I Concurso Literário Benfazeja

A filosofia de composição



Parte 2 de 3
O Belo / o refrão / O apaixonado e o corvo.

Texto de Edgar Allan Poe, com tradução de Wellington Souza.

Leia (ou releia), antes, a parte 1 de 3: Introdução/ A obra aberta/ O tamanho ideal do texto.

Meu pensamento seguinte se concentrou na escolha de uma impressão, ou o efeito, para ser transmitida: e aqui eu posso também observar que, durante toda a construção, mantive firmemente em vista o projeto de ter um trabalho de agrado universal. Eu irei sair um pouco do assunto central deste artigo para demonstrar um ponto sobre o qual eu tenho insistido repetidamente, e que, sobre poética, não há a menor necessidade de demonstração – o ponto, preciso dizer, é que a Beleza é o único campo legítimo no poema. Umas poucas palavras, no entanto, elucidarão meu real ponto de vista, que alguns amigos têm uma disposição em deturpar. Este prazer que é ao mesmo tempo o mais intenso, o mais elevado, o mais puro, eu acredito, e é encontrado na contemplação do Belo. Quando, de fato, nós falamos em ‘Beleza’ ou ‘Belo’, nós queremos dizer, precisamente, não uma qualidade, como é de se supor, mas sim um efeito – nos referimos, resumidamente, apenas a essa intensa e pura elevação da alma – não no intelecto, mas no coração . Aqui eu designo a Beleza que é proveniente do poema, apenas porque essa é uma regra básica em Artes, esse efeito deve ser sentido a partir das primeiras letras – e deve ser alcançado através dos mais adequados artifícios para a sua realização – ninguém ainda foi fraco o suficiente para negar que a peculiar elevação mencionada, é mais prontamente alcançada no poema. Agora o objeto Verdade, ou a satisfação do intelecto, e o objeto Paixão, ou agitação do coração, são, embora atingível até certo ponto no poema, mais rapidamente alcançável na prosa. Verdade, e fato, demandam uma precisão, e a Paixão, uma simplicidade (a paixão verdadeiramente compreendida), o que é absolutamente antagônico da Beleza que, eu afirmo, é a excitação, ou agradável elevação, da alma. E de nenhuma maneira eu disse aqui que a Paixão, ou mesmo a Verdade, não possa ser introduzida, e até satisfatoriamente introduzida, em um poema – para que possam servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as dissonâncias na música, por contraste – mas o verdadeiro artista criará, primeiro, um tom em que ela terá um papel subserviente ao objetivo predominante e, secundariamente, quando possível, em que a Beleza é a atmosfera e a essência do poema.

Seguindo, então, no campo do Belo, minha próxima questão referiu-se no tom e sua mais alta manifestação – e toda experiência tem mostrado que esse tom é um tom de tristeza. A Beleza, de qualquer espécie, em seu auge, invariavelmente desperta na alma as lágrimas. Melancolia é o mais legitimo de todos os tons poéticos.

Com a extensão, o campo e o tom determinados, eu me dirijo a uma ordinária indução, com o objetivo de obter o diferencial artístico que me servirá de ponto-chave na construção do poema – um pivô sobre o qual toda a estrutura há de vir. Ao pensar cuidadosamente em todos os efeitos artísticos usuais – ou mais propriamente, no sentido teatral – eu não deixei de perceber, imediatamente, que nenhum tem sido tão universalmente utilizado quanto o bordão ou refrão. A universalidade de seu emprego é suficiente para me assegurar do seu valor intrínseco, e poupar-me da necessidade de submetê-lo à análise. Geralmente utilizado, o refrão, ou bordão, não é apenas limitado aos versos líricos, mas o seu emprego, neste caso, depende da força da monotonia – tanto em som quanto proposta. O prazer é deduzido apenas da identidade dele – da repetição. Eu resolvi diversificá-lo, e vastamente aumentar o efeito, aderindo, em geral, a um som monótono, que continuamente variava com o pensamento: quero dizer, eu determinaria efeitos continuadamente novos, mas variando na trechos do refrão – com o restante, sua maior parte, invariável.

Esse ponto sendo resolvido, o próximo, bem sei, é a natureza do meu refrão. Desde a sua aplicação ser repetidamente variada, ficou claro que o refrão em si deve ser breve, pois eu encontraria dificuldades intransponíveis para variar com frequência as aplicações de uma frase demasiadamente extensas. Em proporção à brevidade da sentença,é claro, está a facilidade de variá-la. Isso me fez chegar à uma única palavra como sendo o melhor refrão.

A questão agora é sobre o caráter das palavras. Havia tecido em minha mente o refrão, a divisão do poema em estrofes e, é claro, os pontos máximos: o refrão iniciando e fechando cada estrofe. E tal, para ter força, deve ser sonoro e suscetível a prolongada ênfase, admito, sem dúvida: e essas considerações me levaram a uma longa e sonora vogal, em conexão com ‘r’ como a consoante mais produzível.

O som do refrão determinado, torna-se necessário selecionar a palavras que englobe esse som, e, ao mesmo tempo, esteja o máximo possível de acordo com a melancolia que eu pré-determinei como tom do poema. Em tal busca seria absolutamente impossível ignorar a palavra ‘nevermore’ (nunca mais). De fato, essa foi a primeira que se apresentou.

A próxima consideração foi o pretexto para o uso contínuo da palavra: ‘nevermore’. E observando a dificuldade que tinha para inventar um motivo plausível para essa contínua repetição, não demorei a perceber que isso se dava pela pré-suposição de que a palavra era continuamente e monotonamente falada por um humano – eu não deixei de perceber, resumidamente, que a dificuldade era de compilar a monotonia com a exercício da razão por parte de uma criatura que repete a mesma palavra. Aqui, então, imediatamente surgiu a ideia de uma criatura irracional capaz de falar; e, muito naturalmente, um papagaio, no primeiro instante, me surgiu – mas foi substituído rapidamente pela figura do Corvo, de igual capacidade de falar e infinitamente mais de acordo com o tom pretendido.

Eu agora estou avançando na concepção do Corvo – a ave de mau agouro – monotonamente repetindo a única palavra, ‘nevermore’, que concluirá cada estrofe, no poema de tom melancólico, e com tamanho de cerca de cem linhas. Agora, sem nunca perder de vista o objetivo maior, a perfeição, em todos os pontos, eu me pergunto – ‘de todos tipos de melancolia, que, de acordo com o interesse humano universal, é o mais melancólico’? A morte – é óbvio. “E quando” eu disse “esse é o mais melancólico dos assuntos poéticos?” pelo o que já expliquei em algum momento, a resposta, aqui também, é óbvia – “quando ele se alia à Beleza: a morte, então, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o assunto mais poético de mundo – e igualmente é, sem dúvida, que os lábios próprios a tal tema são os de uma amante de luto”.

Eu tenho agora, combinada, duas ideias: um apaixonado lamentando a morte de sua amada e um corvo continuamente repetindo a palavra ‘nevermore’ – irei ajustá-las, então, tendo em mente o meu projeto de variar, a cada turno, a aplicação da palavra repetida; mas o único modo compreensível de imaginar tal combinação é o corvo entoando a palavra em resposta a perguntas do amante. E foi aqui que percebi aflorar a oportunidade de dar o efeito que eu havia planejado – isso é, de variar, a cada turno, aplicação da palavra. Eu farei, primeiro, a pergunta do apaixonado – a primeira pergunta que o corvo responderá ‘nevermore’ – eu poderia fazer essa primeira pergunta banal – a segunda mais banal, a terceira mais ainda e assim por diante, até que finalmente o amante, assustado com a indiferença original, caráter melancólico da palavra em si – com essa frequente repetição – e com a reputação sinistra da ave que a pronunciou – se vê muito excitado pela superstição e descontroladamente propõem perguntas de naturezas diversas – pergunta sobre as soluções para a passionalidade do coração – e pergunta ao corvo parte por superstição e parte numa espécie de desespero que o toma em autoflagelação – pergunta-lhe não totalmente porque acredita no caráter profético e demoníaco da ave (que, a sua razão assegura, está apenas repetindo a palavra aprendida de cor) mas porque ele apresenta um espécie frenética de prazer em formular essas questões de modo a receber como resposta delas o esperado ‘nevermore’ – a mais deliciosa por ser a mais intolerável tristeza. Percebendo a oportunidade de que assim se aflorou – ou, mais precisamente, que foi induzida no processo de construção – eu primeiro estabeleci na minha mente o clímax, ou última pergunta – a que com ‘nevermore’ daria uma última resposta – a que respondida com ‘nevermore’ envolveria a mais imaginável quantidade de tristeza e desespero.



Sempre com um artigo sobre a arte de escrever e as suas particularidades. Textos inéditos e traduções de clássicos fazem da Escrita Criativa um seção indispensável ao escritor moderno.

Links: Envie sua colaboração | Mais textos desta seção

Nenhum comentário