I Concurso Literário Benfazeja

Resgate





Isso acontece com muita gente. Mulheres, sobretudo. Chamamos de perda de identidade, mas poderia ter outros nomes: autoabandono, autoesquecimento, autodetrimento, síndrome da pessoalidade roubada, disfunção personal (ops).

As histórias são sempre parecidas. Ela se apaixona, casa-se, tem filhos, anula-se, não constrói a própria vida. Dedica-se ao marido, a cuidar dos filhos. Toma para si a responsabilidade de zelar pela família do marido – pai, mãe e quem mais precisar, até a morte.

Ela envelhece, os filhos crescem, começam a ir embora. O marido também envelhece, se distancia, se isola, cria uma vida paralela dentro de casa – ou fora –, não vela por nada.

Ela perde o brilho, o viço, engorda. Priva-se de desejo, não se ama, não sente tesão por si. Ela não é ela. É qualquer outro alguém que tocou a rotina ano após ano, levando a cabo o compromisso que assumiu.

Em dado momento se pergunta: cadê eu?

Ao ler algo tão básico ou prosaico, há quem despeje logo um “Que burra! Como pode existir gente assim? Por que não deu um chute no traseiro do marido e foi à luta?”.

Lamentavelmente não é simples. A pessoa faz uma escolha e até que por um motivo qualquer desperte, está convicta de que foi a melhor opção, que faz o correto. Não conhece alternativa, por isso nem procura. Apenas aquiesce e cumpre o mandato que assumiu.

Quanta tristeza nos olhos, quanta saudade de si, quanto de potencial intelectual, prestas a explodir. Todo o corpo é pranto; a voz é sussurro arrastado, temeroso. Tanto que ouviu de ofensas durante anos seguidos, que receia até mesmo pensar nela própria, muito menos se expressar sobre seus desejos (ainda os tem!).

Como quem sobrevive a uma doença grave, está nascendo de novo. Abre os olhos lentamente e, curiosa, olha em volta. Tenta se mexer, sente dores, muitas dores, e fortes. Precisa respirar fundo e fazer cada movimento bem devagar. Passo a passo vai tateando os cômodos de sua casa mental, em busca de compreensão de sua emoção e do seu corpo.

Ao sair do quarto, avista luz através das janelas e caminha na direção daquilo que não vê faz tempo. E ao vislumbrar o mundo do lado de fora, sente os olhos lacrimejarem. Reconhece suas vontades, suas aspirações mais antigas, mais profundas, guardadas numa gavetinha trancada no fundo da alma.

Da janela à porta é um passo, trôpego, porém confiante. Ela quer e vai. Mira o sol, chora, gargalha, anda depressa, aspira o ar cada vez mais fundo e corre. E assim, renasce.

Uma descrição um tanto poética para mais uma vida que surge após um casamento no melhor estilo “apenas uma por todos”.

Estou assistindo de camarote, aplaudindo de pé e gritando “uhuuuu!!”.



Imagem: corbisimagens.com

Nenhum comentário