Não parecia um domingo. Poderia adivinhar que fosse uma quinta-feira. Sim, decidiu que era quinta-feira. Sentou-se novamente. Olhou à sua volta e começou um discurso em voz tranquila, mais tranquila do que esperava.
– Aqui é o meu apartamento, eu moro em Copacabana, e moro sozinho, e sou ex-professor de Filosofia, e jamais tive filhos, e manco da perna direita, e sou míope, sou loiro e alto, e já comi todas as mulheres daquele puteiro de luxo que fica naquela esquina do Largo do Machado, e sou escritor, tenho treze livros escritos e estão todos guardados no meu computador, esperando que algum editor os descubra. Sim, eu sou um bom cidadão, vou à missa aos domingos e dou o dízimo, e não reclamo das oportunidades que não me foram dadas por Deus ou pelo diabo. Eles que se ocupem dos pobres, que precisam de piedade. Eu não, eu sou de uma raça diferente. (…)
Calou-se. A dor na costela aumentara. E seus olhos voltavam a fechar-se, fazendo com que ele fizesse um esforço enorme para manter-se acordado. Viu que seus dedos moviam-se rapidamente, e subitamente percebeu que tinha o laptop sobre o colo, e escrevia exatamente tudo aquilo que lhe vinha á cabeça, que era exatamente tudo o que na sua realidade estava acontecendo.
Experimentou gritar, e o gritou saiu em letras garrafais na telinha brilhante. Tocou sua costela e seu dedo indicador entrou completamente na ferida já seca e enegrecida. O revólver jazia ao lado.
– Não pode ser! Não sinto dor! Eu jamais tiraria minha vida! (…)
Silêncio, e as palavras reluziam na tela. O homem temia aquela morte narrada ao vivo por si mesmo, e decidiu mudar aquela história. Digitou um nome: Érika. Tinha dezesseis anos, estava nua na banheira ao lado. Era branquinha, os seios pequenos, os movimentos suaves, a voz lânguida e clara como um som de cítara. Talvez mais um personagem fosse uma salvação. Ela chamaria uma ambulância.
– Érika! Érika, estou morrendo! (…) Silêncio.
Passos de menina, e aquele corpo delicioso e esguio apareceu apenas pela metade no corredor, exalando um perfume de flores que Deus ainda não havia inventado. Seus olhos arregalados fitaram aquela cena, mas ela nada disse. Depois voltou vestida com uma camisola de seda transparente e sentou ao seu lado.
– Tu sabes o teu nome? O teu verdadeiro nome? E o homem percebeu que ainda não havia pensado nisso.
– Érika, não sei meu nome, mas estou morrendo, me ajuda!
E ela continuava a olhá-lo com aqueles olhos grandes, num misto de desdém e comoção.
– Mas a história é tua! Como foi que me deste esse nome de Érika? Quem é Érika? Perguntastes-me se gosto desse nome? E quem foi que te feriu a costela e te perfurou até o íntimo da tua triste existência?
Ele olhou para a tela e começou a escrever coisas ininteligíveis, e a cada frase que escrevia a realidade o acompanhava, anoitecendo e clareando em questão de segundos, nevando, ventando, chovendo demais… Então ele escreveu que o quarto era limpo, branquíssimo, e ao longe tocava uma melodia de Tchaikovsky, alguma suíte do Quebra Nozes. E ele desejou escrever que estava curado, mas seus dedos petrificaram-se. Érika deitou-se ao seu lado e beijou-lhe na boca, e ficaram ali deitados.
– Aleph, este é o seu nome, e essa é a tua obra prima. Estás escrevendo o teu melhor conto, aquele que narra a tua morte.
E o autor, sereno e feliz pela primeira vez na sua vida, colocou um ponto final naquela história, e deixou a telinha brilhante apagar-se para sempre.
Seus olhos permaneceram semicerrados, como persianas pesadas, fitando aquela cena meio iluminada, meio acinzentada, meio alaranjada. Um ventilador de ferro estava no chão, caído em uma posição esdrúxula que não permitia exercer sua função de amenizar o calor, mas fazia um barulho claudicante e irritante demais.
Era o único barulho que se distinguia, em princípio. Depois o mundo foi acordando ao redor do quarto. No banheiro a torneira chorava um fio d’água, pelo basculante da cozinha alguns pardais piavam, chocavam-se contra o vidro como suicidas alados. Ainda com os olhos semicerrados ele passou a mão direita sobre o rosto e percebeu que sua barba estava maior que o habitual, uma barba mal feita de comunista de classe média.
Haviam cigarros apagados sobre o lençol, queimados até a metade. Imaginou que tivera sorte de não ter morrido em um incêndio tão idiota quanto o de um bêbado que dormira fumando cigarrilhas baratas e malcheirosas. Olhou as paredes, lembrou-se que elas foram brancas um dia. Que melancolia perceber aquelas manchas amareladas e esverdeadas por todos os lados. A porta do guarda-roupas estava aberta. Camisas fugiam como lesmas sujas, caindo pelo chão.
Sentou-se na cama, mas seus pés não tocaram o chão. Sentiu uma dor imensa no lado esquerdo do corpo. A mancha escura era uma carapaça em sua camisa. Tentou chamar seu cachorro, mas a voz não lhe veio inteligível. Gritou novamente, mas nada aconteceu. Parou, pensou. Estava afônico. E mesmo se pudesse falar, havia subitamente percebido que não lembrava o nome do seu cão. Na verdade nem mesmo tinha certeza se tinha mesmo um cão.
– Maldição! Que espécie de sonho é esse? E porque esse gosto horrível na minha boca? (…)
Silêncio. O quarto bagunçado era o seu mundo. O sol lhe queimava o rosto, e por mais que ele buscasse uma posição comfortável, não havia como fugir daquela luz que não pedia licença e que, naquele momento era a única prova concreta de que ele estava vivo, e talvez lúcido. Olhou-se por completo, vestia apenas a camiseta branca, manchada pelo caldo agridoce que permanecia ainda uma incógnita. Não vestia nada mais que aquilo, e a visão do seu membro flácido e de suas pernas finas e brancas, com as veias azuis aparecendo como fios de linha sob um tecido mal esticado deram-lhe uma enorme vergonha de si mesmo. Cobriu-se com um pano qualquer. Deitou-se. Precisava pensar.
Que dia da semana era aquele? Não parecia um domingo. Poderia adivinhar que fosse uma quinta-feira. Sim, decidiu que era quinta-feira. Sentou-se novamente. Olhou à sua volta e começou um discurso em voz tranquila, mais tranquila do que esperava.
– Aqui é o meu apartamento, eu moro em Copacabana, e moro sozinho, e sou ex-professor de Filosofia, e jamais tive filhos, e manco da perna direita, e sou míope, sou loiro e alto, e já comi todas as mulheres daquele puteiro de luxo que fica naquela esquina do Largo do Machado, e sou escritor, tenho treze livros escritos e estão todos guardados no meu computador, esperando que algum editor os descubra. Sim, eu sou um bom cidadão, vou à missa aos domingos e dou o dízimo, e não reclamo das oportunidades que não me foram dadas por Deus ou pelo diabo. Eles que se ocupem dos pobres, que precisam de piedade. Eu não, eu sou de uma raça diferente. (…)
Calou-se. A dor na costela aumentara. E seus olhos voltavam a fechar-se, fazendo com que ele fizesse um esforço enorme para manter-se acordado. Viu que seus dedos moviam-se rapidamente, e subitamente percebeu que tinha o laptop sobre o colo, e escrevia exatamente tudo aquilo que lhe vinha á cabeça, que era exatamente tudo o que na sua realidade estava acontecendo.
Experimentou gritar, e o gritou saiu em letras garrafais na telinha brilhante. Tocou sua costela e seu dedo indicador entrou completamente na ferida já seca e enegrecida. O revólver jazia ao lado.
– Não pode ser! Não sinto dor! Eu jamais tiraria minha vida! (…)
Silêncio, e as palavras reluziam na tela. O homem temia aquela morte narrada ao vivo por si mesmo, e decidiu mudar aquela história. Digitou um nome: Érika. Tinha dezesseis anos, estava nua na banheira ao lado. Era branquinha, os seios pequenos, os movimentos suaves, a voz lânguida e clara como um som de cítara. Talvez mais um personagem fosse uma salvação. Ela chamaria uma ambulância.
– Érika! Érika, estou morrendo! (…) Silêncio.
Passos de menina, e aquele corpo delicioso e esguio apareceu apenas pela metade no corredor, exalando um perfume de flores que Deus ainda não havia inventado. Seus olhos arregalados fitaram aquela cena, mas ela nada disse. Depois voltou vestida com uma camisola de seda transparente e sentou ao seu lado.
– Tu sabes o teu nome? O teu verdadeiro nome? E o homem percebeu que ainda não havia pensado nisso.
– Érika, não sei meu nome, mas estou morrendo, me ajuda!
E ela continuava a olhá-lo com aqueles olhos grandes, num misto de desdém e comoção.
– Mas a história é tua! Como foi que me deste esse nome de Érika? Quem é Érika? Perguntastes-me se gosto desse nome? E quem foi que te feriu a costela e te perfurou até o íntimo da tua triste existência?
Ele olhou para a tela e começou a escrever coisas ininteligíveis, e a cada frase que escrevia a realidade o acompanhava, anoitecendo e clareando em questão de segundos, nevando, ventando, chovendo demais… Então ele escreveu que o quarto era limpo, branquíssimo, e ao longe tocava uma melodia de Tchaikovsky, alguma suíte do Quebra Nozes. E ele desejou escrever que estava curado, mas seus dedos petrificaram-se. Érika deitou-se ao seu lado e beijou-lhe na boca, e ficaram ali deitados.
– Aleph, este é o seu nome, e essa é a tua obra prima. Estás escrevendo o teu melhor conto, aquele que narra a tua morte.
E o autor, sereno e feliz pela primeira vez na sua vida, colocou um ponto final naquela história, e deixou a telinha brilhante apagar-se para sempre.
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