I Concurso Literário Benfazeja

Poemas de Marcelo Sousa


Marcelo Sousa


UM FAVO DE SOL

Nuvem preta,
carregada de chuva.
Veja: troveja prata
e marfim.
Mesmo assim,
o poeta enxerga
um favo de sol no céu.
Mas não escreve poema,
que pena.
No outono,
abelha não faz mel.




ÁGUAS TRANQUILAS

O grande dragão exalou sangue pelos poros.
Poucos viram brilhar, por trás da Lua, o Ouroboros.
Calma agora, deixa que a aranha-mãe teça a sua teia.
Deus não existe, mas Ele corre em nossas veias.
Entenda, mas primeiro fique cego, surdo e mudo.
A dor e o prazer podem estragar ou curar a tudo.
Das fontes longínquas ou da mais próxima torneira,
Há de descer o líquido para lavar nossa bandeira.
Não conte a ninguém, mas cante baixinho.
A espada descerá veloz e sagaz, mas com carinho.
Diga "sim" quando teu corpo negar.
E diga "não" quando a alma aceitar.
Não creia nos tótems, não construa imagens.
No cume das montanhas não sentirás vertigens.
Lá terás descanso, serás águia, condor, urubu e pardal nas alturas.
E quando quiser descansar, é na relva que encontrarás o que procuras.
"Frater, frater, atenda o meu chamado!"
Ele não responderá, mas estará ao teu lado.Flammel não provou desta água.
Trimegistos sorveu-a sem mágoa.
Jogo o balde, puxo, dou-te de beber enquanto posso.
Ninguém sabe o quanto restará na escuridão tranquila deste poço.
Lá pode haver quase nada, ou talvez o suficiente para todo o planeta.
Quando eu for embora, não me procure.
Lembra-te do que disse o bom poeta:
"Que seja eterno enquanto dure!"



O GOSTO DO TEU SORRISO

Pelo sabor do gesto
um sorriso no teu rosto
traz a felicidade mais honesta.
Ah, como adoro, adoro esse gosto
de luz do sol pintada na tela,
essa luz invencível desafiando as janelas
e entrando pelas frestas da casa e do corpo.
Sorriso enorme, mas dado de soslaio,
meio de ladinho, mas sem perder o caminho,
sorriso que pelo sabor do gesto já empresta
ao dia uma certa luz diferente, reluz como prata
ou como jóia que brilha perdida na mata.
Pelo sabor do gesto, nem protesto,
caio em teu abismo, absorto, em festa,
e no canto da tua boca encontro um porto
onde posso ancorar minha vida, meu barco,
e deixar descansar meu corpo.




A FLOR DE VIDRO
Nas manhãs em que desabrochas assustada,
e descuidada te banhas na carinhosa luz matutina,
oh linda flor de vidro, erva perfumosa pelo sol despertada,
no meio dos vales és monumento, tótem, e sobretudo menina,
ingênua em teu solipso berço. Ao encontrar-te assim desamparada
ajoelho-me, peço ajuda e clemência em teu nome ás forças divinas,
para que nessas campinas não sejas por pés de lobos e ovelhas
despedaçada.

Nas manhãs em que desabrochas reluzente,
oh linda rosa, vítrea estátua que fulgura em mil cores,
vejo-te sofrer calada o teu destino, e timidamente
deixo uma lágrima banhar-te as pétalas, e se fores
a princesa prometida, enclausurada num corpo transparente,
pisada por bestas e feras, as mesmas que te devem mil favores,
morra então, liberta tua alma, flor-princesa, e deixa-me sem teu perfume
eternamente.

Créditos da imagem: Olhares.pt
vês aquela nuvem ao fundo..., por Paulo César

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