I Concurso Literário Benfazeja

Detrás da porta



Conto da escritora convidada Deanna Ribeiro.

Arregalou os olhos num repente. Susto! Ainda estava escuro. O coração apressado. Ritmava tão fortemente no peito, que podia quase segurá-lo nas mãos. Demorou a reconhecer o próprio quarto, perdido dentro do pensamento. Confuso, tentava lembrar-se de que lugar era aquele onde estava. Tentou gritar, falar qualquer coisa que fosse, mas a voz recusou-se a deixar a garganta, mais amedrontada do que ele. Silêncio.

- Din Don! – era a campainha. Alguém parecia ter adivinhado seu despertar.

Levantou-se, angustiado, mas sequer chegou à sala. Quem quer que fosse, iria esperar. Mal calçou as sandálias, correu para o banheiro. Levantou a tampa da privada e recostou-se na parede, apoiando-se num dos braços. Não percebeu o cheiro forte de urina que subia pelas ventas, por estar imerso nas ideias e imagens estranhas que assomaram de repente diante dele. A mente não descansava - lembranças, histórias, desejos, emoções, pessoas: tudo rondava por ali, de mãos dadas, numa dança ritualística inquietante. Perturbado, seguiu em direção à cozinha para comer qualquer coisa que estivesse à mão ou apenas tentar distrair-se.

Mais uma vez a campainha soou suave: din don! Quem estava do outro lado da porta insistia; calmamente, entretanto - parecia disposto a esperar um pouco mais. Ele pôs as mãos nos ouvidos e fechou os olhos, na tentativa de abafar aquele som irritantemente tranquilo que parecia zombar de sua aflição. Inútil: dentro de si, diálogos já ocorridos e jamais acontecidos eram reproduzidos com fidelidade. Conseguia escutar-se e escutar as vozes de outros: algumas até desconhecidas. Estavam ali seus medos, suas vontades, seus erros e acertos: sua vida inteira – vivida e não vivida; o ido e o porvir. Riam, brigavam, choravam, sussurravam: ao mesmo tempo. Sons às vezes incompreensíveis pela razão, mas não pelo coração.

Afastou uma das duas cadeiras que compunham sua mesa de jantar e sentou-se atormentado. Olhou o relógio em cima da geladeira. Três e trinta e três da manhã. Quem vinha incomodá-lo a essa hora? E tão insistentemente. Din Don! Parecia ser algo importante. Mas a agonia dizia-lhe: não abra. Premonição, talvez. As vozes continuavam. Já respirava com dificuldade a essa altura: puxava o ar e ele parecia não vir ou faltavam-lhe narinas, traqueia, pulmões, qualquer coisa assim. Segurou a quina da mesa, como se resistisse aos puxões de alguém. Fazia força. Dedos de pontas avermelhadas.

-Não, não! Dizia internamente.

- Din Don! Din Don! Din Don! O alguém do outro lado da porta não tinha mais paciência. O homem correu para o quarto. Furioso, derrubou os objetos de cima da prancha de mármore: abaixo porta-retratos, papéis, bibelôs e o que mais havia ali. Arrancou quadros da parede e atirou-os ao chão. Tombou a TV, o som, o ventilador. Cale-se! pediu; quase implorou. Tocaram novamente, e com mais pressa, a campainha:din don, din don, din, don, din don, din don... foi então que bateu a porta com ímpeto, trancou-a pelo lado de dentro, como criança assustada; e jogou ali mesmo seu corpo cansado e tremulante: miúdo, rosto escondido entre os braços que abraçavam os joelhos – no meio dos destroços. Lacrimejava abundantemente, bochechas lavadas, olhos vermelhos e apertados.

- Toc, toc, toc, toc, toc. Já estavam no corredor do apartamento e tentavam contato urgente.

- Quem conseguiu entrar aqui? Perguntou-se em silêncio, mãos suadas.

Quando emergiu dos braços o rosto, em torno de si viu só paredes brancas e reluzentes que quase o cegaram. As vozes calaram. Lembranças, histórias, pessoas, erros e acertos ficaram cada vez mais longínquos até sumirem por completo. De pé, um homem alto, todo vestido de preto, com os cabelos loiros e brilhosos cuidadosamente penteados para trás, que levava nos pés sapatos também negros e bem engraxados - nisso reparou bem, apesar do terror – falou com voz firme e decidida:

- Venha comigo! Não é possível fugir – fitou-o seguro, com olhos azul-celeste e, em seguida, virou-se - tinha uma leve lombada no alto das costas.

Quando deu por si, o corpo ainda estava deitado na cama – em decúbito dorsal. Imóvel. Empalidecido. A face, fria e lânguida. Ao redor, os objetos do quarto continuavam intactos em seus lugares de costume, e as paredes coloriam-se do tom de sempre, iluminadas pelos tênues fios de sol que adentravam o cômodo com timidez infantil. À esquerda, no parapeito da janela, um pássaro, que sibilava baixinho, acalentando aquele sono – agora – tranqüilo, logo levantou vôo quando avistado.


Biografia
Deanna Ribeiro , de Olinda-PE, graduada em Letras (habilitação português/espanhol) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é revisora autônoma, professora e estudante. Edita o blog “semacaso.blogspot.com” , tem uma poesia publicada no livro “Os cem melhores poemas do TOC140, poesias do twitter” (2011), realizado pela Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto).
Blog Twitter @deanna_ribeiro Revista Babel

* Créditos da imagem: Olhares.pt
DORMINDO, por Paulo Madeira

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