Uma rara flor

Desdobravam-se desvairados e sem sentido os dias naquela cidade à qual eu não pertencia e para a qual eu havia voltado.
Sobravam-me poucos dias ali antes de começar a viagem longa. Pensei que esse pequeno trecho de vida, justamente por ser pequeno e entrecortado por uma viagem sem volta, pudesse ser como uma dessas viagens curtas e salvadoras. Pensei que nós desfrutaríamos juntos o pouco de vida que restava.
Mas não pôde ser assim, o excesso de fertilidade dos dias anteriores fizera nascer em mim uma flor de esperança no meio de um caminho que estava seco. E a ousada flor quis continuar sendo adubada no futuro. Não pôde ser assim porque eu quis mais do que o momento presente: agora eu queria ficar. Eu queria diluir a doce concentração dos poucos dias em rios de anos. Queria fazer com que as últimas semanas se tornassem a vida.
Queria que ele quisesse isso também e que isso fosse mais forte do que o seu flutuar em vida. Queria que ele, ao perceber a responsabilidade que surge ao se cativar uma flor, a colocasse em uma redoma, dentro de sua casa, e a chamasse de sua.
Mas ele é adubo orgânico, que só se dá quando sobra (tempo, espaço, espírito). Então ele vinha me adubar algumas noites com rastros de espinhos de outras flores, manchas roxas pelo corpo. Sei que nosso tempo era curto, e ele não se dava por inteiro nem no futuro, nem no presente. Mas então por que continuava vindo e se dando com a intensidade da última vez?
Sem pedir, sem falar, sem pensar. Apenas vinha.
E era bem quando eu sangrava e pensava que agora já era tarde para ir viva como quem vai nascer nula do campo das memórias. Era tarde, e enfrentar podas era inevitável. Voltaria a ser terra seca?
Agora eu era úmida. Agora corria sangue em abundância e alimentava uma flor selvagem e rara que em breve seria aniquilada por minhas próprias mãos.
Eu dizia para mim mesma que a flor nasceu de ‘nós’ e por isso, sem ele por perto, ela deveria ser aniquilada antes que morresse de feiura e desgosto. Eu iria cometer o ato, mas diria a mim mesma que a culpa fora dele. Matei porque ele não a quis, porque sem ele, ela definharia.
A flor nasceu de nós? Ou a flor nasceu apenas de mim e eu tive medo de pensar que era só minha porque sozinha eu teria que assumir a sua beleza e a sua perda? Fui eu, usando ele como matéria, como inspiração, como desculpa e apoio, quem criou essa flor? Sou eu que estou decidindo matá-la? A responsabilidade é toda minha? Será que se eu não quisesse flor nenhuma e então encontrasse Bernardo no acaso eu teria continuado sendo terra seca? Será que foi distraídos que botamos essa flor? Ou será que eu quis com todas as forças de dentro que nascesse uma flor? Será que ela nasceria se ao invés de Bernardo eu tivesse inventado um João, um Carlos, um Marcelo ou um Francisco? Será que qualquer outro acaso seria fértil porque acima de tudo a flor quer nascer? Porque acho que deve haver no momento mais próximo da morte uma energia muito grande que quer explodir em vida. Talvez a gente invente Bernardos para fugir da morte na própria carne.
Nesse momento a flor se submete, linda e triste. Com ares de quem sabe que vai morrer em botão. Essa flor quer depender dele e não quer ficar só na imaginação, essa flor é carnívora. E por não ter banquetes todos os dias, aprendeu a esperteza do silêncio, de ficar na espreita, esperando a presa chegar bem perto para ser engolida de uma vez. Essa minha flor não caça, só sabe devorar por inteiro o que se aproxima e já não se sacia com pequenas porções esparsas. Se for assim, prefere morrer de fome. Amanhã pode ser que ela se submeta às vontades da presa de ser devorada por outras flores.
Agora, a flor se submete a ele. Eu me submeto à flor. (Deixei ela reinar um pouco porque também tem um lado bom: o gosto de vida vivo na língua).
Mas eu também já sei aniquilá-la. E já sei que é isso que eu vou fazer. Ainda antes de ir.
Pode ser que se eu esperasse! Se eu desse chance ao tempo! Se eu mostrasse a ele!
Mas não...
Aprendi a não atrasar mais meu relógio existencial para esperar alguém que talvez nunca venha por inteiro.
Mas eu posso levar a flor comigo, não posso?
Não. (Tenho medo de que ela me devore).
*Trecho do livro CASTELOS TROPICAIS
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