A despedida
Conto, por Difran Melo Franca.
E o sinal de cumplicidade que os dois corações então trocaram, foi suficiente: Baltazar agora tinha total certeza que Sofia partia como uma folha soprada pelo vento entre os caminhos desconhecidos para ambos, e nesse ato mudo havia herdado absolutamente toda a dor possível da humanidade e cimentando-a em tua alma daquele dia em diante. Embora elusiva, visitá-lo-ia em dias nublados quando o sol se esconde dos olhos atormentados por desejos em serem aquecidos, mesmo de tão distantes; dias cheios de tormentas silenciosas que cairiam serenas sobre o telhado da sua choupana enquanto as lágrimas se fundem com a água do chá de ervas; momentos em que a fé se petrifica no canto da sala como uma estátua de sal à espera de um sopro de liberdade – que não chega –, e ela não evapora e nem se move, criando raízes por toda a casa, esticando-se pelas paredes, tomando o espaço das fotografias de outrora vida que aguardava a volta do infinito ainda adormecido. Enquanto os passos de Sofia a levavam para mais e mais longe das mãos destroçadas de Baltazar, iam, aos poucos, excluindo qualquer acréscimo ulterior da redundante dor sem justificativa que faria morada estendida em seu lar de lamúrios incontroláveis de uma poesia que deixou o último verso ser danificado.
A força não habitava seu corpo, impossibilitando-o resgatar seu amor que simplesmente partiu deixando em tuas mãos um caderno de saudade, com rabiscos de bom grado de uma história com falhas, assim como placas tectônicas da terra dos dois, o habitat da segurança que deveria existir nas inconstantes partidas com retornos definidos. E por mais sufocante que fosse permanecer intacto, imóvel como uma pedra predestinada a estar na estação da solidão, ali continuou com os olhos marejados das futuras saudades que deleitariam sobre a tua pele enquanto arrumaria os livros sobre a estante antiga. Memórias que o cortarão com lâminas afiadas, o fariam escrever cartas jamais enviadas e logo em seguida queimadas às escondidas no quintal dos fundos do seu novo lar. Contaria todas as suas frustações, decepções e como doía fazer amor com alguém que não sorria como ela após o gozo; como sentiria falta do cheiro dela sobre os lençóis e os móveis da casa; até como a lua deixou de ser tão suave em sua pálida luz que não mais inebriava seus passos nas caminhadas noturnas em busca do amor que partira em uma caravela sem pretensão de volta. Exaustivamente lembrará os beijos retribuídos sobre as árvores da cidade, dos toques abobalhados enquanto o mundo não os observava, como se todos os olhos passassem a sofrer de uma cegueira forçada, mantendo-os protegidos do mundo, mas não deles mesmos.
Baltazar sentiu um ardor intenso no fundo dos olhos, a boca seca, os lábios inchando devido à força colocada por seus dentes, apertando-os, ferindo-os, e algo obscuro fechando-lhe a garganta, como num sufocante pesadelo. Agarrou o colarinho da camisa e tentou folgá-la, mas sentiu-se mais fraco do que antes, tal qual uma criança que não pudera dar seus primeiros passos com clareza. Sentiu as pernas cederem ao tombo inevitável para o chão, ao insuportável choque de dor que sucumbia seu corpo como um náufrago em um mar de areia. Percebeu muito tarde que o ardor eram lágrimas e desculpou-se consigo mesmo por demonstrar tamanha invalidez como homem, como apaixonado. Ouviu alguns murmúrios, e por mais que nebulosamente pudesse enxergar pés ao seu redor, manteve-se distante do mundo, das vozes que o chamavam para aquela realidade, agora, sem Sofia. Aí, nessa solidão de fugitivo, que finalmente teve a revelação que o prenúncio de choro acabara de anunciar-lhe: todos os beijos e amor que por tanto tempo dedicou a Sofia que pareciam absorvê-la sobre uma manta de proteção para a eternidade, condenara-a a vulgaridade da triste partida sem um resquício de despedida, no mínimo, digna subsequente ao amor que fora realizado e concebido ao longo dos anos juntos. E ainda de joelhos, rendido pelo peso da decepção, da triste evidência da morte da epiderme do amor, se antes, se preciso, iria evocar Sofia com o mesmo desprezo que a um assassino, agora, manter-se-ia calado, evitando o desencadeamento da incrível enxurrada de inconfidências obscenas que o levaria diretamente ao hospício mais próximo: sem coração, sem amor, sem alma, sem sanidade. Mesmo com tamanha proximidade do escárnio, Baltazar, se mantinha em silêncio, navegando entre as águas obscuras do mar com ausência de falas, com o gosto salgado da partida de Sofia, que sem olhar para trás, levou-se inteira, fora embora, sem prelúdio, sem carta de aviso, sem anunciação, como uma chuva em pleno sertão que chega sem avisar, ela partiu sem deixar endereço, olhar de remorso, ou algum vestígio que o motivasse a se reerguer e buscar novas rotas, estradas que o levassem diretamente ao coração do seu anjo glacial.
Não, não apenas a amava, porque qualquer inundação de amor não teria sido suficiente para levá-lo a exigir mudanças, a querer redimi-la dos seus pecados, dos pensamentos impuros e pessimistas acerca o futuro do casal, a violentar sua duplicidade com a esperança de que uma das tantas mulheres que habitavam o corpo de Sofia, pudesse rasgar a carta de alforria que a levaria para tão distante dele, sem nenhum rastro de possibilidade de prisão – assim, como uma borboleta a romper o casulo após anos de espera, batendo suas asas entre os raios de sol vibrantes e enlouquecedores, chocando-se com as mil cores de suas asas perfeitas e virgens, saboreando os primeiros carinhos mimosos do vento da liberdade –, ele a vivia.
Suas mãos viajavam pelo tecido das suas roupas maltrapilhas, dedilhavam as lágrimas que ainda corriam, rompendo jardins, em seu rosto, numa insaciável busca pelo gosto da dor, habitando pouco a pouco os vãos da sua alma. Nesse contraste inconcebível de uma beleza ferida pela despedida inesperada, extirpada assim como as luas pálidas e perfeitas de amor, seu coração começou os prefácios de uma morte lenta, insuportável, atormentada pelos fracassos da alma, jangadas quebradas, batimentos que se calam… E em um milésimo de segundo toda sua força e esperança de menino escorreu por tua face ruborizada, correndo pela calçada, agora vazia, buscando o primeiro bueiro para desaguar suas mágoas, fixando a ideia indiscutível que não haveria como esse coração voltar a pulsar, como se no lugar do que fora o refúgio da sua amada, tivesse sido transplantado um bloco de concreto marcado pelo símbolo da saudosa morte que retornava.
Mais uma lágrima haveria de nascer nessa nova jornada solitária.
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Difran Melo Franca Estudante do curso de Direito, terminando o sexto semestre. Comecei meu amor pela literatura muito nova, perdendo pela magia das histórias, pelo amor em si. Sou casada há dois anos, tenho 25 anos. E acredito fielmente que a palavra quando
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Outono............., por Henri Calado.
Indiscutível a beleza como a Difran Melo usa as palavras em seu conto. É um prazer pra mim poder ler . Parabéns
ResponderExcluirbonito dms. foi o primeiro texto longo que li e curti mt ^^
ResponderExcluirObrigada pelos comentários e o apoio! E mais ainda ao anônimo que tirou a virgindade de ler coisas grandes com meu conto. Fico muito feliz em saber que estão gostando!
ResponderExcluirlINDO, SEM DÚVIDAS.
ResponderExcluirObrigada pelos comentários!!
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