I Concurso Literário Benfazeja

A coroa




Conto enviado por Daniel Lisboa.


- Mãe, o pai era parecido com alguém?

A grande coroa de flores recém-colocada do lado direito do caixão dizia

A ASSOCIAÇÃO ESTADUAL DOS SÓSIAS AGRADECE EDNEY CARVALHO PELOS SERVIÇOS PRESTADOS

- Não. A gente saberia, né? Não sei da onde veio isso aí. Acho que erraram de funeral.

- Foi um bom marido, no final das contas.

A grande coroa de flores se encontrava em meio a várias outras menores e com mensagens do tipo

SAUDADES DOS COLEGAS DA STENCER & CIA
A EDNEY & FAMÍLIA COM CARINHO, AMIGOS DA HÍPICA SANTO ANTÔNIO
SAUDADES ETERNAS, JOÃO, SARAH E ROSANA
DESCANSE EM PAZ. SAUDADES

- Rosana, você sabe quem mandou essa coroa? O Edney nunca comentou nada com a gente sobre isso.

- Mãe, o papai era sósia de alguém famoso?

- Cara, que bizarro essa negócio de associação de sósias. Que eu me lembre o tio Edney não parecia com ninguém.

A grande coroa de flores fora a última a ser entregue.

- Engraçado isso. Dá pra imaginar o Edney, com aquele jeitão sério dele, bancando o sósia de um artista famosão? Sim, porque, pro cara fazer parte de uma associação, sósia de um zé mané qualquer ele não era. Alguma vez ele falou alguma coisa sobre isso com o pessoal lá da empresa?

- Aquele jeitão sério do Edney escondia um grande coração, pode ter certeza disso.

- Meu deus, Juremir, que história é essa? Funeral é coisa séria, é hora de lembrar de um ente querido, de louvá-lo, não de fazer brincadeira. Quem mandou essa coisa? Será que foram aqueles moleques?

- Pô, ia ser legal descobrir agora que o pai era sósia, sei lá, de um fudidão qualquer aí, né? Tipo, perceber agora que ele era parecido com o Nicolas Cage e a gente nunca tinha reparado?

- O Nicolas Cage não é fudidão aqui e em nenhum lugar do mundo. Da hora seria descobrir que teu pai andou se apresentando por aí como cover do Elvis Presley, por exemplo.

Às vezes disfarçando, às vezes quase caindo sobre o caixão, mais e mais conhecidos tentavam conferir o rosto do morto uma última vez na medida em que também notavam a grande coroa de flores.

- Por mim eu pedia pra tirarem essa coroa daí, mas não sei...É falta de respeito. Seja lá quem mandou, foi alguém que se lembrou dele nesse momento de perda.

- Concordo que ele era duro quando necessário, mas não tinha outro jeito. Homem, se quer chegar a algum lugar nessa vida, tem que ter pulso firme.

- Você tá brincando né mãe? Isso aí é uma tiração de sarro na certeza. Se pá foi alguém lá da Stencer com quem ele não se dava bem...E o pai mandou um monte de gente embora, né?

- Deixa de besteira, João. Todo mundo gostava do seu pai lá na firma. É só perguntar pros colegas dele aí. E se alguém tinha alguma coisa contra ele, não ia perder tempo com uma asneira dessas. Tinha feito alguma coisa enquanto ele tava vivo. Processado, não sei.

- O Edney não me enganava não. Tinha esse pose de corporativinho mas eu lembro muito bem do que a gente aprontava quando ele era solteiro. Rapaz...até grupal com umas putas a gente fez, cê acredita?

- Eu morria de medo do tio Edney quando era moleque.

- Você não achava ele meio parecido com o Antônio Fagundes?

- Sósia do capeta, só se for.

- Colega, por favor, tem como a gente descobrir quem mandou entregar aquela coroa ali?

- Ah, eu fazia merda como todo moleque, mas daquela vez o tio exagerou um pouco.

- Senhora, foi entregue pessoalmente. Um senhor passou aí de carro e pediu pra gente entregar. Não quis descer pro funeral.

- Sarah, o que cê achou dessa história de sósia? Será que o pai andou escondendo mais coisa da gente?

- Um puta pai. Sem dúvida, um puta pai.

- Sério, cara. Devia ter umas cinco putas só pra mim e o Edney. O cara tinha aquela carinha passada na empresa só pra se revelar um monstro na hora H. Uma hora fiquei até com medo que ele aproveitasse aquela zona toda pra tentar me comer também.

- O Edney...Não sei não, Alberto. Não vou falar nada pra Rosana agora, mas pra mim aí tem coisa.

- Para, João. Não quero lembrar dessas coisas agora. O pai tá morto.

- E ainda teve muito pó na parada...Se bobear o cara infartou por causa disso aí. Como cê acha que ele aguentava ficar doze horas por dia lá no escritório?

- Como era esse senhor?

- Os melhores colégios, intercâmbio pra tudo quanto é canto. Mas sabia descer o cacete quando precisava.

- Não é que agora vou ficar falando mal do cara depois de morto, mas então só a família não sabe que as promoções todas lá na Stencer só rolaram com muito pó.

- Porra Sarah, o cara era nosso pai, vai dizer que não tá curiosa?

- Acho que a Rosana nunca contou direito as coisas pra gente, Alberto. Acho que até bater nela ele já tinha batido. Agora me aparece essa negócio de sósia...eu sabia que a nossa filha era enganada.

- E porra, o cara era nosso amigo, mas vamos falar a real, ele botava pra fuder lá na firma. Lembra quando ele mandou o José embora? O cara tava mal, trancado em casa há não sei quanto tempo, e ao invés dele tentar descobrir o que tava rolando pra ver se tinha como ajudar, botou o cara na rua. Sem dó. Não é à toa que ele pirou e acabou matando o vizinho, lembra dessa história?

- O Edney era foda. E as festinhas na hípica? Não tenho certeza, mas acho que ele já era casado. Não foi ele que fez a menina bater punheta prum cavalo uma vez?

- E a Sarah, essa princesinha? Me traz o primeiro namoradinho em casa e o cara era um moreninho. Rapaz, deu uma merda.

- E aê veio, já descobriu de quem seu pai era sósia? A gente tava aqui pensando e ainda acha que é o Nicolas Cage.

- Muito estranho. Porque alguém mandaria um troço desses pra cá se não fosse verdade?

- E teve também aquele papo do cavalo paraguaio, lembra? Mas era paraguaio mesmo, o Edney apareceu com o bichão querendo botar banca e todo mundo sabia que aquela porra não tinha raça nenhuma. Não sei porque ninguém nunca chegou pra ele e disse alguma coisa.

- Mano, eu sei que é foda, mas a gente vai ter que contar sobre esse papo de sósia pros caras depois. Tipo, velho, como assim? O pai do cara morre e ninguém sabia que ele era sósia de alguém? Até fazer parte de associação o cara fazia!

- Que cara é essa? O que o moço do cemitério te disse?

- Se ele levantar do nada, a gente já sabe que era sósia de alguém do The Walking Dead.

- Mãe, pede pra tirarem esse negócio daí. Não quero que fiquem pensando besteira do papai.

- Daqui a pouco chega uma coroa dos trafica, das putas...Aí que a família vai ficar sem graça de verdade.

- Eu sei que não é hora disso, mas olha Alberto...Acho que foi pro bem da nossa Rosana. Ninguém nunca me tirou da cabeça que o Edney era um duas-caras.

- Um profissional exemplar. Espero que o moleque aí, o João, saiba seguir o exemplo do pai.

- Associação Estadual dos Sósias. Puta merda, vou ter que pesquisar essa porra no Google depois. Imagina, às vezes tem até uma foto do Edney lá.

- Mã, o que tá rolando? Sei lá, você parece que ficou feliz de uma hora pra outra. Tá até meio estranho.

- É verdade, mãe. Baita sorrisão na cara.

O caixão é fechado e Rosana abraça os filhos.

- O que vocês têm que entender, queridos, é que no fundo o pai sempre quis o melhor pra todo mundo. Ele soube a hora de partir.

*A coroa é parte de livro, ainda sem título definido, a ser publicado em breve pela editora Kazuá


Daniel Lisboa
Jornalista, colaborador de diversos veículos (Folha, Trip, Piauí, Vice Magazine), estudou na Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, nos EUA.
Facebook


*

Créditos da imagem:
Coroas de Flores, por Grupo Primaveras

Nenhum comentário